Eu sei que não é assunto meu, mas não consigo ficar parada diante disso.

1890 Words
ISABELLA Depois de deixar Zoe no carro, segui para buscar Kalleb no consultório de psicologia. Assim que ele saiu, percebi imediatamente sua postura fechada. A cabeça baixa, os ombros caídos, os olhos presos ao chão, sem dirigir um único olhar a ninguém. Ele não disse uma palavra. Fiquei parada, observando-o, sem saber exatamente o que fazer. Eu sabia que não deveria interagir demais, que meu papel era apenas cuidar. Mas, ao mesmo tempo, não conseguia afastar a sensação de que havia algo errado. Me abaixei na frente dele, tentando captar qualquer sinal de comunicação. — Ei, está tudo bem? — perguntei suavemente. Nenhuma resposta. Seus olhos permaneceram no chão, vazios, sem emoção. Uma dor sutil se instalou no meu peito. Uma tristeza profunda. Eu não podia simplesmente deixá-lo assim. Não podia me afastar sem tentar. Mas também sabia que existiam limites que eu não poderia ultrapassar. Respirei fundo, me levantei e, sem convicção, disse: — Vamos… Mas, por dentro, eu estava insatisfeita. Eu sabia que aquela era a maneira como as coisas funcionavam ali. Sabia que deveria me manter na minha, que não era minha função interferir. Mas… Não conseguia ignorar. Era como se aquelas crianças estivessem sendo treinadas para não sentir. Para não demonstrar emoção alguma. E isso me feriu mais do que eu queria admitir. --- Os dias seguintes passaram rapidamente, mas a sensação de desconforto só aumentava. O que mais me incomodava era ver o quão infelizes aqueles dois eram. Eu observava, tentava me manter distante, como me foi ensinado. Mas não conseguia ignorar os pequenos gestos, as expressões sutis em seus rostos, as palavras não ditas. Zoe e Kalleb estavam presos. Limitados por algo que nem mesmo conseguiam entender direito. E então… comecei a notar algo estranho. As flores da casa. Todos os dias, os funcionários as trocavam com cuidado e zelo. Mas, sem importar o tempo ou os cuidados, as flores murchavam rapidamente. Definhavam em horas. Era um ciclo constante. Um dia, enquanto algumas funcionárias estavam sendo trocadas e eu cuidava das crianças, algo me chamou a atenção. Um vaso com flores murchas na sala. Fiquei encarando aquilo por minutos. Havia algo errado. Algo dentro de mim gritava que eu não deveria ignorar aquele padrão. E então, sem pensar muito, decidi levar o vaso comigo para casa. Talvez… só talvez… algo diferente acontecesse. --- Assim que cheguei ao meu apartamento, coloquei as flores na bancada da cozinha. Fiquei ali, observando-as. Passei os dedos pelas pétalas ressecadas, sentindo a textura áspera, como se elas estivessem tentando me contar algo. Aquilo era simbólico. Tão irônico. Murmurei baixinho, quase para mim mesma: — Por que você morre todos os dias ali? Era uma pergunta sem resposta. Mas, de alguma forma, expressava o que eu sentia. Naquela casa… tudo morria. Tudo perdia cor, perdia vida com o tempo. E os filhos de Kaio… eram a verdadeira expressão dessa morte lenta. Dessa ausência de sentimentos, desse vazio constante. Eu não sabia o que poderia fazer. Mas não ia permitir que aquele ambiente engolisse mais vidas. Eu não podia. Suspirei fundo e tentei seguir minha rotina. Banho. Jantar. Uma boa noite de sono. Mas minha mente não parava. Deitada na cama, com a cabeça no travesseiro, os pensamentos voltaram para os pequenos. A forma como eram tratados. Como o próprio pai era ausente. Kaio educava as crianças com regras e rotina. Era como se estivesse sempre as distraindo, impedindo que sentissem falta do que realmente importava. Era frio. Robótico. Um homem sem coração. Afastei esses pensamentos. Eu não podia me envolver emocionalmente. Principalmente com aquele homem. Decidi