capítulo 6 Rebeca

1531 Words
NARRADO POR MARINA Quinta-feira, 09h42. Acordei com a boca seca, o estômago revoltado e a alma pedindo água benta. A luz do sol entrou pela janela com a delicadeza de um tapa de mãe em criança respondona. E eu? Eu rolei na cama igual um croquete vencido tentando fugir do arrependimento. O celular vibrou. Eu ignorei. De novo. Ignorei de novo. Terceira vez. Tá. Peguei o maldito. 27 notificações. > 3 da Rebeca 1 da minha mãe ("Bom dia, flor do dia! Já entregou currículo?") 23 de um grupo chamado "Currículo com Glitter" Grupo? Que grupo é esse? Cliquei. Era um grupo que a Rebeca criou só pra me zoar. Título: “Quando a barraqueira manda currículo bêbada.” > Rebeca: "ELA REALMENTE MANDOU. Eu vi. Eu tava lá. Eu sou testemunha ocular da vergonha." Rebeca: "Gente, e o PS3??? GLITTER NO DENTE, CARALHO." Soltei um gemido. Não era dor. Era puro lamento existencial. Levantei da cama como quem saiu de um ritual de exorcismo com ressaca. Fui até o espelho do banheiro. Cabelo igual ninho de pomba rebelde. Maquiagem borrada tipo arte moderna. E o batom… ainda no canto da boca. Vermelho. Aquele vermelho que grita: “falei merda e fui embora elegante”. Escovei os dentes tentando tirar o gosto de cachaça com tristeza. Mas sabe o que não saiu? O glitter. Um pontinho brilhando no dente de trás, me encarando com cara de deboche. — “Maravilha. A ressaca tá me julgando em HD.” Voltei pro quarto. Peguei o notebook jogado no chão como se ele fosse uma arma carregada. Liguei. Tremendo. Tela inicial. Senha. Gmail. Coração? Batendo igual tambor de escola de samba. Quando a caixa de entrada abriu, eu soltei um berro. Literalmente. Um. Berro. > 📩 Leonardo Verano — Grupo Verano Re: Olha, só me contrata logo antes que eu desista da humanidade Minha alma descolou do corpo e foi fazer um boletim de ocorrência. Abri o e-mail com a mesma energia de quem vai receber o resultado do ENEM depois de marcar tudo na sorte. > Marina, Confesso: seu e-mail quase me matou. De susto. De riso. De incômodo bom. Vamos conversar. Te espero amanhã, 10h, na sede da Verano. P.S.: Não precisa vir de blazer. P.S.2: Pode trazer o glitter. Só não traga tequila. Ainda é horário comercial. — L.V. Eu. Tava. MORTA. — “REBECAAAAAAAAAAAAAAAA!” Ela entrou no quarto correndo, com um pão na boca e o celular na mão. — “O que foi, mulher?! Tá pegando fogo?!” Eu levantei o notebook como Moisés levantando a tábua dos Dez Mandamentos. — “ELE RESPONDEU!” — “Quem?” — “O CEO!” — “QUE CEO???” — “O DO CURRÍCULO GLITTER, p***a!” Ela largou o pão. Caiu sentada na cama. Rindo igual uma bruxa bêbada. — “TU TÁ DE BRINCADEIRA...” — “ELE QUER ME ENTREVISTAR.” — “MARINA...” — “AMANHÃ. DEZ HORAS. NA VERANO. A EMPRESA DELE. ELE ME CHAMOU.” — “...depois de ler aquilo?” — “Sim.” — “A parte do p*u pequeno?” — “A parte do p*u pequeno.” Silêncio. E então… Rebeca levantou o braço e disse: — “EU SEMPRE ACREDITEI EM TI, RAINHA.” E eu? Eu comecei a rir e a chorar ao mesmo tempo. — “Por que cê tá chorando, mulher?” — Rebeca perguntou, com a voz entre um riso e outro, limpando as lágrimas de tanto gargalhar. Eu funguei, dramática, ainda segurando o notebook como se fosse o bebê Simba sendo apresentado à savana. — “Porque é a primeira vez que alguém leu uma merda minha… e ao invés de me bloquear, me chamou pra entrevista!” — “Isso é motivo pra comemorar, não pra chorar!” — “Não tô chorando de tristeza, sua anta emocionada. Tô chorando de ESPANTO. De PÂNICO. De ‘como é que eu vou encarar um CEO milionário depois de escrever um e-mail com PS3, glitter no dente e oferecendo nude sem querer?’” — “Tu não ofereceu nude. Tu só ameaçou. É diferente.” — “E ainda chamei o chefe anterior de p*u pequeno. No plural implícito.” Rebeca se jogou na cama de novo, gargalhando como se tivesse assistindo um stand-up gratuito com dose dupla de vergonha alheia. Eu andava pelo quarto igual uma atriz mexicana prestes a soltar um “¡Dios mío!”