Capítulo 05

1378 Words
Chefe narrando Eu sempre soube que o meu lugar no inferno estava garantido. Tenho fé em Deus pra cara.lho, mas também sei que com essa vida podre que eu levo, não tem santo que me salve. Já pequei demais, já fiz mer.da demais. Só que mesmo com esse tanto de pecado nas costas, eu tento equilibrar a balança com gestos bons. Tento compensar o m*l que eu espalhei fazendo o bem pra quem o sistema esqueceu. Aqui na favela, o governo vira as costas. Pra eles, todo mundo aqui é bandido, vagabundo, perigo pra sociedade. Só que ninguém vem ver de perto a realidade. Ninguém desce o morro pra entender a mãe que chora de fome, o pai que sai de madrugada pra catar reciclagem, o pivete que cresce sem oportunidade nenhuma. Então, já que eles não fazem nada, eu faço o que posso. Tô sempre vendo com os médicos do posto o que dá pra melhorar nos atendimentos, comprando equipamento caro pra cara.lho pra que os meus moradores não precisem ir se humilhar nos hospitais do asfalto. Todo mês sai cesta básica pra não ver ninguém passando fome. Nas escolas, tô sempre ajudando nas reformas, levando material, pagando professor particular pros moleques que querem estudar. Não é porque eu escolhi essa vida que eu quero que os pivetes sigam o mesmo caminho. Eu já aceitei o meu destino faz tempo. Sei que o meu fim vai ser dentro de uma cadeia ou dentro de um caixão. É o preço. E, por mais contraditório que pareça, acho que tenho mais humanidade do que muito engravatado que posa de santo por aí. Porque, diferente deles, eu penso no próximo. Essa guerra contra o sistema não começou agora, e também não vai acabar amanhã. Eles acham que subir o morro e fazer chacina resolve alguma coisa, mas não resolve por.ra nenhuma. Crime não nasce na favela, nasce dentro do Congresso. Nasce das leis que favorecem quem já tem demais e esquecem quem nunca teve nada. Os engravatados roubam dos pobres e ainda têm a audácia de dizer que o problema do país somos nós. A diferença é que a gente erra pra sobreviver — e reconhece o erro. Eles erram pra enriquecer — e depois lavam a culpa com discursos e promessas. Depois que perdi o meu melhor amigo e a mulher que eu amava, o pouco de esperança que eu tinha desabou. Foi aí que decidi mandar minha filha pra fora do Brasil. A vida aqui é uma roleta russa, e eu nunca quis que ela pagasse pelos meus erros. Minha menina sempre foi o meu lado bom. Um coração puro, doce, incapaz de fazer m*l pra alguém. Saber que ela tá segura, vivendo longe desse inferno, me dá paz. Ela cresceu, se formou, virou médica. Eu não escondo o orgulho que sinto. Todo dia que consigo, ligo pra ela só pra dizer o quanto tô orgulhoso. Mas, no fundo, eu sei… talvez a gente nunca mais se veja. A ideia dela pisar aqui e correr perigo me destrói. Só de imaginar ela envolvida nesse caos, me dá vontade de enlouquecer. Por isso, tudo que eu conquistei, tudo que construí — botei no nome dela. O dia que eu cair, ela não vai ficar desamparada. Além dela, a vida me deu outro filho, de coração: o Mago. Moleque de ouro, criado sob o meu olhar. Se um dia eu for de vez, sei que ele vai cuidar da minha filha, mesmo sem conhecê-la direito. Quando mandei a menina pra fora, ele ainda era pivete. O pai dele… o melhor amigo que eu já tive. Quando ele se foi, senti como se arrancassem um pedaço meu. Prometi pra mim mesmo que cuidaria do Mago como se fosse sangue do meu sangue. Ensinei o que eu sabia, mostrei o caminho — mesmo que fosse o mais torto. Os outros zombavam dele no começo, achavam que o menor não ia durar nem uma semana no corre. Mas o tempo mostrou o contrário. Hoje o moleque é respeitado. Mete medo, impõe moral onde chega. Menos comigo, claro. Comigo ele já tá folgado, virou quase um filho mesmo. Tava tranquilo