NARRADO POR MARINA
Quinta-feira, 09h42.
Acordei com a boca seca, o estômago revoltado e a alma pedindo água benta.
A luz do sol entrou pela janela com a delicadeza de um tapa de mãe em criança respondona. E eu? Eu rolei na cama igual um croquete vencido tentando fugir do arrependimento.
O celular vibrou.
Eu ignorei.
De novo.
Ignorei de novo.
Terceira vez. Tá. Peguei o maldito.
27 notificações.
> 3 da Rebeca
1 da minha mãe ("Bom dia, flor do dia! Já entregou currículo?")
23 de um grupo chamado "Currículo com Glitter"
Grupo? Que grupo é esse?
Cliquei.
Era um grupo que a Rebeca criou só pra me zoar. Título: “Quando a barraqueira manda currículo bêbada.”
> Rebeca: "ELA REALMENTE MANDOU.
Eu vi.
Eu tava lá.
Eu sou testemunha ocular da vergonha."
Rebeca: "Gente, e o PS3???
GLITTER NO DENTE, CARALHO."
Soltei um gemido.
Não era dor.
Era puro lamento existencial.
Levantei da cama como quem saiu de um ritual de exorcismo com ressaca.
Fui até o espelho do banheiro.
Cabelo igual ninho de pomba rebelde.
Maquiagem borrada tipo arte moderna.
E o batom… ainda no canto da boca.
Vermelho.
Aquele vermelho que grita: “falei merda e fui embora elegante”.
Escovei os dentes tentando tirar o gosto de cachaça com tristeza. Mas sabe o que não saiu?
O glitter.
Um pontinho brilhando no dente de trás, me encarando com cara de deboche.
— “Maravilha. A ressaca tá me julgando em HD.”
Voltei pro quarto.
Peguei o notebook jogado no chão como se ele fosse uma arma carregada. Liguei. Tremendo.
Tela inicial.
Senha.
Gmail.
Coração? Batendo igual tambor de escola de samba.
Quando a caixa de entrada abriu, eu soltei um berro.
Literalmente.
Um. Berro.
> 📩 Leonardo Verano — Grupo Verano
Re: Olha, só me contrata logo antes que eu desista da humanidade
Minha alma descolou do corpo e foi fazer um boletim de ocorrência.
Abri o e-mail com a mesma energia de quem vai receber o resultado do ENEM depois de marcar tudo na sorte.
> Marina,
Confesso: seu e-mail quase me matou.
De susto. De riso. De incômodo bom.
Vamos conversar.
Te espero amanhã, 10h, na sede da Verano.
P.S.: Não precisa vir de blazer.
P.S.2: Pode trazer o glitter. Só não traga tequila. Ainda é horário comercial.
— L.V.
Eu.
Tava.
MORTA.
— “REBECAAAAAAAAAAAAAAAA!”
Ela entrou no quarto correndo, com um pão na boca e o celular na mão.
— “O que foi, mulher?! Tá pegando fogo?!”
Eu levantei o notebook como Moisés levantando a tábua dos Dez Mandamentos.
— “ELE RESPONDEU!”
— “Quem?”
— “O CEO!”
— “QUE CEO???”
— “O DO CURRÍCULO GLITTER, p***a!”
Ela largou o pão. Caiu sentada na cama. Rindo igual uma bruxa bêbada.
— “TU TÁ DE BRINCADEIRA...”
— “ELE QUER ME ENTREVISTAR.”
— “MARINA...”
— “AMANHÃ. DEZ HORAS. NA VERANO. A EMPRESA DELE. ELE ME CHAMOU.”
— “...depois de ler aquilo?”
— “Sim.”
— “A parte do p*u pequeno?”
— “A parte do p*u pequeno.”
Silêncio.
E então…
Rebeca levantou o braço e disse:
— “EU SEMPRE ACREDITEI EM TI, RAINHA.”
E eu?
Eu comecei a rir e a chorar ao mesmo tempo.
— “Por que cê tá chorando, mulher?” — Rebeca perguntou, com a voz entre um riso e outro, limpando as lágrimas de tanto gargalhar.
Eu funguei, dramática, ainda segurando o notebook como se fosse o bebê Simba sendo apresentado à savana.
— “Porque é a primeira vez que alguém leu uma merda minha… e ao invés de me bloquear, me chamou pra entrevista!”
— “Isso é motivo pra comemorar, não pra chorar!”
— “Não tô chorando de tristeza, sua anta emocionada. Tô chorando de ESPANTO. De PÂNICO. De ‘como é que eu vou encarar um CEO milionário depois de escrever um e-mail com PS3, glitter no dente e oferecendo nude sem querer?’”
— “Tu não ofereceu nude. Tu só ameaçou. É diferente.”
— “E ainda chamei o chefe anterior de p*u pequeno. No plural implícito.”
