Se arrastava pelo chão da sala, tentando chegar ao quarto, apesar de ser inútil. O corpo todo doía. Estava muito ferido. As garras da fera atravessaram o seu corpo de um lado a outro. Sangue minava das várias feridas, buracos sangrentos que deixavam um rastro vermelho, quente e aromático... inconfundível. Sua respiração e o tom das batidas do seu coração soavam a dor. Uma dor velada, que não lhe permitia um gemido sequer. O medo o silenciava, ele estava perto.
O seu adversário era grande, veloz e c***l. Isso, não era só porque era sexta-feira, nem só porque a lua estava cheia, o monstro sentia prazer na caçada. Um prazer que excedia a sede por sangue, ou a fome por carne. A humanidade não significava nada.
Conseguiu! Alcançou a porta do quarto... atravessou o arco e... só precisava fechar a porta e trancar a chaves. Seria uma vantagem, pensou. Ganharia tempo até o sol nascer e a fera voltar a sua forma humana. Não é isso que contam as lendas?
Mas as garras perfuraram a pele das suas costas. Como se sempre estivesse alí, esperando o momento certo. Surgido do nada em meio as sombras daquele casarão escuro e isolado no meio da floresta. O penetrar das garras era lento. Luciano chorou com a dor.
A impotência era a desoladora prévia da consciência do que estava por vir. A morte dolorosa e lenta. A força e meticulosa inteligência do seu predador deixava mais que claro que estava brincando com ele. Poderia mata-lo rápido e saborear cada pedacinho do corpo de seu corpo. Poderia tê-lo feito há horas. Aquilo gostava da caçada, era um assassino c***l.
Quando chegou alí, naquele lugar recluso, Luciano pensou que tivera sorte em herdar o casarão do seu parente distante, mas já não pensava assim. Agora, era ele quem a deixava de herança.
A sua hora chegou.
Foi o seu último pensamento, antes da mortal dor das presas rasgando a sua garganta.
Não há nada na sexta-feira, que não exista nos outros dias. Nem na lua cheia, se esconde a magia da soberania dos instintos sobre a razão. Mas há na noite.
A noite liberta, instiga, sussurra. O perder-se liberta. Sei que aqueles que ainda são humanos, também sentem isso. Vejo eles por aí. É como se desejassem uma recompensa pelo dia de trabalho. Qualquer hora jogando conversa fora já gera um alívio.
Mas a recompensa real, desejada, é o prazer máximo. Alguns conseguem, outros nem tentam, mas há os que se frustram e culpam as uvas verdes. Para mim, as uvas estão sempre doces.
Suas conversas são rasas, mas os sentimentos são profundos.
Quantas vezes se fala a verdade durante uma vida inteira?
As vezes, sinto pena. Outras vezes, sinto raiva. Mas ainda assim, apesar de toda essa droga, acho os humanos fascinantes.
Alguns chegam a ser admiráveis.
Se você é o que você come, acho que devo muito à eles.
Não sou um lobo, apenas uso essa forma quando me convém. Também não sou um homem, é só outra forma. A roupa deve combinar com as circunstâncias, para não parecer vulgar.
Sei lá o que aconteceu comigo, ou quando, ou se realmente aconteceu. Talvez eu simplesmente nasci assim. Minhas lembranças se perderam no tempo. Não lembro de muito e quando lembro, não sei distingui se é lembrança ou sonho. Tenho sonhos bem distantes nos séculos da humanidade. A maioria sangrenta.
Bons tempos, os das guerras! Sem honra e sem leis, até o último homem.
Uma psicóloga com quem me consultei, sugeriu que eu escrevesse um diário. Lembro de como foi a consulta.
Ela havia acabado o seu dia de trabalho, o último cliente, saiu do prédio no velho centro de São Paulo. Entrei rapidamente. Com rapidamente, quero dizer, mais rápido do que a visão humana consegue acompanhar. A porta do consultório sequer se fechara antes que eu entrasse. A doutora piscou confusa ao me ver na cadeira de paciente.
_ Como você...? Quem é você?
Sorri _ Preciso de um conselho.
Não sei o que acontece na mente das pessoas, mas elas gostam de ajudar. A minha frase fez a jovem senhora sentar e me ouvir.
Como ficaria a sua mente depois de ouvir, que eu tenho centenas de anos e, vago pelo mundo caçando humanos?
Eu não poderia fazer isso com ela.
Por isso, simplesmente, lhe disse que se esquecesse de mim, antes de sair, assim como entrei. Sem ser visto.
Um bom diário deve começar com algo pessoal, como uma apresentação, creio eu.
