Capítulo 27: Dança de Sombras

1174 Words
Olivia Hayes O portão da antiga mansão de Liandra rangia, ecoando como um aviso. A lua cheia banhava de prata o jardim descuidado: roseiras mortas, fontes secas, estátuas de anjos cujo olhar vazio parecia me seguir. No bilhete, Sergei ordenara: “Venha aqui sozinha. Descubra o que ele nunca quis que você visse.” E ali estava eu, tomada pela mescla de determinação e medo, pronta para enfrentar o passado mortífero de Alessandro — o mesmo passado que eu temia se repetisse em nosso futuro. Cruzei o pátio, cada passo levantando véus de pó e folhas secas. O ar cheirava a mofo e decadência. A porta principal de carvalho, marcada por entalhes florais, abriu-se com esforço, revelando um hall amplo, forrado de tapetes puídos e lustres cujo cristal caía em cascata de pó. As paredes, antes alegradas por quadros de família, agora exibiam apenas molduras vazias, como moldes de segredos arrancados. — Então é aqui — sussurrei, o sussurro se perdendo no silêncio opressor. — O ninho de Liandra. Acendi a lanterna do celular e avancei pelo corredor principal. O soalho rangia sob meus sapatos, e as sombras saltavam pelas portas fechadas. Cada cômodo ao lado era um palco de memórias: móveis cobertos por lençóis brancos, como fantasmas aguardando meus passos. Segui pelos espelhos — falhos, estilhaçados em cantos — até encontrar uma pequena escada de mármore que levava ao segundo andar. No topo, um corredor em arco se dividia em várias portas de carvalho. Um aroma apagado de jasmim guardava-se ali, e eu lembrei do perfume de Alessandro quando beijava o pescoço de Liandra. Em silêncio, como numa dança, toquei cada maçaneta. Todas estavam trancadas, menos uma, que rangeu ao empurrar. Entrei num quarto iluminado apenas por uma fresta de luar. A cama de dossel jazia vazia, mas, ao lado, um baú de madeira exibia entalhes de rosas. Me ajoelhei e abri-o com cuidado. Dentro, havia uma pilha de diários encadernados em couro vermelho: o diário original de Liandra. As iniciais “L.V.” gravadas na capa brilharam sob a luz da lanterna. Tremendo, desamarrei o fecho e abri o primeiro volume. As páginas estavam cheias de caligrafia firme, em tinta escura. Liandra escrevera sobre desejos sussurrados e medos profundos — mas, em páginas jamais citadas por Alessandro, revelara o trauma de ser forçada ao silêncio. “Eles não sabem que morro um pouco a cada dia que me peço para esquecer o que sinto. Alessandro ama-me, mas foge quando me entrego demais. Em meu peito, a ferida de um amor proibido insiste em sangrar.” As palavras me atingiam como lâminas. Liandra não morrera apenas por negligência, mas por ter sido amada — e rejeitada — com igual intensidade. Folheei para uma passagem posterior: “Hoje confrontei Sergei nos corredores frios. Ele mentiu sobre meu destino, disse que era por meu bem. Mas o medo brilha em seu olhar, e percebo que ele me manipulou desde o início, como um mestre de marionetes. Se Alessandro descobrisse a verdade, nosso amor não sobreviveria.” As paredes do quarto pareciam sussurrar, e o bálsamo do ar noturno virou cortina de medo. Liandra sabia demais, e pagara com a própria vida. Percebi que não bastava expor Sergei; precisava entender o jogo que ele criara. Dobrei o diário e guardei-o no bolso do casaco. Ao descer, um corredor lateral me levou a uma porta de vidro fosco, que rangia ao abrir. Era o salão de espelhos: dezenas de painéis alinhados, distorcendo reflexos de quem ousasse entrar. Engoli o receio e pisei no chão frio. Meu reflexo se repetia em várias versões: pálida, furtiva, faminta por respostas. Vi mãos tremendo, um rosto marcando a indecisão, e senti o frio da solidão. — Liandra… — murmurei. — Se você puder me ouvir, mostrarei ao menos o quanto você foi amada. Foi então que um salto metálico reverberou atrás de mim. Virei-me de súbito, a lanterna tremendo no meu punho. Ele surgiu à sombra de um espelho alto, trajado em smoking preto, máscara veneziana ornada de penas e arabescos dourados. Um baile de máscaras macabro: Sergei exibia um sorriso c***l, a máscara inclinada num ângulo de desprezo. — Que noite perfeita para dançar, não acha? — murmurou ele, a voz saindo rouca pelo filtro do ar. — O que quer de mim? — perguntei, tentando manter a voz firme. Ele deu alguns passos, a capa roçando o chão de mármore. Cada movimento parecia coreografado. Parou diante de um dos espelhos e, com um gesto teatral, apontou para meu reflexo. — Vejo duas de você — disse ele, o eco da frase girando como faca no salão. — Uma que procura a verdade, outra que tenta enganar o coração dele. Você percebe? É impossível escapar da herança de Liandra. Olhei meu reflexo: duas Oliveas — a de agora, feroz na investigação; a de outrora, sonhadora e submissa. A tensão me fez hesitar, e Sergei aproximou-se, erguendo a máscara para me encarar nos olhos. — Você vai me dizer o que descobriu no diário. — A ordem saiu suave, mas era uma ordem de predador. — Nunca — declarei, a voz firmando-se. — Liandra merece justiça, e não servidão. Ele riu, um som de gelo quebrado. — Justiça? — zombou. — Justiça para quem jura amar e depois abandona? Para quem finge proteger e, no fundo, teme se aproximar demais? Avancei, os punhos cerrados. A lanterna caiu, e a luz vacilou, tornando o salão sombrio. No espelho à minha frente, vi o reflexo dele se aproximar de mim, segurando meu braço com delicadeza — mas havia navalha em seu toque. — Eu posso te dar qualquer verdade — sussurrou, o hálito quente roçando meu rosto. — Mas, para isso, você deve ceder. Deve ser a dúplice que ele teme tanto. O terror me apertou o peito, mas o amor por Alessandro me deu força. Soltei um grito contido e empurrei-o com toda raiva. — Nunca! — exclamei, o som ecoando pelos espelhos. — Eu não sou ele! Não sou Liandra! Sergei tamborilou o indicador na lateral do meu rosto. — Tarde demais para negar — disse, a voz afiada. — Em breve, você entenderá seu lugar: dançar entre as sombras. Ele se virou e saiu pelo corredor, deixando-me só no salão de espelhos. Meu reflexo distorcia-se em múltiplas Oliveas, presas num labirinto de vidro. Respirei fundo, o coração a mil. Segurei o diário com firmeza. Eu não podia permitir que Sergei ditasse nossa dança macabra. Precisava escapar dali e levar comigo a verdade de Liandra — e mostrar a Alessandro que seu amor, embora marcado pela dor, podia se tornar redenção. Enquanto corria pelos corredores escuros, senti o couro da capa roçar minha pele, e a última imagem de Sergei refletiu-se nos espelhos: a máscara de predador pairando sobre minhas sombras. E, na noite silenciosa, só restou o eco: “Vejo duas de você.” Mas eu, Olivia Hayes, prometi a mim mesma que transformaria o reflexo sombrio em luz. Terminada a dança de sombras, era hora de mudar a coreografia.
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