Paixão

1685 Words
Capítulo-II. Paixão " Ser invisível aos olhos de quem se ama é como morrer e não ter consciência do ponto final no tempo carnal. " Annália O jardim que ficava na frente da mansão era, sem dúvida, o lugar que eu mais gostava. Essa casa apesar de muito bonita me dá arrepios, tem uma energia pesada, estranha. O jardim não me atraia só por causa das flores que pareciam resistir à brutalidade da energia da casa ou pela luz suave do sol que pousava entre as folhas, mas porque ali tudo parecia um pouco mais calmo. Como se o tempo desacelerasse e até as dores das pétalas encontrassem um lugar onde pudessem ser sentidas sem julgamento. Ninguém iria dizer se elas estão com a tonalidade mais clara ou escura. Naquela tarde, o céu estava especialmente bonito. Um dourado ameno tingia a grama e realçava as cores dos jasmins. Foi por acaso — ou talvez não — que o vi andando por ali. Filippo. Paralisei, ele entrou na minha pintura viva, começou a fazer parte dela, um horizonte colorido com um ser que mais parecia uma sombra escura vestido todo de preto. Ele destoava de toda cor, destoava da boa energia e mesmo assim meu coração parecia ganhar asas, simplesmente por vê-lo. Um sentimento maus forte que eu gritava em meu peito, batia pedindo para se mostrar, para se deixar ser visto; não podia. De todos os lugares da mansão, justo ali no meu lugar sagrado. O peito apertou. Me escondi entre as cortinas de tecido acinzentado com os dedos segurando o tecido pesado, e fiquei o observando como quem assiste a um sonho bom que não se pode tocar. Ele andava devagar, com as mãos nos bolsos, o olhar distante. A brisa bagunçava o cachecol em seu pescoço como se também estivesse apaixonada por ele. Meu coração, esse traidor, acelerava só de vê-lo respirar. Me sentia feliz por vê-lo vivo, porém me sentia péssima pelo desprezo que recebo de sua parte. — Tá olhando o quê? — ouvi uma voz baixinha bem atrás de mim. Levei um susto tão grande que quase gritei, mas ao me virar e ver Mariane, suspirei aliviada. — Meu Deus, você quer me matar do coração? Ela riu, debochada como sempre. — Não acredito que tá de olho no saco de osso... Corei. Meu rosto deve ter ficado tão vermelho quanto um tomate. — Não diga isso. Você gosta de um psicopata, então sem moral pra me julgar. — Eu amo nada, mulher! Sofro da síndrome de Estocolmo, é bem diferente — rebateu ela, dando de ombros. Ficamos as duas ali, enfileiradas atrás da cortina, como se assistíssemos a uma cena de teatro. Até que mais alguém chegou em silêncio, como quem não quer nada, e se colocou ao nosso lado. — Estão vendo o meu irmão? — Hadassa arqueou uma sobrancelha com desgosto. — Eu? Não. A barrigudinha aqui é que tá nutrindo sentimentos pelo manequim de cemiti — disse Mariane. — Cemiti? — perguntei, confusa. — Gente! Cemitério! — Mariane bufou. — Ah, caramba! Caveira, pronto, falei. Hadassa caiu na risada, e eu levei a mão à minha barriga por cima do vestido, num gesto instintivo de proteção. — Annália tá de quatro pelo couro e a catinga — soltou Mariane. — Já te disse pra desencantar de Filippo. Ele quer é a enfermeira, e ela quer ele também. Já vi os dois se beijando e... O silêncio caiu como uma bomba. Hadassa ficou imóvel, percebendo o que acabara de dizer. Eu, por minha vez, senti a cor sumir das bochechas. Meu estômago deu um nó. — Beija... é? — perguntei, num fio de voz. — Beija, sim, Annália... — disse Hadassa, num tom mais cuidadoso. — Não vou mentir. Meu irmão... ele não te enxerga. E é uma pena. Porque você é uma menina que é pura luz. Não consegui responder. Apenas baixei o olhar, engolindo em seco. O ar parecia mais denso, como se a casa soubesse da minha dor. Como se as paredes dela se alimentasse de sofrimento. — Vamos pra sala de cinema? — sugeriu Mariane, tentando aliviar o clima. Eu não tinha vontade alguma, olhei uma última vez na direção de Filippo antes de balançar a cabeça em concordância. Dizem que a tristeza não é bom para os bebês, então tentaria me distrair. Fomos. O caminho até lá foi silencioso. Dentro da sala de cinema, as poltronas de couro, o projetor elegante, o ambiente escuro e fresco… tudo parecia distante. Mariane anunciou que ia ao banheiro, porque sempre se arrependia de não ir antes dos filmes. Hadassa disse que ia buscar alguma coisa pra comer na cozinha. Fiquei encarregada de escolher o filme. Mexi no controle remoto, passando pelos trailers. Tentei focar em algo que distraísse o coração, mas ele insistia em gritar o nome dele dentro de mim. Foi então que ouvi a porta abrir. Pensei ser uma das meninas. _ Olha, gosto desse fala de uma menina sofrida onde o rapaz se apaixona por ela e...