que a melhor saída era dormir. Outros dias desafiadores viriam, e eu precisaria estar preparada para cada escolha que fizesse. --- Na manhã seguinte, acordei com uma sensação estranha. Assim que entrei na cozinha, travei. As flores… Aquelas mesmas flores que haviam murchado na casa de Kaio estavam ali, vivas e deslumbrantes. Suas pétalas estavam brilhando. Frescas. Como se nunca tivessem morrido. Me aproximei, tocando delicadamente as folhas, sentindo a textura suave e cheia de vida. Como isso era possível? Elas haviam definhado no dia anterior. E agora… estavam revigoradas. Fiquei ali, encarando-as. Tentando entender. — Como? — sussurrei. Como elas morriam todos os dias na casa de Kaio, mas aqui… estavam vivas? Algo não estava certo. E então… A ficha caiu. O problema nunca foram as flores. Nem os cuidados que tinham com elas. Era aquela casa. Aquele ambiente. Um arrepio subiu por minha espinha. Tudo naquele lugar era… errado. Horripilante. Bizarro. --- Passei a semana seguinte tentando me concentrar no trabalho e nos cuidados com as crianças, mas não podia ignorar a sensação de que algo estava errado na casa de Kaio. Ele, como sempre, nunca aparecia. Era um fantasma, uma presença invisível, sempre presente de alguma forma, mas nunca fisicamente ali. Chegava após meu turno e saía antes de eu chegar. Como se estivesse tentando se esconder ou, talvez, como se a casa fosse uma extensão dele, um lugar em que se sentia seguro, livre de ser visto. Ele nunca tirava folga, nunca aparecia de forma alguma. Eu nem sabia quando descansava. Naquele dia, mais uma vez, levei as crianças para o balé e para o psicólogo. Zoe, com sua expressão fechada, parecia tão distante, tão isolada do mundo ao seu redor. O menino, ainda em seu silêncio profundo, com os olhos vazios, parecia mais uma sombra do que uma criança. Eram como ecos das coisas erradas naquela casa. Enquanto assistia Zoe dançar, a agitação e a perfeição de seus movimentos me impressionaram ainda mais, mas a dor dentro de mim só aumentava. Ela dançava como uma profissional, com a precisão e a beleza de uma criança que não tinha a liberdade de brincar ou sorrir. Tudo era perfeito, mas não era saudável. Ela não era feliz, e nem o menino parecia ser. Olhei ao meu redor enquanto ela dançava, observando cada detalhe da sala e da casa. A cor parecia desaparecer ali. A energia estava carregada, pesada, como se o ar fosse espesso demais para respirar. O que tinha naquela casa? Por que tudo parecia estar morrendo ali? Por que aquelas crianças pareciam viver dentro de uma prisão dourada, onde tudo o que era bonito e vivo estava sendo aprisionado? Eu precisava fazer algo. Mesmo que fosse contra todas as normas, contra tudo o que me disseram para fazer, algo dentro de mim dizia que eu não podia apenas ficar ali, observando. Sabia que o emprego era importante. Precisava dele, precisava do dinheiro, mas, ao mesmo tempo, não podia deixar aquelas crianças passarem por aquilo sozinhas. Elas precisavam de alguém que enxergasse sua dor, alguém que tentasse, ao menos, aliviar um pouco o peso em seus corações. A decisão estava tomada. Eu não seria mais uma funcionária qualquer na vida delas. Não seria mais uma das muitas pessoas que apenas passavam, que olhavam para elas sem realmente vê-las. Eu faria algo diferente. Mesmo que fosse escondido. Mesmo que fosse por conta própria. Eu sabia que Kaio nunca saberia. Ele estava tão distante, tão ausente, que me permitia ter a liberdade de agir sem ser vista. Mas eu estava determinada. As crianças mereciam mais do que essa prisão silenciosa em que viviam. Mereciam sentir alegria, o sol em seus rostos, as cores da vida. E, se eu pudesse dar isso a elas, eu daria. Mesmo que tivesse de fazer tudo de maneira