na boca, resolvendo umas pendências e pensando em dar um toque pra Natalie, quando ouvi o barulho dos fogos cortando o céu. Aquilo não era comemoração — era aviso. Fogos longos, estourando sem parar. Meu rádio começou a chiar, e logo os vapores avisaram: tinha polícia pra todo lado. Na hora, o instinto falou mais alto. Peguei o celular e chamei reforço. — Mago, prepara o bonde. Hoje o bagulho vai azedar. Senti o peso no peito, aquele pressentimento r**m que só quem vive nessa vida entende. Quando o céu se ilumina com fogo, a gente já sabe: o inferno tá prestes a descer. Corri pra base, passei o rádio pros meus homens se espalharem. As vielas começaram a se encher de som de passos e armas sendo carregadas. As mães gritando pros filhos entrarem pra dentro. O cheiro de pólvora já parecia vir no vento. A adrenalina bateu forte. Em momentos assim, o tempo parece parar. Você pensa em tudo e em nada ao mesmo tempo. Pensei na minha filha, lá longe, sem saber o que pode estar acontecendo com o pai dela. Pensei no Mago, que agora teria que provar que aprendeu tudo que eu ensinei. Pensei nos moradores, nos inocentes que iam ter que se enfiar debaixo das camas pra não serem atingidos por bala perdida. Mas acima de tudo, pensei na minha responsabilidade. Porque ser chefe não é só mandar, é carregar o peso do morro inteiro nas costas. — Segura a posição! — gritei pro radinho. — Ninguém solta o dedo sem minha ordem! As sirenes começaram a ecoar lá de baixo, o barulho subindo junto com o som dos helicópteros cortando o ar. A favela inteira tremia. E eu ali, de fuzil na mão, coração apertado, mas mente fria. Porque nesse jogo, o primeiro que treme é o primeiro que morre. A primeira rajada cortou o silêncio, seguida de gritos e mais fogos estourando. O ar ficou denso, pesado. O cheiro de fumaça, de medo, de morte — tudo misturado. Eu respirei fundo e olhei pro céu, ainda iluminado pelos clarões. — Deus, se eu tiver que ir hoje, só te peço uma coisa… cuida da minha filha. Depois disso, engatilhei o fuzil e avancei pro beco. O som das balas batendo nas paredes era o único hino do inferno que eu conhecia. Porque ali, no meio daquele caos, eu era o chefe. Mas também era só um homem — tentando, à sua maneira, fazer o bem dentro do inferno que escolheu morar. O bagulho Tava louco, mago estava preocupado comigo, só que se ele ficar focando em mim e esquecer da reta dele, ele vai acabar sendo atingidos e eu não posso deixar isso acontecer. Nesse momento ele precisa estar totalmente focado nele e ao redor para não cometer nenhuma bobeira e não acabar dentro de um saco preto. A invasão tava f**a e acho que em toda minha vida, essa foi a pior que eu já enfrentei. Tinha tanto policial que parecia que ele saiu até do buraco dos bueiros. O reforço chegou, mago colocou os caras no asfalto para criar a distração e mesmo assim eles continuam vindo como se tivesse todos os policiais do Rio de janeiro em peso dentro dessa favela. Que o maior lá de cima tenha misericórdia de cada um de nós porque senão hoje todos saem daqui dentro do saco preto. O f**a é que a hora foi passando, e o bagulho ficando pior ainda porque tava todo mundo já exausto. Eu tava tentando derrubar a po.rra do caveirão, e na hora que consegui explodir aquela merda, Eu senti alguma coisa na minha barriga, ouvir quando um dos meus vapores chamou pelo mago dizendo que eu havia levado um tiro. Eu acho que não foi uma bala que me atingiu e sim um dos estilhaços do caveirão na hora da explosão. Tava tentando poupar energia neste momento porque tá sangrando para car.alho, e a única coisa que passava pela minha cabeça era a minha Natalie lá do outro lado do mundo sem fazer a menor ideia do que tá acontecendo.
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