Percepção

1137 Words
Não sei ao certo o que me fez ir para a casa dela. Mas eu não podia ir embora sem saber quem era aquela garota. Quanto mais ela falava sobre sua vida, mais interessado eu ficava. Meu sangue gelou nas veias quando ela perguntou sobre o acidente. Odiava este assunto ainda mais do que odiava estar nessa cadeira de rodas. Mas ao contrário do que imaginei ao vê-la me defender do tal Ceará, ela não me tratou com diferença, não me ajudou porque teve pena de mim. Ela fez isso porque a cidade estava realmente perigosa. Eu desconhecia o quanto os pelotões faziam parte disso. Eu havia dado ordens para usarem a força se necessário fosse, para conter quaisquer que fossem os problemas causados. Mas ao que parecia, os problemas não estavam sendo resolvidos. O guisado da dona Tânia fora a melhor refeição que comi em anos. Me constrangi de ocupar a cama de Dill, mas era minha melhor opção ou ela dormiria na sala. Essa garota está fazendo surgir um lado de mim que morreu a muito tempo. Depois daquele acidente tornou-se fácil não me importar com ninguém, eu era a vítima afinal. Eu era o pobre coitado. O pobre garoto rico que ficou aleijado. Esse era eu. A percepção de que eu ainda podia sentir algo me deixou no mínimo amedrontado. Sempre fui cercado por garotas exuberantes, que ainda que eu estivesse nessa cadeira de rodas não hesitariam em se casar comigo. Mas esse era o problema para mim. Elas eram exuberantes e lindas, mas eu não era um homem para elas, e sim uma mina de ouro. Não, não era esse tipo de mulher que eu queria. Eu queria alguém como Dill. O que eu estava dizendo? Eu m*l a conhecia. Acordei na manha seguinte como se tivesse dormido por semanas. A minha disposição me espantou. Geralmente acordava m*l humorado. Ela não estava mais no chão onde dormira. Não havia o menor vestígio de que alguém houvesse passado a noite ali. Puxei minha cadeira e subi nela. Fui até o banheiro para fazer minha higiene matinal. Quando voltei para o quarto ela arrumava a cama e se sentou nela. -Bom dia. -Bom dia. Eu poderia fazer isso. Você não é um dos meus... você não tem que fazer. -É mania. Você fala estranho. Parece que nasceu em berço de ouro. -E nasci...mas acabei por cair dele. Em certo ponto era verdade. Nasci rico. Mas meus pais gastaram toda a fortuna dos meus avós antes que eu chegasse na adolescência. Construí um patrimônio do nada. Apenas com um imóvel que meu avô me deixou. Eu o vendi e investi o dinheiro. Acho que foi por causa dessa história que ganhei as eleições. Os brasileiros confiaram que eu melhoraria as finanças do país, assim como fiz com as minhas. Eu o fiz. Mas essa melhora apenas se aplicava a parte da população que apoiava o meu governo. Quem não apoiava ficava com as sobras. É assim que eu sou. Ou você está comigo, ou está contra mim. Dill se levantou da cama, ela ainda usava a roupa da noite anterior. - Mamãe está chamando para o café. -Obrigado, mas preciso ir. -Ainda é cedo. Tome café conosco e vou contigo até a estação de trem. Minha mãe fez muffins especialmente para você. Ela acha que somos namorados. - Ela acha? -Acha. O café da manhã na casa de dona Tânia estava longe de ser como o da minha. Mas nunca um desjejum me pareceu tão gostoso. A companhia, a risada fácil do irmão de Dill, as piadas. Me senti mais em casa ali do que na minha própria casa. Dill me levou até a estação e eu peguei o trem. Cheguei em casa por volta das nove. Sabine estava verde. -O que houve? -Seu pai esteve aqui e o senhor não estava. -E o que tem? -Ele está na sua sala desde então. Está te esperando. Quer saber onde passou a noite. -Obrigada Sabine. - Não vai falar com ele? -Eu? Não. Não pretendo estragar o meu dia. -Está bem. Sabine saiu e eu entrei no banho. Passei cinco minutos ali e meu pai invadiu o banheiro. -O que pensa que está fazendo? -Você não bate na porta mais não? - Onde estava? - Não é da sua conta. - Passou a noite com alguma daquelas rameiras que costumava se envolver? Fiquei calado. Meu pai avançou até mim e puxou minha cadeira de banho com violência, para que eu ficasse de frente para ele. -Está pensando que pode me fazer de o****o? Você não pode! -Chega! Ou passa a respeitar a minha privacidade ou vou proibir a sua entrada nesta casa. -Eu sei que já tentou fazer isso. Mas eu entro aqui quando eu quiser. -Pode entrar quando quiser, mas se me desacatar de novo vou mandar meus seguranças atirarem para m***r. -Eles são os meus homens! -Mas sou eu quem paga o salário deles. Aquele que deixar você passar perderá o emprego. O que acham que vão preferir? -Você vai me pagar! -Eu já p**o, e muito caro por sinal. Agora, se não tiver nada de importante para falar preciso terminar meu banho. -Te espero no escritório. - anunciou e saiu pisando duro. Terminei meu banho e fui falar com ele no escritório. Como sempre ele queria saber informações confidenciais. Menti. Não tinha mais vontade de compartilhar com meu pai as coisas que fazia. Comecei a achar que talvez o que eu vi na noite anterior, tivesse o dedo dele. Peguei o interfone e chamei minha secretária. -Sabine, venha até aqui. Alguns segundos depois ela entrou pela porta do meu escritório. -Sim senhor, em que posso ajudar? -Sente-se. -Como disse? -Eu mandei sentar. Ela se sentou em silêncio. -Diga- me Sabine, onde você mora? -Eu moro na região sul. -Como é lá? -Nada fácil senhor, para quem... -Diga de uma vez! -Quem não apoia o governo passa fome e sofre com os... -Com que? -Os pelotões senhor, eles usam de violência quase sempre. -Você já sofreu violência da parte deles? - Não. Meus pais apoiam o governo e eu tenho uma identificação de que trabalho aqui. -E você Sabine, o que acha do meu governo? -Eu... -Seja sincera. -Acho que poderia ser melhor se...se seu pai não se envolvesse tanto. -Acha que eu sou r**m? - Senhor, por que está me perguntando essas coisas? -Por nada Sabine, pode ir. Naquela noite não dormi bem. E quando consegui pegar no sono sonhei com uma certa garota do Centro. Acordei cedo. O sono me abandonou logo. Não me sentia mais o mesmo. Eu sabia. Algo havia mudado dentro de mim. E era por causa de Dill. O que eu mais temia era que eu gostava da mudança. Queria me tornar alguém melhor por ela. A amizade dela me tornara diferente. Amizade...
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