Domínio

1947 Words
Capítulo-I. Domínio " t**o é aquele que acredita ter o domínio da vida ." Annália Tudo na vida tem um custo, e esse custo varia conforme a disposição que você tem para enfrentar o sofrimento em troca. Nada vem sem um preço, e a alegria de receber algo ou alguém é o valor que você paga, enquanto a dor da despedida é o tributo por não ter valorizado o que desejava ou a pessoa que cruzou seu caminho. Estamos sempre pagando, não apenas com dinheiro ou com os valores que os bancos e instituições financeiras lucram com juros exorbitantes. Pagamos com lágrimas, sorrisos, dor ou felicidade. Estamos sempre investindo para viver, sonhar e existir, e isso muitas vezes passa despercebido. Ninguém parece notar que viver é um ato dispendioso, não só financeiramente, mas também emocionalmente. Mais uma vez, estou aqui observando minha barriga crescer, essas crianças tão frágeis e delicadas que estão ligadas a mim pelo cordão umbilical e, mais que isso, pelo amor que, mesmo em circunstâncias que não deveriam permitir, floresceu. Sinto a vontade de cuidar delas, mesmo sabendo que isso pode me ser negado. Elas, tão vulneráveis, me pressionam, deslocam meus órgãos e até meu coração, porque sou o lar delas, a mãe, o templo de proteção e amor. Sou mais do que isso; sou a abençoada que recebeu de Deus presentes suaves de uma forma pura, mesmo que os meios que levaram a isso não tenham sido os mais corretos. Eu menti sobre a minha idade, meu pai também mentiu; precisávamos salvar meu irmão, precisávamos do dinheiro. Não sabíamos que ele estava doente, e a descoberta foi um choque devastador. Ele era apenas uma criança sofrendo. Crianças não deveriam sofrer, não deveriam morrer, não deveriam adoecer. Mães não deveriam enterrar seus filhos, não deveriam perdê-los. Ver minha madrasta ajoelhada no quintal, chorando e orando por um milagre, implorando pela benevolência divina, foi doloroso. "Somos pobres, meu Deus, não nos castigue, tenha piedade do meu filho." Eu estava parada na porta, imóvel. O que eu poderia dizer a uma mãe que teme não ver mais o sorriso do filho, que teme não ouvir seu riso ou sua voz? Ela estava sofrendo, e eu, no lugar dela, também estaria. Qual mãe não estaria? Afinal, ele é parte dela, saiu de seu ventre, se alimentou de seu leite, sentiu seu calor. Mães nunca cortam o cordão umbilical de forma definitiva, pois a ligação é uma corrente invisível que nunca se rompe, nem mesmo com a partida. Naquela noite, eu orei pedindo uma solução, que Deus nos envolvesse com seu manto de amor e proteção, que olhasse para nós com misericórdia e perdão. Orei para que, se o tivéssemos ofendido, Ele nos perdoasse. Fui dormir com o coração apertado, a alma ferida e confrontada. "Por que isso estava acontecendo?" — perguntei a mim mesma antes de finalmente fechar os olhos. Então sonhei que estava sentada em um gramado, observando muitas pessoas caminhando, todas vestidas com roupas claras, e, de repente, se aproximou um homem com face calma e olhos cheios de amor. Perto dele vinha minha mãe. Levantei-me e corri em direção a ela, que me envolveu em seus braços calorosos. “Mãe, eu senti tanto a sua falta. Por que você me deixou? Por que partiu? Eu preciso tanto de você!” Sentir seu abraço, seu calor maternal e até o seu perfume foi como ser envolvida por uma névoa de paz e conforto. “Era o meu momento, minha ragazza. Mas sempre estarei te observando.” O homem nos observava com uma ternura que era doce demais. Sorri para ele. “Ela pode voltar para mim?” — perguntei, ansiando pela presença da minha mãe, sentindo sua falta. Afinal, ela se foi sem que eu pudesse me despedir; a COVID nos separou. “Não.” — ele respondeu com suavidade. Fiquei triste. Como