A jovem aspirante a escritora, aguardava as minhas palavras, com a caneta em punho sobre o caderno em branco. Nunca entendi como isso funciona. Eu mando e eles fazem.
Para que escrever, com tanta opçao de quem o faça por mim?
Vamos lá.
Lohan é o meu nome, fui criança, tive uma mãe. Não sei se eu tinha o seu sangue.
Eram tempos de guerra, haviam muitas lutas por território com água e caça. Nasci no meio do caos, onde só os fortes sobrevivem.
Mas há um preço pela sobrevivência, é guardar na memória aqueles que foram mortos. A vitória também cobra um preço, fazer o que for preciso. O que sobra disto tudo é você.
A pergunta chave. Será que o que sobra, depois de tudo, pode ser chamado de humano?
Acredito que não.
Sei que eu não me vejo na humanidade que eu observo. Não que eles não façam o que é preciso, mas o como fazem e pelo que fazem. Os valores são pobres e podres. Se quebram com poucas perguntas, com o tempo, ou com uma mudança de pensamento. Além dos valores, tem algo mais. Não há tempo para nada.
Sei que eu faço o que é preciso, sem nem piscar. Até gosto, curto cada segundo. Para o bem ou para o m*l. Essa falta de dúvida é a diferença entre mim e a humanidade. O que me torna um anjo n***o ou um anjo branco, mas nunca, nunca um humano.
Provei sangue humano, pela primeira vez, em uma batalha terrível, minha primeira batalha. O meu clã era pequeno, pois muitos guerreiros já haviam sido mortos. Os últimos de nós eram crianças e jovens inexperientes. Fomos a campo para morrer com honra, morreriamos na guerra ou na fome.
Eu queria salvar o meu irmão muito mais jovem. Tinha uns dez anos, pelo que me lembro. Fui com tudo contra o inimigo, dei tudo de mim, sem medir força, até enfim, só ver sangue. Seu corpo jorrou sangue sobre mim. Era quente e vermelho, sobre o meu rosto. Minha boca se sobrepôs a fonte do líquido farto. Emergi em calor, sabores, sensações, conhecimento. Cada memória dele, era minha. A chama que o movia se juntou a minha. Tudo o que aquele guerreiro foi, eu também era agora.
Usei suas armas com a experiência recém adquirida. Bebi de outros guerreiros que matei. Matei só para bebe-los. Foi como ganhar o mundo de presente depois de ter vívido somente, dentro de uma escura caverna. Vencemos a guerra. Todo o clã inimigo foi aniquilado, até o último homem.
Comemorei feliz, lá do outro lado do campo de batalha, nos montes. Olhei ao redor, procurando os outros do meu clã e o meu irmão. Ninguém comemorava comigo. Os jovens e as crianças um pouco maiores, sequer haviam saído do lugar. Foram mortas sem nem levantar as armas. Eu era o único sobrevivente.
Liderei um clã de mulheres e crianças pequenas. Ninguém invadia a nossas terras. Mas eu sentia sede e buscava nos clãs vizinhos. Começamos a expandir nossos territórios para saciar as minhas necessidades.
Anos depois, com o clã fortalecido, os membros manifestaram o medo que sentiam de mim. Era verdade que nada me prendia ali. Minha mãe e meu irmão haviam sucumbido na guerra já há muito passada. Fiquei por conta, em meio às florestas inexploradas. Foi quando provei a carne também, pois tinha fome.
Tenho estado bem, desde então. Sem laços de sangue ou culpa na caçada. Vivo melhor assim.
Ou será que sonhei tudo isso?
A jovem me sorriu ao terminar de escrever. Seu sorriso era doce, como o pulsar suave dos seus batimentos visto nas veias da curva do seu delicado pescoço.
_ Poderia devora-la inteira _ sorri retribuindo.
_ Obrigado.
A garota fechou o caderno e veio até mim. Era a casa dela, eu era o hóspede, sentado no sofá a sua frente. Sentou no meu colo envolvendo o meu pescoço com os braços.
_ Não foi nada _ foi beijando-me.
Outra coisa que eu não entendo, é essa facilidade com as garotas. Não que eu reclame de qualquer um desses dons. Todos são muito úteis. Afinal, eu não sinto fome só de carne, nem minha sede é só de sangue.
Dei o melhor de mim para a Isabella, mas era noite eu precisava ir quando o seu sono a pegou.
Nas ruas do centro de Roma, haviam muitos baladeiros. Uns embriagados pela bebida, outros nem tanto e, alguns embriagados de amor.
Fui correndo e cheguei até aqui. É muito mais fácil do que usar os transportes humanos.
Sei o que eles pensam. Cheiro o que eles sentem, além do sabor peculiar a cada um. Faz parte do apetite por sangue, está tudo nele. O sangue é a alma do corpo.
