Prólogo
O som da canção não vai parar, não pode parar, porque, se parar, sei que ela se foi; se ela se for, meu mundo para de girar e nada mais fará sentido algum...
Filippo
Há algo perturbador no silêncio. Uma inquietação que se esgueira como uma sombra nos recantos dos quartos, nos corredores frios dessa mansão, na ponta das palavras que ficam engasgadas. Então a voz dela quebra o silêncio, quebra tudo...
E a sensação de ter escutado essa voz, essa maciez angelical de cada palavras me perturba.
Passei meses imerso nesse silêncio. Primeiro, porque não tinha voz. Depois, porque não podia me expressar. Estar em coma é ser engolido pelo silêncio, ser vendado e amordaçado com tecidos invisíveis.
Despertei do coma com a mente fragmentada. Meu corpo sentia a dor antes que eu pudesse compreender.
Eu sobrevivi ao silêncio e a escuridão . Mas a vida não me aguardou e sequer me preparou para o depois, porque quando você sobrevivi sempre há um depois. Eu parei, mas a vida não. Quando retornei, ela já havia mudado.
"Você vai ser pai". Levei alguns minutos para poder compreender isso. Depois veio algo que esqueceram de acrescentar de imediato, porém o fizeram depois.
"Três crianças".
Três corações pulsando fora do meu corpo. Três corações que possuem o meu sangue, possuem o meu código genético.
Tudo fora feito conforme meu desejo, conforme o pedido de moribundo que antecipa sua despedida material deste mundo.
Quando soube do tumor, pedi a meu irmão que realizasse meu último anseio. Queria filhos. Queria uma parte de mim que sobrevivesse à minha morte. Mas eu não morri. E agora estava ali, de volta, cercado por um futuro que já não reconhecia como meu. Os fios soltos em minha mente faiscavam a procura de sua outra parte, nada fazia muito sentido, muito menos a forma como essas crianças foram geradas. Barriga de aluguel, esperma congelado...
Annália.
Esse era o nome dela.
O nome da mulher que carrega meus filhos em seu ventre. Quando a vi pela primeira vez, ainda não havia grandes vestígios da gravidez em seu corpo delicado. Os olhos... os olhos dela me desarmaram. Não era culpa. Nem pena. Era ternura. E essa ternura, para alguém como eu, tornou-se insuportável.
Afastar-me foi um impulso quase instintivo. Uma necessidade de erguer barreiras antes que ela rompesse minhas defesas. Tratei-a com frieza. Com aquela educação cortante que fere sem parecer agressiva. Convenci-me de que era o correto. Ela era apenas um meio. Um corpo emprestado. Nada mais.
Mas eu menti.
Menti para ela. Para mim mesmo. Para todos.
Porque Annália não era apenas um corpo. Era um tempo. Um tempo que se estendia dentro do meu silêncio. Ela cantava para as crianças em seu ventre. Contava histórias fazendo carinho em sua barriga protuberante.
Conversava comigo, mesmo quando eu não respondia. Soube disso depois, por um enfermeiro. Mas, mais do que isso, percebi quando vi nos olhos dela a dor de quem ama em segredo.
Nada fiz.
Deixei que se afastasse. Que se encolhesse. Que se calasse. E ela fez isso. Com a dignidade das almas feridas que não imploram. Mas eu a observava. De longe. Sempre de longe.
Às vezes estava com livros, outras com laços de fita, às vezes apenas com o olhar repleto de amor perdido no horizonte ou de encontro ao céu; céu esse que parecia ter descido com suas asas invisíveis. Um anjo, foi isso que vi em Annália, um anjo. Um ser celestial delicado, bom demais para mim, para carregar minhas sementes, para estar no meio da imundície da qual faço parte.
Foi a primeira vez que tive vergonha de mim e do que faço. Foi a primeira vez que me questione sobre ter as mãos sujas e o espírito podre e o fiz unicamente por causa dela.
O amor sempre foi um mistério para mim. Sempre o vi como algo perigoso, instável e traiçoeiro. Quando percebi esse amor em Annália, reagi com frieza. Não por maldade, mas por medo. Um medo tão profundo que só consegui nomear meses depois.
E os meses passaram.
Os três —Herus, Luna e Noah- chegaram rápido demais, como se soubessem que o tempo sempre foi uma ameaça para mim. Nessa vida escura, hoje se respirar e amanhã... isso é uma incógnita. Eles me devolveram a vida e, aos poucos, também me devolveram Annália, de maneiras que ela nem percebeu.
Hoje, a vejo no jardim. Ela segura Luna nos braços, enquanto os meninos estão no carrinho. O vestido dela dança ao vento. O cabelo preso de qualquer jeito. O rosto sereno. Ela me nota. E não desvia o olhar.
Nossos olhares se cruzam.
E, pela primeira vez, percebo que talvez o amor não seja apenas aquilo que destrói.
Talvez também seja aquilo que, no final, permanece.
Mesmo após o silêncio.
Mesmo após o coma.
Mesmo depois de tudo.