ele podia não permitir que minha mãe voltasse para mim? “Posso ficar aqui?” — indaguei, olhando em seus olhos azuis claros. “Ainda não, mas haverá um momento em que você virá para cá.” Senti uma mistura de alegria e tristeza. “Mãe, você vai me esquecer?” Perguntei, erguendo os olhos para ela, que sorriu levemente. “Jamais, minha piccola.” O homem deu um passo em minha direção. “Viemos te trazer alguns presentes, promete cuidar deles?” Sorri, sem saber o que eram, mas aceitei. “Sim.” Minha mãe sorriu, tocou minha mão, e eu despertei, sentindo minha mão quente e perfumada com o aroma de flores. Olhei ao redor e não havia gramado, céu azul ou pessoas vestidas de branco; não havia minha mãe, apenas eu, deitada na cama de solteiro em meu quarto escuro. Meus olhos se fixaram no capacete do rapaz acidentado. Levantei-me, peguei-o e senti o cheiro. Era bom; muitas vezes pensava nele e em como o destino me levaria a cruzar seu caminho de maneira surpreendente. Hoje sou a barriga de aluguel dos seus filhos. Ardendo com o pacto que foi bem claro: gestaria as crianças dele em troca de uma quantia previamente acordada. Sem laços, sem envolvimentos. Contudo, nada na vida era muito simples; meu coração já o abrigava. Meus olhos falavam mais do que minhas palavras, e a minha dor era um silêncio ensurdecedor. Eu o visualizei, criei a figura de um homem gentil, carinhoso e afetuoso. Um ser de coração puro e ações nobres. Deixei-me envolver pela fantasia, mas acabei levando um golpe duro ao perceber que sonhar pode nos fazer cair de cara na dura realidade. Filippo é um homem cuja presença impõe respeito, com olhares penetrantes que parecem desvelar segredos ocultos. Afiado em suas palavras, ouvi murmuros dos funcionários de que ele encarava a vida como um tabuleiro de xadrez — onde as pessoas são meras peças descartáveis. Dizem que todos os Falzones são assim. Certa vez, escutei por trás da porta duas empregadas que fazem a limpeza confabulando baixinho: "Encomendaram uma gestação, movido por um desejo frio de perpetuar sua linhagem, abalada por uma tragédia familiar que quase ocorreu." Alguém disse, e outra pessoa completou: "Queria filhos, não amor." Saí dali sem sentir o chão que eu pisava; elas tinham razão. Quem errou fui eu, ao me apaixonar por um desconhecido. Olhei para a minha barriga, não possuía nada, sequer os bebês. Acabei sem família, sem história, porque os meus não fazem contato há bastante tempo. Os Falzones viram em mim apenas um corpo fértil para realizar algo grandioso. E nós víamos neles a condição de salvar o meu irmão: eles tinham dinheiro, e nós, urgência. Meu pai aceitou o contrato. E aqui estou, grávida de gêmeos, filhos de um homem que não me olhava nos olhos, nem mesmo ao se dirigir a mim, nem mesmo para saber das crianças. Todas as vezes que tentei falar sobre os bebês, ele se retirava. Teve uma tarde, na semana passada, que gritou comigo, me expulsando da varanda. — Não tenho interesse em te ouvir, não entendeu ainda? Seja o que for, fale com a senhora Falzone, depois ela me relata! Tremi tanto, mas tanto, que não sei como tive pernas para me afastar. Os seguranças olharam em minha direção rapidamente. Morri de vergonha, de pavor e sem saber onde colocar o meu rosto. Chorei sozinha no meu quartinho. Doeu, não vou negar, doeu muito. Nos primeiros dias depois que ele regressou do hospital, Filippo ergueu uma barreira de silêncio e indiferença. Eu estava indo para a décima quarta semana de gestação. Tinha feito muitas peças para as crianças, todas em tom neutro e branco. Malva, cunhada de Filippo, sabia dos nomes que eu tinha escolhido. No entanto, é bem capaz dele mudar tudo. Herus, Noah e Luna, se fossem dois meninos e uma menina; se