O Segredo

1733 Words
Cayo O ar condicionado do shopping soprava um friozinho artificial, daqueles que faz você esquecer o inferno que tá lá fora. Minha mão estava em cima da coxa da Analu, debaixo da mesa, sentindo aquele calor que sempre vinha dela, como se o corpo da patricinha tivesse um sol próprio escondido sob a pele. A gente tava comendo aquela porção de frango passarinho mixuruca, dessas que custam uma fortuna e vem uma dúzia de pedacinhos, e ela ria de alguma bobeira que eu tinha falado. Cada risada dela era uma faca no meu peito, mas do jeito bom. Do jeito que doía e eu queria mais. Porque eu sabia que não merecia. Merecia um tiro, talvez. Mas não aquela mulher, naquela mesa, naquela vida que não era minha. — Você tá quieto. — ela falou, os olhos azul-acinzentados me escaneando como sempre. A patricinha sempre me lendo, sempre tentando decifrar o enigma barato que eu era. — Tô só te olhando. — eu disse, e era verdade. Gostava de ver ela nesses lugares, como se fosse natural. Como se eu fosse natural ali também, o que era a maior mentira do universo. Eu, Cayo, com minhas mãos calejadas de tanto segurar guidão, minhas roupas que sempre cheiravam a gasolina, minha vida que era um corre atrás de cada centavo. E ela, Analu, que nasceu num berço de ouro e nem sabia o preço das coisas. Foi quando ouvi o — Campeão! — que me congelou a espinha. Antes mesmo de me virar, já sabia. Aquele tonzinho agudo, aquele jeito desengonçado de correr. Zyon. Ele veio como um furacãozinho de cinco anos, se jogando no meu colo com uma força que quase derrubou a cadeira. — Te achei! Meu corção disparou, não de alegria, mas de pânico. Um pânico gelado que subiu da barriga até a garganta, travando tudo. Eu olhei pra Analu e vi o choque nos olhos dela, seguido por aquela expressão mole que as mulheres têm quando veem criança. Ela sorriu, aquele sorriso lindo que mostrava os dentes perfeitos. — Oi, lindinho. — ela falou pro Zyon, com uma voz doce que eu nunca tinha ouvido ela usar. Zyon, o s*******o, ficou me olhando, depois olhou pra ela, e deu um sorrisão de orelha a orelha. — Você é namorada dele? Aí veio a facada. A de verdade. Gabi apareceu do nada, com aquele jeito de cansada eterna que ela tinha desde que Zyon nasceu. — Zyon, não pode sair correndo assim, menino... — ela falou, e aí viu a cena. Eu, Analu, a mão que eu tinha tirado da coxa dela tão rápido que quase derrubei o refri. O olho da Gabi ficou esperto. Ela me conhece. Conhece demais. Analu ainda tava sorrindo, confusa. — Que menino lindo! É seu sobrinho, Cayo? Gabi riu. Uma risada seca, daquelas que não tem alegria nenhuma. — Sobrinho não, moça. É filho dele. E eu sou a Gabi, mãe dele. Ela botou a mão no ombro do Zyon, possessiva. Dá pra explicar o que é ver um mundo desmoronar nos olhos de alguém? Porque foi isso. A expressão da Analu mudou da doçura pra confusão, da confusão pra decepção, e da decepção pra raiva. Uma raiva tão fria que até eu, que já levei porrada de homem bêbado, senti medo. — Filho? — ela sussurrou, e a palavra saiu cortante. — Analu, deixa eu explicar. — eu comecei, mas a Gabi cortou. — Explicar o quê, Cayo? Que tá saindo com uma patricinha enquanto eu tô em casa criando seu filho? Que tu aparece com mulher em shopping? A voz dela tava ficando alta, e as pessoas nas outras mesas já estavam olhando. Zyon sentiu a tensão e se apertou mais contra mim. — Papai...? — Gabi, por favor. — eu falei, baixinho. — Não é o lugar. — O lugar é a sua cara, Cayo! Sempre foi! Analu se levantou. Devagar. Como se cada movimento doísse. Ela pegou a bolsa, e eu vi que a mão dela tava tremendo. Os olhos azuis, que há minutos estavam cheios de luz, agora estavam opacos, vidrados. — Você é casado. — ela disse. Não era pergunta. Era uma sentença. — Não! Não sou casado! A Gabi e eu... nós não estamos mais juntos. Zyon é meu filho, mas... — Mas você não achou que valia a pena me contar. — ela completou, e a voz dela tava tão fria que até o Zyon se arrepiou. — Eu ia te contar, Analu. Juro. Só tava esperando... — O quê? Esperando o que, Cayo? Ele fazer dezoito anos? Ela olhou pro Zyon, e pela primeira vez, vi uma expressão de pena no rosto dela. Pena de mim. E isso doeu mais que tudo. Gabi ficou olhando, com um sorrisinho amargo de quem tá vendo o circo pegar fogo e sabia que ia acontecer. — Vem, Zyon. — a Gabi puxou ele, mas o menino grudou em mim. — Quero ficar com o papai! Aquela frase, naquela hora, foi a pior coisa que podia ter acontecido. Analu viu aquilo e eu vi o resto dela