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1353 Words
SOPHIA NARRANDO Nada é pior do que acordar de manhã com as batidas do senhor Silvino na porta. Se pelo menos eu pudesse fingir que não estou aqui, mas ele me viu chegar em casa ontem. Não me leve a m*l, Silvino é uma ótima pessoa, nosso problema é o fato de eu ser sua inquilina. Para piorar minha situação estou devendo dois meses de aluguel. Todo o dinheiro que eu tinha foi embora com as despesas hospitalares da mamãe e eu estou em um beco sem saída. Todavia creio que a sorte sorrirá para mim hoje, já que tenho uma entrevista de emprego e se eu passar, o que eu acredito que vá acontecer, terei dinheiro suficiente para resolver minha vida. Levantei cambaleando e fui atender a porta antes que Silvino à colocasse abaixo. O velho calvo e baixinho me olhou furioso com os braços cruzados em volta do corpo. Eu já sabia o que ele estava prestes a dizer, mas por cordialidade fiz uma simples pergunta. — Bom dia, Silvino. No que posso te ajudar hoje? — Esfreguei os olhos e bocejei. — Não me venha com essa vozinha fina, Sophia. Você sabe que o prazo que eu te dei venceu ontem! Arrume suas coisas e desocupe o lugar até amanhã! — Apontou o dedo para mim irritado. —Ei! Calma lá... Eu tenho uma entrevista de emprego hoje e dessa vez vai dar certo. Por favor me dê mais uma semana e eu vou ter o dinheiro ou pelo menos parte dele. — Apertei as mãos na frente dele em forma de prece. — Você sabe que todo o dinheiro foi para pagar o hospital e que eu não tenho mais ninguém no mundo para cuidar de mim e da minha mãe. Por favor Silvino, eu imploro! — Caí de joelhos e segurei as mãos dele. Silvino concordou muito a contragosto, mas ele sabia que se me expulsasse, eu teria de dormir na rua. E ele até poderia fazer isso com outros, porém, comigo ele parecia ter algum tipo de apego e sempre cedia. Aproveitei que havia acordado cedo e fui logo para o banho. Graças a Deus tinha água quente, pois o dia não estava dos mais agradáveis, mesmo para um lugar como o Rio de Janeiro. Eu só tinha um terninho, já que todas as roupas caras foram vendidas há mais de um ano. Quase cinco anos se passaram desde que meu mundo virou de cabeça pra baixo e eu vinha lutando com todas as minhas forças para me manter de pé. Se minha mãe não estivesse internada as coisas seriam diferentes, mas eu não tinha escolha senão batalhar até minha última gota de sangue. Mesmo debaixo do chuveiro senti meus olhos se encherem de lágrimas. Eu não estaria naquela posição se todos os amigos do meu pai não tivessem virado as costas para nós. Até Jasper, que me viu crescer, virou as costas para mamãe e eu. “Estarei sempre aqui para te ajudar” ele disse no velório de papai. O que ele esqueceu de dizer é que a “ajuda” dele era me transformar em uma de suas garotas. Aquilo parecia irreal para mim. Logo eu, que sempre sonhei em perder a virgindade com alguém que eu amasse e que fosse passar o resto da minha vida. Me transformar em uma acompanhante de luxo não seria uma opção enquanto eu pudesse evitar. A distância de casa até o ponto de ônibus não era tão grande então não precisava me preocupar em suar muito. Mas o que me incomodava eram os buracos na calçada, por isso, calcei um par de chinelos para ir até a escola e lá trocaria por saltos mais adequados. Enquanto olhava pela janela do ônibus, que por um milagre não estava tão cheio, recapitulava silenciosamente cada pergunta que poderia ser feita e cruzava os dedos para que não me desse branco na hora da entrevista. Conseguir a vaga de professora de artes naquela escola na Barra da Tijuca não seria fácil, mas com meu diploma de graduação da PUC, talvez as portas se tornassem mais fáceis de abrir para mim. Eu só esperava que eles não associassem