- paralisei ao olhar para a pessoa que atravessava a porta. Filippo. Ele entrou como se fosse parte da escuridão. Silencioso, alto, letal. Meu corpo congelou. Sentada na poltrona, virei o rosto lentamente parando em seu rosto. Nossos olhos se encontraram. E então, eu não era mais dona de mim. O ar parecia rarefeito. Minha língua colada no céu da boca. Ele me olhou com uma intensidade que não consegui decifrar. E então seus olhos desceram lentamente até minha barriga. Levei a mão ao ventre, instintivamente, como se quisesse protegê-lo de qualquer julgamento. Quando baixei os olhos para encarar o pequeno volume sob o vestido, ouvi a porta sendo fechada. Filippo se foi. E eu continuei ali, imóvel, com o corpo tremendo. Respirava fundo tentando entender o que tinha acabado de acontecer. O que havia naquele olhar? Logo depois, Hadassa entrou com uma bacia de pipoca e Mariane voltou falando de um filme que tinha lembrado enquanto fazia xixi. Fingi que nada tinha acontecido. Não contei nada. Aquilo era meu. E só meu. Talvez ele só quisesse se certificar de que os filhos estavam bem. Nada mais. Era o mínimo que se podia esperar de um homem que havia dito que meu tempo ali já estava contado. O filme começou, assistimos ao que Mariane sugeriu. Uma história de amor previsível, com finais felizes que não cabiam na minha vida. Tentei assistir, tentei rir com as meninas, mas a cabeça estava nele. Sempre está nele. Mesmo quando me lembro do acidente. Quando penso na imagem dele sangrando com a cabeça recostada no meu colo. Quando ouço meu pai gritar por ajuda, e é Filippo quem surge. Mesmo naquela dor, mesmo tendo guardado o seu rosto em minha memória...por muitas vezes eu olhei o capacete que ficou comigo. Tentando senti-lo, irracional, eu sei, mas o afeto me dominava. Quando o filme terminou, cada uma das meninas seguiu para o quarto. Eu também queria descansar, fui para o meu quarto pensando em escrever algumas coisas no meu caderno de confidencias, mas ao abrir a porta do meu quarto, fui surpreendida por uma presença que não esperava. Filippo. De costas pra mim, ele olhava pela janela, imóvel. Sua silhueta contra a luz do sol parecia mais fria do que nunca. — Como estão os bebês? — ele perguntou, sem se virar. Sua voz era seca. Quase como uma obrigação. — Estão bem — respondi, tentando manter a firmeza. Me aproximei da cômoda e puxei a gaveta. Peguei os exames que guardava com carinho. Queria mostrar a ele. Queria que ele visse. Que fizesse parte, que amasse aquelas crianças. — Trouxe os exames... se quiser ver... Mas ele apenas desviou o olhar de mim para os papéis. Não fez nenhum movimento. O silêncio dele era mais doloroso que um grito. — Assim que os bebês nascerem, você vai embora — disse, por fim. Minhas mãos tremeram. Apertei os exames contra o peito. — Eu vou me casar. Minha noiva vai cuidar deles. Ela vai criá-los comigo. Será a mãe deles no papel e na vida. Eles não saberá da sua existência e você não terá proximidade com eles. Foi como se o chão se abrisse sob meus pés. — Não quero que você crie expectativas, Annália. Isso... o que está acontecendo... é um erro. Você não devia estar aqui. E muito menos grávida de mim. Segurei na cômoda, com medo de cair. O ar fugia dos meus pulmões. — Ela sabe? Sua noiva sabe das crianças? Ela as aceita? — Isso não é da sua conta — respondeu, seco. — Você está cruzando uma linha. Uma barriga de aluguel não tem que saber da minha vida. Cada palavra dele era uma faca. — Eu... só queria... — murmurei, sem saber o que dizer. — Está tudo esclarecido. Não tenho mais nada pra tratar com você. Ele virou as costas e saiu, me deixando ali, de pé, com o coração em ruínas. Fiquei parada por um tempo que não sei medir. O quarto parecia girar devagar. O mundo pesava sobre mim. A dor era tamanha que nem conseguia chorar. Me sentei na beira da cama, apertando os exames contra o peito como se eles pudessem me lembrar do porquê eu estava ali. Por que continuei. Por que amei. Amar Filippo era como abraçar uma sombra. Ele não me via. E, se via, preferia virar o rosto. Me senti tola. Me senti suja por querer tanto alguém que me tratava como um erro. E ainda assim, mesmo ali, em pedaços, desejei que ele olhasse pra mim de verdade. Só uma vez. Que dissesse qualquer coisa que não soasse como um veredito. Mas tudo que ele me deu foi sentença. Eu me abracei e me deixei cair na cama. Os olhos marejados, o coração esmagado. E dentro de mim, três pequenos corações batiam em ritmo constante. Eles não sabiam. Não entendiam. E eu teria que ser forte por eles. Mas hoje… hoje, só queria permitir que a tristeza me tomasse. Porque amar alguém que não nos enxerga… é uma dor que não tem nome.
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