capítulo 2 Tenebroso .

1680 Words
Capítulo 2 — Tenebroso . Tenebroso narrando . Eu não escolhi esse trono . Quando percebi , já estava sentado nele . Aqui em cima , no alto do morro , eu mando . E mandar não é poder .é peso . Peso de saber que cada ordem minha pode salvar uma vida... ou acabar com ela . Muita gente me chama de Tenebroso; outros me chamam de Patrão . Lá no fundo , às vezes , nem eu sei quem eu sou agora. Não virei dono do morro porque quis — virei porque o morro precisava de um dono . A lei aqui não vem do governo nem de farda . A lei vem da minha boca. Quem sobe sabe: comigo é respeito ou cemitério . Mas não se engane . Por trás da arma , do olhar frio e da fama , existe um homem que também sangra, que também sonha , que também carrega cicatrizes que ninguém vê . E , se depender de mim , vai continuar assim . Quando assumi o morro não foi por escolha . mesmo sabendo que já era meu destino por ser filho do antigo dono . Meu pai nunca me obrigou a nada . Ele me deixou aprender por conta própria . Fiz todo o treinamento , aprendi a ler mapas de território , a reconhecer passos à noite , a medir o tempo pela fumaça das casas . Comecei faculdade . jurei a mim mesmo que seria diferente . mas precisei largar tudo quando a ausência da minha mãe fez dele alguém incapaz de continuar. A saudade , a culpa , essas coisas pequenas e enormes o consumiram .e antes de cair definitivamente , deixou o morro nas minhas mãos . Hoje eu comando o morro e não me arrependo de ter deixado os planos que eu imaginava . Foi por escolha e por obrigação ao mesmo tempo . Tentei fugir — juro que tentei — mas o destino sempre teve cara de subida íngreme e de viela sem saída . Então aceitei: se era pra ser, que fosse por inteiro. Se era pra proteger, que fosse comigo . Existe um ritual para quem sobe aqui: aprender a não ouvir as próprias razões quando a noite chega e o morro geme . A gente aprende a transformar medo em cálculo; angústia em estratégia . Eu aprendi a olhar as pessoas como peças num tabuleiro e a odiar o som de um choro que me lembra a minha mãe . Ela cantava baixinho na cozinha, tinha mãos de trabalho e um sorriso que desmanchava qualquer tempestade . Quando ela se foi, o morro se fechou em silêncio por dias — e eu descobri que autoridade também nasce do luto . A relação com meu pai era feita de ausência e ordens. Ele me ensinou a duras penas, sem abraços longos, sem palavras de afeto. Me mirava como se eu fosse uma extensão do negócio: treinava meu pulso, mediu minha coragem, pediu que eu não fraquejasse. Quando a culpa o engoliu, percebi como o trono também queima quem senta nele. Por isso, faço diferente em certas coisas — não por bondade, mas por cálculo: um homem que demonstra fraqueza vira venda de carne em leilão. Ainda assim, há noites em que me pego olhando pra casa vazia e desejando, pela primeira vez em muito tempo, a presença de um pai que soubesse sorrir. Aqui em cima há regras não escritas. Alimentamos os velhos, damos atenção aos órfãos , arregimentamos os mais novos para que não se percam . Eu sei quais portas bater para conseguir um esconderijo , sei quem empresta um veículo sem perguntar demais . Tenho gente que cuida de escola que eu mesmo montei e outra que evita que a água falte nas torneiras durante o verão . A comunidade depende de mim tanto quanto eu dependo dela para manter a fachada — para justificar atos que em outro lugar seriam crimes , mas aqui parecem medidas de sobrevivência . Minha mão pesa também porque eu sou aquele que pune para manter a ordem . Já tive que decidir em segundos o destino de um traidor . A decisão as vezes corrói . Às vezes , pela manhã , eu sento num degrau de pedra e fico vendo o morro acordar . crianças correndo com marmitas nas mãos , mulheres que penteiam cabelos molhados no sol , homens que voltam do trabalho informal com os bolsos vazios . Vejo os olhos que esperam por algo que eu não sei se posso dar . E aí lembro que todo poder tem preço — e o meu é caro . O medo que eu causo é um escudo. Quando as autoridades fingem não ver, quando o Estado vira notícia distante e promessas vazias, as pessoas daqui se viram para mim. Eu dou solução onde o serviço público falta: segurança improvisada, socorro imediato, disciplina implacável. Em troca, pedem respeito e justiça, essas palavras que às vezes soam como preces. Dou o que posso. Mas também exijo lealdade . Lealdade que raramente se compra e que sempre se testa . Há dias que o morro me trata com carinho — quando um velório acontece e eu vejo o cortejo passar pelo portão que mandei construir com as minhas mãos. Dá uma estranha sensação de ser xerife e padre ao mesmo tempo . Segurar o rosto de uma mãe que perdeu o filho e não poder lhe prometer uma mudança maior é morrer um pouco por dentro . Minha resposta é prática .arranjo a despedida , pago o enterro , coloco homens na rua para que ninguém toque nas cinzas . Ingredientes de poder que não curam, só disfarçam . E há dias em que a noite revela coisas que eu não pedi para conhecer: traições de perto , amigos que viram inimigos , olhares que calculam minha queda . O jogo é ingrato . O traidor que ontem riu no mesmo copo pode amanhã virar a arma contra mim . Aprendi a não confiar demais em risadas . Aprendi a medir a lealdade pelo silêncio das mãos . Tenho um recanto secreto , uma pequena varanda com vista para o vale onde a cidade dorme em respirações. Lá, guardo as fotos que ninguém mais veria: minha mãe de avental, um pai que sorriu uma vez — foto rasgada de esperança — e bilhetes de gente que deixou o morro para tentar o mundo lá embaixo. Raras são as vezes em que permito que o coração me traia; quando acontece, acendo um cigarro e deixo o vento levar as cinzas dos arrependimentos. Falo com a memória. Às vezes ela responde em forma de lembrança, outras vezes em forma de culpa. Meu grande dilema é simples e assassino: a cada ato de proteção que executo, cavo um pouco mais o abismo entre quem eu era e quem eu precisei me tornar. Sorrio para crianças e dou ordens que matam adultos. Dou esmolas e cozinho vingança. Contradição que anda de mão dada com sobrevivência. Tento justificar-me com palavras que não aliviam. Tento manter a balança equilibrada. E, por fim, sei que minha maior luta não é com facções rivais ou policiais; é comigo mesmo — com a necessidade de não perder o que resta de humanidade. Ontem à noite houve um incidente. Dois jovens de uma favela vizinha invadiram nossa área: não era só roubo, era desafio. Pegaram uma moto que pertencia a um antiga colega meu, rasgaram a honra que eu guardo. A primeira reação dos meus homens foi fogo; a minha, foi contar até três como quem tenta segurar a tempestade. Mandei buscá-los vivos. Punir publicamente seria útil para a autoridade, mas c***l demais para o que eu ainda suporto. Trouxe-os à praça, sob as luzes amareladas, e disse para a multidão o que ia acontecer. Não quis pano de fala bonito: disse a verdade dura — devolveriam a moto, pediriam desculpas, e um dos dois ficaria algumas semanas fazendo serviços comunitários. O outro recebeu outra alternativa: seria expulso, sem direito a abrigo. Minha escolha parecia fraca no olhar dos mais radicais, mas era a única que não me deixaria com o gosto do sangue nos dentes. Tomar essa decisão trouxe repercussões internas; houve sussurros. Mas eu sei que governar também é escolher a ferida que você quer carregar. Escolhi a que talvez curasse. Não por misericórdia, mas porque preservar o tecido da comunidade hoje serve ao meu propósito de amanhã. E, mesmo assim, a noite trouxe um peso novo ao peito — o receio de que a misericórdia fosse vista como fraqueza e atraísse inimigos maiores. O morro me deu e me tomou. Me ensinou a ser pedra e rio ao mesmo tempo: pedra para resistir, rio para contornar obstáculos. A cada amanhecer eu me pergunto se a minha coroa de concreto vale as vidas que mantém de pé. Ainda não tenho resposta. Só sei que quando a sirene lá embaixo toca, quando os homens da cidade lembram que existimos, eu me levanto e visto a armadura que construí com as minhas escolhas. A cada passo, tento não esquecer que alguém, em algum quarto escuro, chora uma mãe ou um pai que não volta. Tento não esquecer que, quando eu me deito, há crianças que sonham com um mundo onde não é preciso um Tenebroso para proteger um lar. Talvez um dia, se o destino for generoso, eu possa sentar à mesa sem a arma ao lado. Talvez um dia. Por enquanto, aqui estou — o trono pesa, e eu aprendo a carregá-lo sem que ele me quebre por completo. Quando o sol subir amanhã, eu terei novos problemas, novas conversas, mais decisões que rasgam o silêncio. A cidade lá embaixo não perdoa quem vacila. E eu não posso vacilar. Então respiro outra vez, ajusto o casaco, e deixo que a noite faça o resto: acender pessoas, apagar outras, e manter o morro em seu delicado e violento equilíbrio. Continua . . vamos lá meus amores , votem e cometem bastante .
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