meu nome ao escândalo de cinco anos atrás, do contrário estaria perdida. Sentada na recepção da famosa Rede Império do Ensino, me deparei com a extrema diferença entre meu bairro inteiro e aquelas quatro paredes. Em outros tempos eu me sentiria em casa naquele ambiente de luxo e sofisticação, mas naquele momento eu sentia vergonha. Era como se eu fosse uma farsa e ali não fosse meu lugar. Entretanto, eu não tinha lugar, não importava onde estivesse. Olhei em volta e achei um exagero a pintura pendurada de frente para a minha fileira de poltronas. Só aquela peça devia custar uns bons sete mil reais. A sala era toda decorada com móveis caros, Zanini, pelo que eu pude notar. No chão um tapete Botteh em cores vivas contrastando com a cor da mobília. — Sophia Vargas? — Uma voz soou na porta atrás do meu assento. — Sim! — Me levantei e ajeitei minha roupa. — Entre, por favor. O senhor Chevalier a aguarda. Passei pela porta sentindo meu coração palpitar e as mãos suarem mais do que o comum. Caminhei pelo corredor repleto de quadros e dei uma suave batida na porta antes de entrar. Atrás da grande mesa de mogno estava um senhor elegante de óculos. Não aparentava ter mais de cinquenta anos, mas eu sabia que, na verdade, ele tinha sessenta e dois. — Senhorita Vargas, é um prazer conhecê-la em pessoa. Ouvi muito bem a seu respeito. Poderia me entregar seu portfólio? Entreguei sem pestanejar e abri um sorri ao notar a expressão de satisfação ao ver meus trabalhos. Em trinta minutos de entrevista, conversamos sobre todos os tópicos referente ao modelo de ensino da instituição, as habilidades e o que esperavam que eu proporcionasse aos alunos. Tudo ocorreu tão perfeitamente bem que, por um instante pensei estar sonhando. Deixei o lugar com um sorriso no rosto pois tinha quase certeza que a vaga era minha. Caminhei até o ponto de ônibus mais próximo e cantarolei uma musiquinha feliz enquanto batia o ritmo na coxa. Poucos minutos depois meu celular tocou e eu estranhei ao ver o número da escola na tela. “Será que esqueci algo lá?” Pensei. — Alô? — Disse. — Alô, senhorita Sophia Vargas? — A voz da secretária que me atendera momentos antes soou constrangida. — Sim, sim. Eu esqueci algo aí? Posso voltar para buscar. — Não, me perdoe. Estou ligando para dizer que agradecemos sua candidatura, porém, não continuaremos o processo com você. A vaga acabou de ser preenchida. Lamentamos tomar o seu tempo e desejamos boa sorte no futuro. — Tudo bem, obrigada pela oportunidade. Assim que a mulher desligou, me deixei cair no banco do ponto, apoiei minha cabeça nas mãos e deixei que a frustração tomasse conta de mim. As lágrimas começaram a cair freneticamente enquanto eu soluçava e tentava respirar ao mesmo tempo. Para minha sorte não havia mais ninguém ali, então pude ter a privacidade que precisava para colocar tudo para fora. Eu não conseguia acreditar que mais uma vez eu era descartada por causa do passado da minha família. Eu pagaria pelo resto da vida assim como meus pais, acusados injustamente de um crime que jamais cometeriam. Meu peito começou a arder e a agonia se apossou do meu espírito enquanto eu tentava dizer a mim mesma, que eu precisava levantar a cabeça e lutar mais uma vez. Todavia como seria possível lutar se ninguém me dava a chance de correr para o campo de batalha? Enquanto tentava voltar para meu eixo, aquela maldita vontade de me machucar começava a ressoar na minha mente como uma segunda voz se unindo a minha. Jurei para mamãe que não faria mais nenhum corte sequer, mas cada átomo do meu corpo clamava para que eu abrisse mais uma brecha na pele, para que a dor escorresse por ela como lágrimas que nem meus olhos eram capazes de transbordar.
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