— O QUÊ? — Fiquei estática com as palavras que saíram da boca de Priscilla. — Você só pode estar de brincadeira, Pri...
— Eu não estou! Você tem uma entrevista agora! Cadê suas roupas, mulher? Eu não tenho tempo! — Ela mexeu na minha mala atrás de maquiagem e roupas.
— Pri, como você conseguiu isso? Você não dormiu com ele, não é? — Sentei na cama desanimada.
— O que? Enlouqueceu? Franco é um pedaço de mau caminho, mas eu gosto mesmo é do meu pintorzinho de araque.
Priscilla namorava meu antigo colega da faculdade desde que eu os apresentei, Pablo era do Sul e veio para o Rio para fazer a graduação, mas por causa de Priscilla, nunca mais deixou a cidade. Ela era mais alta que ele e muito mais arisca, vai ver era isso que fazia com que a relação desse certo, já que nada tirava Pablo do sério.
— Você ainda não contou como conseguiu a vaga.
— Tá tá! Eu enfiei seu portfolio alterado no meio das outras pastas e quando meu chefe viu e pediu uma explicação, eu coloquei todo meu poder de persuasão pra jogo e pintei você como a mãe da educação brasileira. — Ela jogou uma blusa de botão branca para mim e apontou para o banheiro.
— O que você inventou? Você mexeu no meu portfolio e fez o quê? — Andei até o banheiro e comecei a me despir, mas um sinal vermelho começou a piscar em minha mente. Aquilo já estava começando a ficar preocupante e eu poderia ser acusada de fraude.
— Digamos que agora você tem alguns certificados de intercâmbios, palestras importantes, carta de recomendação de uma família abastada e já foi oradora de cursos de renome. — Priscilla abriu um sorriso como de quem sabe que fez algo muito r**m.
— De jeito nenhum eu vou a essa entrevista! Você perdeu o juízo? Eu vou sai de lá direto para a cadeia! — Gritei em pânico. Não duvidava das minhas habilidades, entretanto, eu sabia muito bem meu lugar e o do meu currículo profissional.
— Você não ouse desistir! É só decorar as novas informações até a hora da entrevista e interpretar o papel. As informações não importam, Sophia. Quando ele te ver em ação com as crianças, nada mais importará. AGORA SE VISTA DE UMA VEZ!
Eu não sabia como seria aquela entrevista e nem se o plano de Priscilla daria certo, entretanto, não tinha outra escolha. Era isso ou virar acompanhante de luxo e leiloar minha virgindade. E eu não sei o que seria capaz de fazer comigo mesma se eu tivesse que me deitar com alguém por dinheiro. Sei que muitas mulheres não possuem outra saída, mas eu faria de tudo para não precisar recorrer a isso.
Caminhei com Priscilla até o carro enquanto repetia todas as novas informações e tentava fazer com que soassem naturais para mim. Priscilla estava certa, eu não podia deixar essa chance passar, se desse meu melhor ele veria que eu sou de confiança e ficaria satisfeito com meu serviço. Eu só esperava que ele não fosse tão casca grossa quanto Priscilla dizia, pois eu não saberia lidar com a situação se ele começasse a ser mais incisivo sobre todos as palestras e intercâmbios.
O prédio da empresa era um grande projeto arquitetônico por si só. Pelo que minha amiga disse, a obra de 25 andares era assinada pela arquiteta Fernanda Mares, muito famosa no Brasil e lá fora por ter um estilo sofisticado e elegante. Todo o lugar era decorado em tons de preto, cinza e ouro velho. O chão de mármore, as paredes que exibiam obras de Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Anita Malfati. Só de ver A n***a e O Homem de Sete Cores sendo exibidos naquela parede como se fosse uma galeria, sorri extasiada. Eu poderia passar horas ali admirando cada pedacinho daquela imensa recepção, que era mais luxuosa do que o Copacabana Palace. Todavia Priscilla me arrastou para o elevador com um breve e enfático sermão sobre não me distrair com quadrinhos e focar no que era importante, pintar minha imagem de tutora perfeita.
Chegamos na cobertura e eu dei um passo para fora do elevador pedindo a Deus que minha má sorte não saísse junto comigo. Priscilla pediu para eu aguardar sentada em um sofá que, com certeza, valia muito mais do que a kitnet que eu morava, e bateu na porta ao lado do sofá para avisar o tal Franco Mattioli. Aquela era a primeira vez que eu via o local de trabalho da minha amiga e, como toda a empresa, a área que ela ocupava era de cair o queixo. Poucos minutos depois, Priscilla saiu e deixou a porta aberta, aquilo era um sinal de que seria chamada a qualquer momento. Meu coração parecia entalado na minha garganta e minhas mãos tremiam como se fossem pandeiros. Tentei esconder por trás da bolsa, mas Priscilla viu e sussurrou para que eu respirasse fundo.
— Senhorita Sophia Vargas, faça o favor de entrar. — Aquela voz grave como o estrondo de um trovão ressoou.
