Analu
A decisão foi tomada com uma frieza que não sabia que possuía. Era como se a última revelação — a da prisão — tivesse quebrado algo fundamental dentro de mim, um elo de confiança que, uma vez rompido, era impossível de colar.
O Cayo era um mentiroso.
Um mentiroso compulsivo, que escondia o passado, o filho, a própria essência. E eu, Analu, a patricinha que sempre teve tudo, estava me afundando no caos que ele representava. Saber que ele tinha sido preso, que havia vivido uma realidade tão brutal e distante da minha... foi o golpe final.
Não pelo fato em si, mas pela omissão.
Ele me julgou incapaz de entender, de aceitar. E no fundo, talvez ele estivesse certo.
Naquela semana, o mundo parecia se mover para me afastar dele. Meu pai, sem saber de nada, me chamou para uma conversa no escritório.
— Ana Luísa minha filha, surgiu uma oportunidade única. A bolsa em Toronto, no Canadá. A faculdade de Administração é uma das melhores do mundo. Você se formaria em três anos, com uma bagagem internacional que seria perfeita pra você administrar nossa fortuna brevemente.
Ele falou com entusiasmo, seus olhos brilhando com o futuro que sempre planejou para mim. E eu, sentada na poltrona de couro, olhando para as estantes repletas de livros que nunca li, senti que era uma tábua de salvação. A distância que criaria entre eu e o motoboy que tinha virado minha ruína.
— Aceito, pai.
As palavras saíram firmes, surpreendendo até a mim mesma. Meu pai sorriu, amplo, e começou a falar sobre documentos, vistos, cronogramas. Eu ouvia, assentindo, mas minha mente estava longe. Na casa de porta verde, no colchão no chão, no cheiro dele que ainda impregnava meu corpo.
A partida estava marcada para dali a quinze dias. Quinze dias para arrumar uma vida, desfazer amarras, esquecer.
Mas havia uma última amarra, a mais forte, que precisava ser cortada.
Precisava ver ele.
Uma última vez.
Não para reatar, não para ouvir mais desculpas. Mas para... fechar. Para ter a certeza de que aquilo era realmente o fim.
Marquei de encontrar com ele num barzinho neutro. Cheguei primeiro, me sentei na mesma, pedi uma porção de frango passarinho.
Quando ele chegou, meu coração deu um salto traiçoeiro. Ele estava com a mesma jaqueta de couro preta, a mesma calça jeans, o mesmo ar de ogro que me atraía como um ímã.
Mas agora, eu via as sombras sob seus olhos, a tensão em seu maxilar. Ele me viu e seu rosto se iluminou por um segundo, uma esperança frágil que se apagou quando leu a expressão no meu rosto.
Sentou à minha frente. Não tentou me tocar.
— Analu. — disse, e meu nome na sua boca ainda doía.
— Não vim para discutir, Cayo. Nem para ouvir explicações.
Ele baixou a cabeça, assentindo devagar.
— Entendi.
Respirei fundo, as mãos trêmulas sob a mesa.
— Meu pai conseguiu uma bolsa para o Canadá. Vou fazer faculdade em Toronto. Vou embora em menos de quinze dias.
O choque no rosto dele foi visível, físico. Ele empalideceu, seus dedos se contraíram sobre a mesa.
— Para o Canadá? — repetiu, como se a palavra fosse em uma língua estrangeira.
— Sim. É uma oportunidade única. E... eu preciso ir. Preciso de distância. Dessa cidade, das memórias... de você.
Ele ficou em silêncio por um longo momento, olhando para as mãos. Quando ergueu o olhar, seus olhos estavam úmidos.
— Eu mereço isso. Eu sei que mereço. Mas, Ana Luísa... eu te amo. É a única verdade que eu nunca escondi de você.
Aquela frase... ela me atingiu com uma força brutal. Porque era verdade. Em meio a todas as mentiras, aquele sentimento era real.
Eu conseguia sentir.
E era isso que tornava tudo tão insuportavelmente difícil.
— O amor não basta, Cayo. — disse, minha voz saindo mais suave do que eu pretendia. — Não quando é construído sobre areia movediça. Não quando eu não consigo mais acreditar numa palavra que você diz. Toda vez que você me olha, eu fico me perguntando: o que mais ele está escondendo? Que outra bomba vai explodir na minha frente?
— Eu não tenho mais segredos, juro. O Zyon, a prisão... foi tudo que eu escondi. Foi tudo por medo, Ana Luísa. Medo de te perder.
— E você me perdeu justamente por causa disso! Você tinha jurado, Cayo. Jurou que não escondia nada.
A emoção veio à tona, e minha voz se quebrou.
— Você me perdeu porque não confiou em mim. Porque me julgou uma patricinha fútil que não seria capaz de entender sua vida. E talvez você tenha razão. Talvez eu não seja capaz. Porque dói demais. É pesado demais.
Ele esticou a mão através da mesa, mas não tocou a minha. Ficou ali, no espaço entre nós, um oferecimento não aceito.
— Deixa eu te esperar.
A súplica era tão baixa, tão carregada de desespero, que quase me fez ceder.
Quase.
— Não. Não espere. Siga sua vida, Cayo. Cuide do seu filho, sua mãe. Seja o homem que eu acreditei que você fosse, mas para você mesmo, não para mim.
As lágrimas finalmente escaparam, escorrendo quentes pelo meu rosto. Eu as deixei cair. Ele também chorou, silenciosamente, sem vergonha. Dois mundos despedaçados, chorando seu fim em uma mesa de bar.
— Eu nunca vou te esquecer, Analu. —ele disse, sua voz rouca. — Você foi a melhor coisa que já aconteceu na minha vida miserável.
— Eu também não vou te esquecer. — sussurrei.
E era a mais pura verdade.
Ele estava marcado em mim, não como um erro, mas como uma cicatriz. Algo que doeria para sempre, um fantasma que eu carregaria para o outro lado do mundo.
Me levantei, com minhas pernas trêmulas. Ele se levantou também, seus olhos implorando por um último toque, um último beijo, qualquer coisa que servisse de âncora.
Eu apenas balancei a cabeça, um movimento pequeno e doloroso.
— Tchau, Cayo.
— Tchau, princesa.
A palavra que antes era uma provocação, agora soava como uma despedida. Uma coroação de um reino que nunca existiu.
Saí do barzinho sem olhar para trás.
Caminhei pela calçada, o vento frio secando as lágrimas no meu rosto. Não peguei um táxi. Caminhei por horas, sem rumo, até que meus pés doeram e minha mente ficou vazia.
Na minha mala, embaixo de roupas de frio e documentos importantes, guardei a lembrança daquele último olhar dele. Não era o fim que eu queria, mas era o fim que precisava. E talvez, no silêncio gélido do Canadá, eu conseguisse, um dia, perdoar ele. E perdoar a mim mesma por ter amado alguém tão diferente.