Segui um grupo para dentro de uma boate. Fui para uma garota que dançava sozinha. O seu olhar me chamou com ansiedade. Italiana. Não conseguia entender o que ela dizia. Mas estava lasciva, não devia ser comprometida.
Tentei aproximar nossos lábios e ganhei um beijo. O leve roçar dos meus dentes em sua língua me cedeu algumas gotas de sangue.
_ Você não é daqui. És um turista?
Compreendi o que ela disse finalmente.
_ Sou um turista. Irei embora pela manhã. Meu nome é Lohan.
_ Sou Mariah.
_ É muito bom conhecê-la, Mariah _ sorri dentro do seu olhar e ela retribuiu.
A loira me levava pelas ruas estreitas, entre casas, quando senti uma euforia estranha. Algo como adrenalina, porém, eu não sentia medo. Olhei ao redor vendo um vulto se mover entre as sombras.
Senti o instinto me puxando para o vulto. Algo forte, como a ânsia pela caçada. Não era medo o que eu sentia. Aquele vulto era outro de mim. Nunca pensei que existissem, pois nunca encontrei nenhum.
A euforia me tomou.
_ A gente se vê.
Dei um beijo de leve na loira e corri pelas ruas, sem me importar se ela me viu sumir diante dos seus olhos. Talvez ela pense que sou um fantasma.
Perdi meu companheiro em uma esquina, mas escolhi o caminho pelo instinto. Aquela coceira na altura do estômago. A sensação de ser invencível.
Fui surpreendido. Ele avançou para cima da mim, me derrubando na estrada, onde caiu comigo.
_ Por que está me seguindo? _ seu idioma era italiano.
_ Nunca encontrei outro de mim antes.
_ Estava procurando? Por acaso acha que isso é bom?
Pensei no incômodo que me impelia a lutar contra ele.
_ Não, com certeza não. Mas é bom saber que eu não sou o único.
_ Está errado de novo. É péssimo ter muitos de nós por aí. A notícia boa é que poucos sobrevivem.
Caminhou para dentro de um prédio e eu o segui.
_ Por que poucos sobrevivem?
_ Por que não costumamos deixar sobras.
_ Está dizendo que as pessoas que nós mordemos, se transformam em algo como nós? Isso não acontece.
_ Você observou bem de perto não foi? Por quantos dias?
_ Muitos dias.
Esperou que eu falasse quanto.
_ Por meses, nada aconteceu.
_ Você tem muita sorte, amigo. Não é assim que as coisas acontecem, para a maioria de nós. Precisamos matar os descontrolados, ou todos vão saber.
_ É isso o que você está fazendo?
_ Estou caçando um enlouquecido. Ele já atacou três pessoas. É uma por noite. Senti o cheiro dele. Eu o seguia quando tive que fugir de você.
_ Foi mau.
_ Tudo bem. Agora você me ajuda e, ficamos quites.
Pulou pela varanda do quarto andar, para a rua de trás, eu o segui. Corremos por uns minutos e chegamos na área de plantações. Entramos em uma plantação de vinhas.
_ O que este lobo viria fazer tão longe? _ vociferei minha dúvida.
_ Não sei. Presta atenção. Ouvi algo.
Prestei atenção, buscando além do meu amigo mais próximo. O que senti me levou para o lado oposto ao do meu companheiro de caça. A escuridão, não era assim tão escura. Era agradável como um dia ensolarado jamais será com o seu excesso de luz. Ouvi algo. Um soluço ou... O engolir de um grande fluxo de líquido. O cheiro de sangue quente e fresco invadiu o ar. Vinha da estufa, entrei cauteloso.
Cheguei primeiro ao lobo mais feio que eu já vi na minha vida. Aquilo parecia indeciso entre a forma humana e a de lobo. Era pelado, cinza, grande, magro. Não era como eu.
Quando me viu, se afastou da vítima. Ela era pequena, parecia uma criança. Já estava morta. A barriga estava aberta. Aquilo me incomodou. O cheiro no ar, fedia. Aquela coisa rosnou e tentou me atacar com as presas.
Segurei sua cabeça entre as minhas mãos e a girei sem dificuldade, arrancando. O corpo caiu diante dos meus pés, eu ainda segurava a cabeça em uma mão, quando notei o meu companheiro de caça.
_ Como você fez isso? Pareceu tão fácil.
_ E foi. O que é isso que ele é?
_ Está brincando comigo? Isso é o que nós somos. Um lobisomem.
Olhei para aquilo voltando a forma humana. Soltei a cabeça no chão.
_ Eu não sou _ cai de volta no vazio de sempre.
