Sem título

1884 Words
ISABELLA O sol ainda nem havia nascido completamente quando despertei, meu coração acelerado com a expectativa de mais um dia naquela casa. Algo dentro de mim dizia que eu deveria ficar, seguir o ritmo daquele lugar e cumprir meu papel. Mas, ao mesmo tempo, uma sensação desconfortável me consumia. Como se houvesse algo não dito, algo oculto, que se manifestava nos pequenos detalhes. E, de alguma forma, eu sabia que o centro de tudo eram as crianças. Diante daquela mansão imponente, inspirei fundo. Era uma construção extensa e luxuosa, mas havia algo de frio e distante em sua grandiosidade. — Isabella? A voz de Matilda, a governanta, me trouxe de volta dos devaneios. — Sim? — respondi rapidamente. — Me acompanhe. A Elza está lhe aguardando. Acenei, seguindo seus passos. Enquanto caminhava, observei as flores do jardim. Eram exuberantes, cheias de vida. Mas, ao adentrar a casa, notei as mesmas flores dispostas em vasos pelo interior. Só que ali, elas estavam murchas. — Matilda, não é? — perguntei, ainda encarando as pétalas amareladas. Ela confirmou com um leve aceno de cabeça. — Essas flores são as mesmas que estão na entrada? Matilda seguiu meu olhar. As rosas, antes tão vibrantes, pareciam definhar mesmo sob cuidados visíveis. — Ah, sim... São rosas Bolero, lindas... Eram as favoritas da— Ela se interrompeu bruscamente, seu semblante endurecendo. — Bom, são cultivadas há muito tempo nesta casa. Tentei não parecer curiosa, mas a estranheza da situação se instalou em minha mente. — Elas parecem não durar muito tempo depois de colhidas… Ou estão há dias expostas? Matilda hesitou antes de responder: — São trocadas todos os dias. É uma ordem do senhor Kaio. Senti meu corpo enrijecer. Algo não fazia sentido. Antes que pudesse questionar mais, Matilda parou abruptamente, virando-se para mim com um sorriso fechado e um olhar sutilmente repreensivo. — Há coisas que não devemos perguntar aqui, Isabella. Compreendi o recado. — Entendido. Me desculpe se fui invasiva. — Imagina… — Ela tentou suavizar o tom. — Mas um conselho: nesta casa, cada funcionário tem o seu lugar. Cumprimos nossos horários sem ultrapassar nenhum limite. E é exatamente por isso que o senhor Kaio nos mantém aqui. Assenti, um desconforto crescente se instalando em mim. Matilda suspirou, seu olhar perdido por um breve instante. — A babá é quem mais passa tempo com as crianças. Você terá muito contato com elas… Então, apenas tome cuidado. Aquelas palavras me deixaram inquieta. — Eu terei. Ela apenas sorriu, mas era um sorriso melancólico, como se ela própria não aceitasse certas coisas, apenas as suportasse. Seguimos em silêncio até encontrarmos Elza, a babá noturna. — Olá, Isabella. Bom dia! — saudou Elza com um sorriso acolhedor. — Bom dia! Trocamos um cumprimento rápido, e seu semblante mudou sutilmente ao continuar: — Conversei com as crianças ontem à noite. Elas sabem que você será a nova babá… Havia um tom de alerta em sua voz. — Só tenha paciência. Isso não me tranquilizou. Antes que eu pudesse processar o aviso, os dois apareceram no topo da escada. Meu olhar encontrou os deles instantaneamente. Matilda aproveitou o momento para se afastar. — Venham, crianças. O café da manhã está pronto. Hoje teremos um longo dia. Nenhum deles olhou para mim. Elza estendeu um papel para mim. Peguei-o e observei a rotina meticulosamente organizada: balé, psicólogo, natação, escola… Horários sobrepostos, sem espaço para pausas. — Com o tempo, você se acostuma. Siga essa rotina por enquanto, e dará conta. Não questionei nada, embora minha mente estivesse fervilhando de perguntas. — Obrigada. Elza sorriu antes de se despedir. Sozinha, encarei o papel em minhas mãos e soltei um longo suspiro. — Vamos nessa… Caminhei até a cozinha, onde as crianças haviam ido. Era