discreta, tudo em segredo, eu faria de tudo para que soubessem que não estavam sozinhos. Enquanto Zoe terminou sua aula de balé e o menino se manteve em seu silêncio profundo durante a sessão de psicologia, percebi que aquele era apenas o começo. Eu tinha algo em mente, algo que poderia mudar a forma como as coisas estavam ali. Eu faria algo por aquelas crianças. Mesmo que isso significasse enfrentar os fantasmas de uma casa onde o dono nunca mostrava o rosto, eu faria. E isso me dava força. Após um longo dia de compromissos e tensão, finalmente trouxe as crianças de volta para casa. Kalleb, como sempre, foi direto para o quarto, um reflexo da sua solidão. Eu sabia que ele se trancava ali para fugir do mundo, então esperei um tempo antes de me aproximar. Não queria parecer intrusiva, mas algo me dizia que ele precisava de companhia. Quando entrei no quarto, ele estava sentado, concentrado em um desenho. Círculos pretos, sem nenhum padrão claro, apenas figuras abstratas que não faziam sentido, mas eu podia sentir que ele estava se expressando de algum jeito. Sentei ao seu lado, suspirando com suavidade. — Está muito bonito o seu desenho. Falei com um tom suave, tentando quebrar o silêncio denso entre nós. Ele não respondeu, como esperado, mas algo no ar parecia um pouco mais leve. — Você se parece muito com sua mãe. Já disseram isso? Ele acenou com a cabeça, como se aquela fosse uma verdade aceita, mas sem palavras. Foi um pequeno avanço, e me fez sentir um pouco mais conectada a ele, mesmo que ainda estivesse longe de uma resposta verbal. Foi então que Zoe entrou no quarto, e, por um momento, minha respiração falhou. Eu não esperava que ela aparecesse ali. Ela fechou a porta e entrou, sentando ao lado de Kalleb. Por um instante, parecia que queria me dizer algo, mas não o fez. Apenas me olhou com uma expressão de curiosidade. — Ele não fala muito — disse, sua voz suave e um pouco triste. Eu sorri fraco, tentando aliviar a atmosfera. — Bom, às vezes o silêncio é bom mesmo. Respondi, tentando fazê-la entender que não havia nada de errado no fato de ele não falar. Não era uma falha, era apenas a forma dele de ser. De repente, Kalleb parou de desenhar. Olhou para mim, não com palavras, mas com os olhos. Seus olhos falavam mais do que qualquer palavra que ele poderia dizer. Vi um mundo de dor e silêncio ali, algo que ninguém tinha ouvido antes, algo que nenhuma palavra poderia capturar. Ele precisava de mais do que qualquer psicólogo poderia oferecer. Precisava de alguém que realmente o visse, que o entendesse. Com o coração apertado, passei a mão pelos cabelos de Kalleb, de forma suave, quase como um toque de carinho. — Se quiser conversar, tem uma amiga aqui. Não precisa falar, pode ser por cartas também. Senti que aquelas palavras eram mais para mim mesma do que para ele. Era uma promessa silenciosa de que ele não estava sozinho. Então, olhei para Zoe, que observava tudo em silêncio. — Você também. Acrescentei com um sorriso amigável. Zoe sorriu, e percebi como aquele sorriso era raro nela. — O papai… não deixa a gente ter amigos aqui. As palavras dela cortaram como facas, mas tentei manter a calma. Com um sorriso fraco, disse: — Vai ser nosso segredinho. Naquele momento, algo dentro de mim se fechou e, ao mesmo tempo, se abriu. Eu sabia que aquelas crianças estavam presas em uma teia de solidão que nem mesmo o amor poderia desfazer facilmente. Mas eu faria minha parte. Mesmo que fosse apenas uma pequena mudança no dia delas, eu faria de tudo para ser a amiga que precisavam. Eu faria tudo o que fosse possível para dar a elas, ao menos, um pedaço de felicidade. E isso, mesmo em segredo, era o que eu sabia que precisava fazer.
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