Arregalei os olhos para Priscilla e balancei a cabeça freneticamente me recusando a entrar. Priscilla gesticulou uma ameaça e fez sinal para que eu levantasse meu traseiro magrelo do sofá ou ela chutaria minha b***a janela afora. Com as pernas um pouco trêmulas, caminhei até a porta, empurrei a maçaneta e, olhando para o chão, andei até o interior. O chão polido refletia meu rosto em pânico e eu precisei controlar minhas expressões, para finalmente encarar o deus da guerra do Grupo Mattioli. Assim que levantei os olhos, a visão que se seguiu me fez perder o ar. Franco Mattioli apoiava o quadril sobre a beirada da mesa de madeira escura. Ele trajava um terno cinza escuro e camisa branca junto com uma gravata preta. Aquele homem parecia pintado e esculpido a mão. Eu quase não pude acreditar que ele era tão alto, com certeza mais de 1.95 de altura. Os músculos ficavam todos bem marcados no tecido bem como o peitoral. E aqueles olhos... o tom de azul era tão claro que chegava a parecer cinza. A beleza daquele tom de azul acinzentado ficava ainda mais visível graças ao cabelo liso preto e curto no estilo undercut. Agora eu conseguia entender a razão dele ser chamado de pedaço de mau caminho. Priscilla esqueceu de dizer que ele era a estrada completa para a perdição.
— Até quando ficará segurando minha porta, senhorita Vargas? — Ele apoiava as mãos na mesa, despojado e seguro da aparência ameaçadora que exibia.
Tomei um susto novamente com a potência vocal dele e pedi desculpas, caminhando até chegar próximo a um dos sofás que decoravam a sala. Ele apontou para que eu me sentasse na cadeira quase de frente para ele e perigosamente perto de seu magnetismo assustador.
— Me desculpe, não imaginei que seu escritório fosse tão bem decorado. — Eu precisava tirar aquela imagem de garota assustada e bem rápido. — Vejo que o senhor é um grande observador de arte, caso contrário, não teria um Portinari bem ao lado da sua estante de livros.
— Gosto do que é bom, independente da origem. — Ele cruzou os braços e franziu o cenho olhando fundo na minha alma. — Por que eu deveria contratar você, Sophia? O que tem de tão especial que te torna digna de cuidar dos meus filhos?
— Eu possuo conhecimento o suficiente para me adequar à função. Meu currículo é impecável e minha experiência no ramo mostra que minhas qualificações estão muito acima do desejado, até mesmo para o senhor.
— E? — Ele perguntou, como se esperasse outro tipo de resposta.
— Fui educada corretamente desde a infância e preparada para assumir um cargo importante. Não considero a função de educar como uma simples tarefa. Eu executo a maior função da humanidade desde os primórdios dos tempos. Eu moldo novas gerações. O futuro da humanidade não reside apenas nos ombros das nossas crianças, ela pesa nos ombros de pessoas como eu, senhor Mattioli, que escolhe transmitir a maior dádiva da humanidade. O conhecimento.
— Palavras bonitas. Agora diga a verdade. — Ele cruzou uma perna na frente da outra. O semblante impenetrável.
— “A nossa mais elevada tarefa deve ser a de formar seres humanos livres que sejam capazes de, por si mesmos, encontrar propósito e direção para suas vidas”. — Disse, citando Rudolf Steiner e levantei o nariz para que ele visse que não lidava com alguém despreparado. — Minha proposta é ensinar seus filhos a serem pessoas, antes de alunos. Quero que conheçam seus limites e ultrapassem cada um deles com aprendizado e sabedoria. Seus filhos precisam de um Norte para o qual apontar, e eu não pretendo ser isso. Eu serei a bússola até que aprendam a se guiarem sozinhos. Meu objetivo não é transformar seus filhos em novas versões do senhor, o que desejo é que eles sejam as melhores versões de si mesmos. Capazes de desbravar qualquer obstáculo e justos o suficiente para não pisarem em inocentes no processo.
— Você tem atitude, Sophia. Veremos se seu discurso se aplicará na realidade ou se não passa de palavras bonitas e filosofia barata. — Ele pegou o telefone e chamou Priscilla, que apareceu na sala segundos depois. — Leve a senhorita Vargas para assinar o contrato e explique a ela tudo o que precisa saber.
Eu quase não acreditei quando ele disse que eu estava contratada. Quer dizer, ele não falou diretamente para mim, mas deu no mesmo. Eu olhei para minha amiga com os olhos cheios de esperança e pude ver a mesma coisa nela, ainda que escondido embaixo da polidez profissional. Me levantei e já estava prestes a deixar a sala, quando Franco deu mais um recado à Priscilla.
— Só para deixar claro, senhorita Goulart, se sua amiga falhar você será demitida na manhã seguinte. — Ele andou até sua cadeira e sentou cruzando as mãos sobre o abdômen.
Eu arregalei os olhos assustada com a possibilidade de prejudicar minha única amiga e, antes que eu abrisse a boca para desistir da proposta, Priscilla falou em meu lugar:
— O senhor não vai se arrepender de ter ela por perto. Eu garanto. — Disse e sorriu, me guiando para fora do escritório.