fossem três meninos, seria: Herus, Noah e Uris. Três meninas seriam chamadas de: Luna, Bianca e Rosa. E se fossem duas meninas e um menino, eu escolheria dentre esses. No entanto, ainda não conseguiram ver o sexo deles. Acredito que, em minha mente fantasia, desde o acidente, eu criei um futuro inatingível, fazendo com que Filippo se enraizasse em meu coração. No entanto, a maneira como ele me dirigia olhares, com autoridade e frieza, demonstrando abertamente que me ignora, foi como ter uma pedra arremessada em direção à imagem frágil que projetei precipitadamente do siciliano. Descobri que não o conheço, que me apaixonei por alguém que é como uma coluna de mármore fria. Descobri que ele também me vê como uma incubadora, não como um ser que possui alma e coração. Creio que não se importa, que sequer pondera nada sobre o meu respeito. Se estou bem ou não, isso não lhe faz a menor diferença. Todavia, eu não tenho o controle do meu coração, e esse amor brotou. Cresceu como um tumor oculto, silencioso. Porém, agora eu tinha que encarar a realidade: meu coração pulsava por alguém que jamais me acolherá. Filippo estava apaixonado por outra mulher. Uma enfermeira, de beleza letal e um corpo mil vezes melhor do que o meu. Era para ela que ele sorri, olha com os olhos brilhando e dedica minutos, até mesmo horas de conversa, enquanto eu acompanho tudo de longe, feito um fantasma. Um universo inteiro girava ao meu redor, mas ninguém me enxergava. Com exceção de Hadassa, Malva e Mariane. Certa manhã, ao entrar na sala, o avistei de costas, encostado na janela. Ele parecia uma estátua, as mãos nos bolsos, o terno cinza-escuro moldando seus ombros largos. Estava bem magro, cabelos crescendo e cobrindo a cicatriz em sua cabeça. — Você não entra na sala quando eu estiver. A partir de agora, em qualquer lugar onde eu estiver, não quero a sua presença. A voz dele era desprovida de emoção. Nem raiva, nem ternura. Apenas uma determinação fria. Apertei o meu ventre, onde os bebês estavam protegidos. — Você me odeia? — perguntei em um sussurro. Ele se virou. O olhar dele me cortou como a ponta de uma lança afiada. — Eu não penso em você o suficiente para te odiar. Não naquele momento. Esperei Filippo se afastar. Fiquei sozinha com o corpo tremulando. "E ele... nunca se lembrava de mim." Sou apenas uma sombra dentro dessa casa, algo insignificante. Puxo uma flor que nasceu em meio ao gramado. É tarde e gosto do sol desse horário. — Pensativa? — ouvi a voz de Cosimo. Antes, tinha escutado os seus passos. — Sim, pensando em como a vida manipula as situações enquanto achamos que estamos tomando decisões. O homem olhou ao redor e depois focou em meu rosto. — Por que diz isso? — Porque é a verdade. Achamos que escolhemos, que temos o nosso destino nas mãos, mas não temos. A prova disso é que o senhor pode planejar como vai ser o seu dia de amanhã nos mínimos detalhes, mas sempre vai ser diferente em algum aspecto. Porque a vida também vive e nos usa como brinquedos de suas vontades. — Quem te ensinou isso? Seu pai? — Não, minha conclusão. Por exemplo: eu sonhei em estudar, ter uma profissão, e cá estou, porque a vida decidiu por mim o que eu deveria fazer, porque decidiu por meu pai que ele teria um filho doente e decidiu por meu irmão que ele não teria saúde. De outra forma, jamais teríamos escolhido estas situações para viver. Ele me olhou com profundidade, colocou as mãos nos bolsos. — São coisas da vida, ragazza. — Sim, coisas que ela faz questão de evidenciar que nós não temos o domínio de nada. Acreditamos ter, mas não temos. Cosimo me olhou por mais algum tempo e depois se retirou sem dizer nenhuma palavra.
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