um ambiente deslumbrante. O branco predominava, com lustres luxuosos, móveis planejados e uma enorme bancada. O piso marmorizado refletia minha imagem, tamanha sua perfeição. Pequenos detalhes dourados enriqueciam a decoração, e a iluminação natural fazia tudo parecer ainda mais elegante. Matilda me observou por um instante e então acenou para que eu me aproximasse. As crianças estavam sentadas à mesa, tomando um café da manhã impecavelmente servido: frutas frescas, panquecas, variedades de geleia. Matilda pigarreou antes de anunciar: — Crianças, esta é Isabella. Sua nova babá. Pela primeira vez, eles me olharam. A menina, em especial, sustentou meu olhar por um tempo maior do que eu esperava. Seus olhos brilharam com algo indefinível, mas ela não disse nada. — Olá… Vocês lembram de mim? — arrisquei perguntar. Matilda franziu a testa, visivelmente surpresa. O menino, que até então mantinha a cabeça baixa, ergueu o olhar. Foi sutil. Quase imperceptível. Mas aconteceu. Um pequeno sorriso. Um simples e discreto sorriso que fez meu coração vacilar. Eu não sabia o que sentia naquele instante. Mas eu juro… Juro que meu corpo todo se arrepiou. Minhas pernas tremeram levemente. E, por um segundo, eu senti. Era amor. .... Encarei aqueles olhinhos inocentes, tão carentes, tão amáveis… Foi uma das sensações mais intensas que já senti. Era como sentir paz e, ao mesmo tempo, angústia. — Você é a nova babá? — A voz da menina soou hesitante. Acenei em confirmação, esboçando um pequeno sorriso. Era tudo que eu conseguia fazer diante deles. — Já conhece as crianças? — A pergunta de Matilda me trouxe de volta ao presente. Pisquei, despertando do transe. — Sim. Eu os conheci quando vim para a entrevista. Olhei novamente para os dois, que ainda me observavam com expectativa, mas sem nenhuma expressão real. Eram tão travados… tão contidos. Matilda pigarreou, retomando o controle da situação. — Vocês terminaram? Isabella vai levar vocês para o banho e ajudá-los a se arrumar. Não podem se atrasar. Sem questionar, eles se levantaram quase de forma mecânica. Meu coração se apertou ao vê-los tão adestrados, tão programados para obedecer. Aquela casa, tão grandiosa e imponente, deveria transbordar alegria, cor… Mas tudo que vi foram duas crianças vestindo pijamas fofos de animais, que deveriam refletir sua infância e inocência, mas que, naquele cenário, pareciam apenas uma fachada. Eles seguiram o mesmo caminho que havíamos percorrido antes. Olhei para Matilda, que apenas acenou, indicando que eu deveria acompanhá-los. E eu fui. O silêncio no corredor era denso, opressor. Subimos até os quartos, e assim que chegamos, os meninos entraram nos respectivos cômodos sem dizer nada. — Eu vou esperar vocês. — murmurei. O garoto fechou a porta atrás de si, e a menina hesitou antes de fazer o mesmo, lançando-me um olhar indecifrável antes de desaparecer. Suspirei profundamente, levando a mão ao peito, como se pudesse arrancar aquela sensação de angústia que crescia dentro de mim. O que era aquilo? A inquietação me dominava, mas tentei afastá-la. Entrei no quarto e fiz o que me foi instruído: separei as roupas deles e deixei sobre a cama. Não demorou muito para que os dois saíssem. Comecei a vesti-los, escovando seus cabelos com cuidado. — E então, você não me disse seu nome… — tentei puxar conversa com o menino, buscando um mínimo de proximidade. Mas ele não respondeu. Seus cabelos castanhos eram lisos e caíam levemente sobre sua testa, combinando perfeitamente com seus olhos grandes e atentos. — Você não é muito de conversar, não é? Antes que ele pudesse reagir, Zoe respondeu por ele: — Ele não fala. Olhei para ela rapidamente. — Fala para ela, Kalleb. O menino apenas abaixou a cabeça. — Viu? Ele não fala. Toquei seus cabelos com delicadeza, sentindo que