. — “E agora, Rebeca? O que eu vou vestir? O que eu vou dizer? Eu não sei me portar! Eu falo palavrão até pra agradecer elogio! Minha blusa mais formal tem a estampa de uma pin-up segurando um copo de cerveja!” Rebeca levantou, cruzou os braços e disse com aquela pose de coach de barra de boteco: — “Tu vai fazer o que tu sempre faz: vai ser TU. Porque foi essa versão glitterizada e alcoólica de ti que esse CEO aí quis conhecer. Então não vem me meter blazer com manga bufante que a gente sabe que tu soa mais falsa do que promessa de ex na recaída.” — “Mas e se ele for sério? Tipo... que nem aqueles chefes que parecem saídos direto de uma planilha de Excel? E se eu errar o tom?” — “Se ele for sério, azar o dele. Tu é o tom. Tu é a paleta de cor. Tu é o carnaval fora de época que ele não sabia que precisava.” Fiquei parada. Respirando fundo. O coração ainda no modo “corrida de Fórmula 1 com os freios quebrados”, mas... pela primeira vez, animada. — “Tá. Mas só me promete uma coisa.” — “O quê?” — “Se eu travar lá dentro, se eu gaguejar, se eu esquecer meu nome ou se eu tentar me esconder atrás de uma planta ornamental…” — “...?” — “Você invade o prédio, me sequestra, me joga dentro de um Uber e diz que eu fui convocada pra uma rave humanitária em prol dos gatos abandonados.” Rebeca estendeu a mão com um sorriso. — “Fechado. Pela honra do glitter no dente.” — Rebeca declarou, com aquele brilho no olhar de quem topa tudo por drama e memes. Eu respirei fundo. Olhei pro teto. Depois pro espelho. Depois pro chão. E então soltei: — “Mas amiga... e se ele também tiver p*u pequeno?” Silêncio. Rebeca arregalou os olhos. Parou. Me encarou como se eu tivesse invocado alguma entidade proibida do RH. — “Não, pera... o quê?” — “É sério. Vai que ele leu aquilo, se identificou e... sei lá, me chamou pra entrevista pra se vingar. Tipo... CEO com ego ferido é mais perigoso que ex com perfil fake no Instagram.” — “MARINA.” — “Vai que ele é o próprio Vítor. Só que com mais dinheiro e menos cabelo.” — “MARINA.” — “Rebeca, eu chamei o chefe de p*u PEQUENO. E agora vou encarar outro chefe. Pode ser hereditário! Pode ser... sei lá, uma irmandade!” Rebeca jogou uma almofada na minha cara. — “Mulher, cala essa boca antes que o universo te ouça! Que mania feia de atrair p*u problemático.” — “É que eu sou um ímã, Rebeca. Um imã de rola problemática e chefe com complexo de superioridade.” — “E tu acha que resolver isso é o quê? Meter tarô na entrevista? Fazer mapa astral do CEO?” — “Não seria má ideia...” Ela ignorou meu devaneio e já saiu do quarto batendo palminha. — “Bora, palhaça. Tu tem vinte e quatro horas pra se transformar de ressaca ambulante em deusa criativa do LinkedIn.” — “Tu acha que dá tempo?” — “Dá. A gente só precisa de: um banho com sal grosso, duas doses de autoestima líquida e um look que diga ‘eu sou louca, mas dou resultado’.” — “Acho que tenho essa camiseta...” — “Não. Marina. Hoje é blazer. Mas com personalidade. Eu tenho um com estampa de oncinha discreta que vai te deixar com cara de quem morde PowerPoint.” — “Se tiver ombreira, eu me jogo da janela.” — “Não tem. Mas tem botão dourado.” — “Perfeito. Vai combinar com meu brilho de glitter no dente e julgamento na alma.” E assim começou o que Rebeca batizou de: “Projeto: Enganando a Entrevista Com Charme e Deboche.” Spoiler: envolveu depilação improvisada com gilete vencida, tentativa frustrada de delineado (fiquei com um olho Cleópatra e o outro Marlene Matos), e uma sessão de ensaio de sorrisos no espelho que acabou em gargalhada e cólica. Mas quando a noite chegou... Eu tava lá. Sentada na cama, de cabelo lavado, pele hidratada, coração disparado e uma única certeza: Amanhã às 10h eu vou encarar o CEO. Glitter no dente, p*u pequeno ou não. Porque se ele me chamou... é porque alguma coisa nele também quer caos. E nesse caos... Sou PhD.
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