desmoronar. Ela viu que eu era um pai. Um pai de verdade, com um filho que me amava. E eu tinha escondido isso dela. — Analu, por favor. —eu me levantei, tentando chegar perto dela, mas ela recuou como se eu tivesse lepra. — Nem chega perto. — ela falou, e as lágrimas começaram a escorrer, mas ela não chorou. Ela deixou cair, como se não importasse mais. — Tudo entre a gente foi mentira. — Não foi! Nada foi mentira! Só não te falei sobre o Zyon porque... porque eu sabia que ia assustar você. Que uma patricinha como você não ia querer um cara como eu, com um filho, com uma vida bagunçada... — Você acha que é sobre você ter filho, Cayo? — Ela riu, uma risada amarga que não combinava com ela. — É sobre você ter me escondido! Sobre eu me abrir pra você, contar tudo da minha vida, e você guardar isso! Eu me senti... me senti a amante! A sua p**a escondida! As palavras dela ecoaram na praça de alimentação. Até a Gabi ficou quieta, olhando. Zyon começou a chorar. — Papai, por que a moça tá brava? Aquilo partiu meu coração em mil pedaços. Meu filho chorando, a mulher que eu amava me odiando, e a ex no meio, olhando. O circo completo. — Analu, eu te amo. — eu falei, e pela primeira vez, falei aquilo em voz alta. No meio do shopping, com todo mundo olhando. — Eu te amo, e escondi porque tinha medo de te perder. Ela olhou pra mim, e por um segundo, vi algo nos olhos dela. Algo que tremeu. Mas então ela olhou pra Gabi, pra Zyon, e a dureza voltou. — Você já me perdeu, Cayo. — ela falou, baixinho. — Tudo que a gente tinha era confiança, Cayo. E você quebrou. Não existe mais nada. Ela virou as costas e começou a andar. Cada passo que ela dava era como se arrancasse um pedaço de mim. Eu não aguentei. Deixei o Zyon com a Gabi e corri atrás dela. — Analu, por favor! Na escada rolante, eu alcancei ela. Peguei seu braço, e ela se virou. Os olhos dela estavam vermelhos, cheios de uma dor que eu tinha colocado ali. — Eu nunca te pedi nada, Cayo. Só honestidade. Você me fez de trouxa. Eu, que sempre soube que você era tudo que meu pai odiava, te defendi. Achei que você era diferente. Mas você é pior. É um covarde. Covarde. A palavra entrou em mim como uma bala. — Deixa eu explicar direito. A Gabi e eu somos separados, não temos nada. O Zyon mora com ela, eu vejo ele fim de semana... Eu pago pensão, eu amo meu filho, mas não tô com ela... — E porque o que ela falou não parece ser de alguém separada, Cayo? Eu engoli seco. — Ela... ela é louca. É ciumenta. A gente tem uma relação complicada... — Pare. — ela cortou. — Só para. Toda explicação sua tá me dando mais nojo. Você não só me escondeu que tem um filho, como ainda tá envolvido com a mãe dele. Eu não sou trouxa, Cayo. Acabou. Ela entrou no elevador, e eu fiquei lá, parado, vendo as portas se fecharem. A última coisa que vi foi o rosto dela, cheio de lágrimas, e ela dizendo, baixinho, mas eu ouvindo perfeitamente. — Nunca mais quero ver você na minha vida. Voltei pra mesa como um zumbi. A Gabi tava tentando acalmar o Zyon, que ainda tava inquieto. — Viu o que você fez? — ela falou, mas sem raiva agora. Quase com pena. — Gabi, por que você fez isso? — Porque você tá vivendo uma fantasia, Cayo! Você e essa menina rica? Você acha que a família dela ia deixar? Que ia acabar bem? Tô te fazendo um favor. Um favor. Ela tinha destruído a única coisa boa na minha vida e chamava de favor. Peguei o Zyon no colo. Ele enterrou o rostinho no meu pescoço, ainda chorando. — O que eu fiz, pai? A moça foi embora brava com a gente? — A moça foi embora brava comigo, migo. Não com você. Você não fez nada campeão. — Eu gostei dela, ela é linda. — ele sussurrou. — Eu também, filho. Eu também. Na moto, voltando pra casa da Gabi, com o Zyon abraçado em mim, eu pensei em tudo. Na Analu, no seu cheiro, no jeito que ela ria, no modo que ela me olhava como se eu fosse alguém. Alguém que não era um motoboy com um passado complicado e um filho pra criar. Ela tinha razão. Eu era um covarde. Tive medo de contar e perder ela. E no fim, perdi justamente por isso. Quando deixei o Zyon na casa da Gabi, ela me olhou na porta. — Cayo... me desculpa. Eu não quis... — Quis, sim. Não se Fassa de sonsa.— eu falei. — E deu certo. Acabou. Fechei a porta e fui embora. Na moto, sem a minha Analu na garupa, o mundo parecia mais vazio. Mais barulhento. E eu tinha certeza de uma coisa: tinha perdido a única pessoa que fazia eu querer ser melhor do que eu era. E o pior é que eu mereci.
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