Rebeca se jogou na cama de novo, gargalhando como se tivesse assistindo um stand-up gratuito com dose dupla de vergonha alheia.
Eu andava pelo quarto igual uma atriz mexicana prestes a soltar um “¡Dios mío!”.
— “E agora, Rebeca? O que eu vou vestir? O que eu vou dizer? Eu não sei me portar! Eu falo palavrão até pra agradecer elogio! Minha blusa mais formal tem a estampa de uma pin-up segurando um copo de cerveja!”
Rebeca levantou, cruzou os braços e disse com aquela pose de coach de barra de boteco:
— “Tu vai fazer o que tu sempre faz: vai ser TU. Porque foi essa versão glitterizada e alcoólica de ti que esse CEO aí quis conhecer. Então não vem me meter blazer com manga bufante que a gente sabe que tu soa mais falsa do que promessa de ex na recaída.”
— “Mas e se ele for sério? Tipo... que nem aqueles chefes que parecem saídos direto de uma planilha de Excel? E se eu errar o tom?”
— “Se ele for sério, azar o dele. Tu é o tom. Tu é a paleta de cor. Tu é o carnaval fora de época que ele não sabia que precisava.”
Fiquei parada.
Respirando fundo.
O coração ainda no modo “corrida de Fórmula 1 com os freios quebrados”, mas... pela primeira vez, animada.
— “Tá. Mas só me promete uma coisa.”
— “O quê?”
— “Se eu travar lá dentro, se eu gaguejar, se eu esquecer meu nome ou se eu tentar me esconder atrás de uma planta ornamental…”
— “...?”
— “Você invade o prédio, me sequestra, me joga dentro de um Uber e diz que eu fui convocada pra uma rave humanitária em prol dos gatos abandonados.”
Rebeca estendeu a mão com um sorriso.
— “Fechado. Pela honra do glitter no dente.” — Rebeca declarou, com aquele brilho no olhar de quem topa tudo por drama e memes.
Eu respirei fundo.
Olhei pro teto.
Depois pro espelho.
Depois pro chão.
E então soltei:
— “Mas amiga... e se ele também tiver p*u pequeno?”
Silêncio.
Rebeca arregalou os olhos. Parou. Me encarou como se eu tivesse invocado alguma entidade proibida do RH.
— “Não, pera... o quê?”
— “É sério. Vai que ele leu aquilo, se identificou e... sei lá, me chamou pra entrevista pra se vingar. Tipo... CEO com ego ferido é mais perigoso que ex com perfil fake no Instagram.”
— “MARINA.”
— “Vai que ele é o próprio Vítor. Só que com mais dinheiro e menos cabelo.”
— “MARINA.”
— “Rebeca, eu chamei o chefe de p*u PEQUENO. E agora vou encarar outro chefe. Pode ser hereditário! Pode ser... sei lá, uma irmandade!”
Rebeca jogou uma almofada na minha cara.
— “Mulher, cala essa boca antes que o universo te ouça! Que mania feia de atrair p*u problemático.”
— “É que eu sou um ímã, Rebeca. Um imã de rola problemática e chefe com complexo de superioridade.”
— “E tu acha que resolver isso é o quê? Meter tarô na entrevista? Fazer mapa astral do CEO?”
— “Não seria má ideia...”
Ela ignorou meu devaneio e já saiu do quarto batendo palminha.
— “Bora, palhaça. Tu tem vinte e quatro horas pra se transformar de ressaca ambulante em deusa criativa do LinkedIn.”
— “Tu acha que dá tempo?”
— “Dá. A gente só precisa de: um banho com sal grosso, duas doses de autoestima líquida e um look que diga ‘eu sou louca, mas dou resultado’.”
— “Acho que tenho essa camiseta...”
— “Não. Marina. Hoje é blazer. Mas com personalidade. Eu tenho um com estampa de oncinha discreta que vai te deixar com cara de quem morde PowerPoint.”
— “Se tiver ombreira, eu me jogo da janela.”
— “Não tem. Mas tem botão dourado.”
— “Perfeito. Vai combinar com meu brilho de glitter no dente e julgamento na alma.”
E assim começou o que Rebeca batizou de:
“Projeto: Enganando a Entrevista Com Charme e Deboche.”
Spoiler: envolveu depilação improvisada com gilete vencida, tentativa frustrada de delineado (fiquei com um olho Cleópatra e o outro Marlene Matos), e uma sessão de ensaio de sorrisos no espelho que acabou em gargalhada e cólica.
Mas quando a noite chegou...
Eu tava lá. Sentada na cama, de cabelo lavado, pele hidratada, coração disparado e uma única certeza:
Amanhã às 10h eu vou encarar o CEO.
Glitter no dente, p*u pequeno ou não.
Porque se ele me chamou... é porque alguma coisa nele também quer caos.
E nesse caos...
Sou PhD.