havia muito mais naquela situação do que parecia à primeira vista. — Então, seu nome é Kalleb? Ele continuou sem me encarar. — É um nome muito bonito. Sorri, tentando me aproximar de alguma forma. — O meu é Isabella. Eu não consegui dizer no dia da entrevista. Ele se afastou lentamente, pegando um pequeno boneco sobre a cama. Suspirei e me voltei para Zoe. Quando levantei a escova para pentear seu cabelo, ela imediatamente se afastou. — Eu sei fazer! Me assustei um pouco com sua reação defensiva. — Tudo bem. Entreguei a escova, e ela se aproximou do espelho, penteando os próprios cabelos com precisão. Observei os dois em silêncio. A distância entre nós parecia uma muralha impenetrável. Está tudo bem… É meu primeiro dia. Eu não posso esperar muito. Fechei os olhos por um instante, respirando fundo. Lembrei-me de Jared. Foi tão difícil com ele… Ele me comparava o tempo todo com sua mãe. Dizia que eu nunca seria como ela. Que não era ela. Foi traumatizante. Mas aqui… Aqui era diferente. Eles não falavam. Não reagiam. Não sabiam expressar o que sentiam. Zoe terminou de se arrumar e se virou para mim, deixando a escova sobre a cama. — Já estamos prontos, babá. Assenti, acompanhando-os até a saída. Matilda nos aguardava no térreo, conversando com um funcionário que parecia ser o motorista. Quando nos viu, se aproximou. — Temos um motorista, mas fui informada de que você sabe dirigir. É isso? — Sim, sei sim. — Há um carro à sua disposição, caso prefira levá-los. Se não quiser, o motorista estará disponível. Aquilo me pegou de surpresa. — O senhor Kaio deixou que você escolhesse. Ele não gosta de atrasos, e considerando que você teria que vir todos os dias de transporte público… Ela apontou para um veículo um pouco mais afastado. — É aquele? — perguntei. Matilda confirmou com um aceno. Era um Toyota Corolla preto. Pisquei, ainda assimilando a situação. — Bom… Não quero atrapalhar o serviço do motorista e nem arriscar atrasos, então… — Olhei para as crianças antes de continuar: — Me responsabilizo pelo carro. — Ótimo. O motorista se afastou para buscar o veículo. O carro parou à minha frente e, ao abrir a porta para que eles entrassem, fiquei surpresa. Ele era totalmente adaptado para crianças. Os bancos possuíam assentos ajustáveis, e pequenas telas já exibiam desenhos animados. Matilda me ajudou a acomodá-los e, logo, me vi sentada ao volante. O cheiro de essência misturado a couro sintético e plástico novo invadiu minhas narinas. A limpeza impecável deixava no ar um aroma de tecidos recém-higienizados. Segurei o volante, tentando não parecer boba diante da situação. Acabei de receber um carro? É isso mesmo? Sacudi a cabeça, afastando o pensamento. Liguei o motor e segui o trajeto. — A primeira parada foi no consultório da psicóloga, onde deixei Kalleb. Depois, segui para o balé com Zoe. Ela não estava com a roupa apropriada, já que era apenas um ensaio normal. Mas, assim que começou a dançar, fiquei estupefata. Seus movimentos eram fluidos, precisos. Suas piruetas, perfeitas. Mas havia algo errado. Não havia brilho em seus olhos. Diferente de outras crianças que dançavam com alegria, Zoe se movia como se estivesse cumprindo uma obrigação. Como se aquilo não fosse arte, nem diversão. Apenas uma imposição. O coração apertou no peito. Após a aula, me aproximei. — Você dança muito bem, Zoe. Ela me olhou, e por um instante, algo dentro dela cedeu. Um pequeno sorriso surgiu em seu rosto. E então, como se aquele simples gesto carregasse um peso imensurável, ela pegou minha mão. Um arrepio percorreu minha espinha. Aquele toque… Era muito mais do que um gesto casual. — Vamos? — murmurei. — Humm-hum. Respirei aliviada. Era um pequeno passo… Mas, para mim, parecia um primeiro grande passo. ...
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