_ Meu nome é Esdras _ se apresentou enquanto pegou uma pá num canto da estufa, e cortou a cabeça da pequena.
_ Lohan _ me apresentei.
Enterramos os corpos naquele terreno mesmo, onde a terra já estava mexida, porém bem mais fundo.
_ O que você é?
_ Não sei. Deixa para lá.
Caminhamos sem presa pela mata de volta para a cidade.
_ Deixa o seu contato. Não é todo dia que eu encontro um amigo de caçada.
Trocamos contato antes de cada um seguir o seu caminho no amanhecer.
Voltei para casa. Fica na área das mansões. A privacidade é total, por aqui, mas eu não fico muito.
Tomei um longo banho, revendo as informações. Há uma espécie parecida comigo por aí, algo que age como um animal e cria outros animais indiscriminadamente.
A visão da pequena figura rasgada pelo abdômen, como se fosse um animal tendo sido atacada por um chacal. Sei que ela não era uma criança, mas isso não melhora nada.
Sempre escolhi minhas vítimas meticulosamente. Pessoas que eu admirava e que eu sentia que eram dignas de receber a morte das minhas mãos. Essas pessoas se tornavam parte de mim, precisavam ter um valor. Mas aquilo, nesta noite, apenas caçou o ser mais fraco, o mais fácil.
Aquilo precisou ser morto, ser parado. Quem criou? De onde veio? Desde quando vaga por aí? Quantos destes precisam ser "parados"?
No mundo em que eu vivia, até ontem, eu era o único. Neste momento, quero este mundo de volta.
Neste dia consegui dormir. Era algo que acontecia uma vez por semana, mais ou menos. Assim como comer algo fora da minha dieta. Era bom para não parecer óbvio diante dos olhos dos outros.
Caminhei pela grande casa, gostava muito dela. Já veio mobiliada, ganhei em um jogo de poker durante um cruzeiro. Bem como o Porsche 918 Spyder e alguns milhões acumulados em ações e outros ativos.
É muito fácil ganhar quanto se tem as minhas vantagens, mas não chamo muita atenção. Perco algumas vezes para gerar confiança nos demais. Eu sei onde estão as cartas, mesmo sem olhar. Também sei o que meus rivais pensam, literalmente. Fica fácil manipular o jogo ao meu favor na hora certa e levar a melhor.
Havia um jeito fácil de encontrar outros lobisomens e de saber mais sobre eles. Esdras me levaria até o meu objetivo, me daria informações sobre essa espécie e, talvez, até me dissesse onde eu os encontro. Ele parecia legal, poderia poupa-lo, de algum modo. Pretendia a extinção deles. Sou mais forte, sei que é possível.
Mandei uma mensagem para ele. Bebi um copo d'água gelada e, ele respondeu. O convidei para me mostrar mais sobre os lobisomens. Ele marcou um local e hora. Perfeito! Me vesti e fui até a Itália. Era divertido, correr sobre a água. Será que eu conseguiria voar, se tentasse? Vou tentar alguma noite.
A amnésia persiste, mas sonhei com uma mulher do tipo que não se encontra por aí todos os dias. Parecia irreal. Por que será que eu esqueci do meu passado, o que eu estou bloqueando? Encontrei o Esdras fácil, no meio dos turistas.
_ Torre de Pisa, que original! _ censurei.
_ Você me convidou para dar uma volta. Eu vou aproveitar para conhecer o lado turístico do meu país.
_ Bem pensado.
Jantamos em um restaurante. Notei que lobisomens comem a beça.
_ O que vocês fazem de especial?
_ Somos como super animais a prova de balas.
_ E a prata? _ especulei.
_ A prata mata, somos alérgicos.
_ Você conhece outros?
_ Não nos agrupamos. Seria o certo do meu ponto de vista, mas acho que a individualidade humana impera.
_ Mas você conhece outros?
_ Muitos. Principalmente nesse país e nos arredores.
_ O que acha disto, desta movimentação crescente de lobisomens?
_ Eu não gosto.
_ Vamos dar um jeito nisso?
O seu olhar mostrou interesse _ Seria ótimo, mas é permitido?
_ Permitido por quem? _ gargalhei divertido _ Se o mais forte faz as leis, eu as farei.
O Esdras concordou, pensativo.
Sei o que passou pela mente dele. Que eu era prepotente, arrogante e que iria me dar m*l.
Em um primeiro momento, apenas passamos perto do território daqueles que o Esdras havia visto. Levavam a vida como pessoas normais, mas não se controlavam depois de transformados. Nestes casos, sim a lua cheia era importante.
Quem diria, que as lendas falavam a verdade?