Capítulo- IV. Gélido
" Somos partes diferentes que se fundem e torna as nossas duas aureas magníficas; eu sou calmaria quando você é tempestade. Você é gelidez, quando eu sou calor. Então, meu amor, olhe para mim porque os opostos se atraem."
Annália
Não consigo explicar exatamente o que me cativa nele. Talvez seja o silêncio que o envolve. Ou a frieza com que me trata. Ou ainda essa maneira peculiar de carregar o peso do mundo, como se nada e ninguém pudesse realmente tocá-lo. Como se dor e amor fossem apenas palavras vazias.
Filippo é um homem de gelo. Daqueles que, só de olhar, percebemos que nasceram para comandar. Não precisa elevar a voz para ser temido. Não precisa amar para ser desejado.
E eu — a tola que sou — acabei me apaixonando por ele.
Foi algo instantâneo. Aconteceu no primeiro dia, depois nos demais dias que se seguiram . Não foi um processo gradual, como mergulhar em uma água gelada: primeiro o choque, depois a entrega. Foi avassalador e quando percebi, já estava submersa.
Mas ele não me nota. Não me vê. Não me escuta. Sou menos do que uma sombra em sua concepção.
Sou apenas um ventre — um recipiente — carregando os trigêmeos que ele tanto almejou. Sou uma função. Um contrato. Uma barriga. Nada mais, somente isso.
Hoje, pela primeira vez em semanas, ele foi impelido por dona Gemma a me acompanhar a uma consulta. Não por mim, é claro. Apenas pelos bebês. E, o siciliano, fez questão de deixar isso claro antes mesmo de entrarmos no carro, com aquele olhar impassível, sem espaço para ilusões.
_ Estou lhe acompanhando, exclusivamente por causa dos bebês. - limitou-se a falar. Filippo usava máscara, luvas e evitava se aproximar de mim no carro.
Quando chegamos ele andou na frente, me deixando sozinha para trás.
Filippo mantinha distância é eu queria um abraço. A carência de carinho estava me matando aos poucos. Eu me sentia solta, sozinha, perdida e melancólica. Minha vida não ia nada bem. Tinha momentos que eu queria que as crianças nascecem logo para eu me livrar de tudo, tinha momentos que eu não queria porque iria ser colocado em novo sofrimento. Nenhuma mãe fica feliz longe dos filhos.
Adentramos ao ambiente impecável e silencioso.
A clínica era espaçosa, com paredes claras e um aroma de álcool misturado a flores, lavanda. Ao entrar na sala da doutora, senti minhas mãos suarem. Não por medo da médica, mas porque ele estava ali. Sentado ao meu lado. Perto o suficiente para que eu pudesse ouvir sua respiração — fria, ritmada, metódica.
A doutora sorriu para nós, sem perceber o abismo que nos separava.
— Então, Annália... estamos com 15 semanas, certo? — perguntou, abrindo a ficha.
Assenti com um sorriso tímido.
— Como você está se sentindo?
— Bem... um pouco enjoada, às vezes — murmurei.
A médica levantou as sobrancelhas e começou a folhear alguns papéis.
— Isso é o que me preocupa. Pelos exames, você está abaixo do peso ideal para uma gestação de trigêmeos.
Senti o olhar de Filippo sobre mim. Ele não disse nada, mas o silêncio se tornou pesado como chumbo no ar.
— Você perdeu peso nas últimas semanas — continuou a médica. — E veja aqui... — ela puxou outro papel, colocando-o por cima dos demais — ... a anemia está mais acentuada. Precisamos agir. Isso pode afetar diretamente o desenvolvimento dos bebês. Eles precisam de nutrientes. Você precisa se alimentar melhor, descansar e se hidratar. A anemia materna durante a gravidez pode ser um risco para os bebês devido à diminuição da oferta de oxigênio e nutrientes essenciais aos fetos.
Senti um nó na garganta.
— Eu... eu não tenho conseguido comer direito, dormir direito...— confessei, a voz embargada.
Filippo ainda não havia falado. Mas eu podia sentir sua tensão. Um músculo do maxilar dele se contraiu. E, por um breve momento, algo nos olhos dele parecia preocupação. Não por mim, claro que não. Mas pelos filhos que crescem dentro de mim.
— Vou receitar novas vitaminas e um suplemento de ferro — disse a médica. — E, por favor, nada de esforços. Nada de estresse. Você está gestando três vidas. Isso exige tudo de você.
Apenas balancei a cabeça em confirmação.
A consulta chegou ao fim, trazendo recomendações e um novo cronograma de exames. Ao sair da sala, senti um peso no coração. Por dentro, a ansiedade me consumia. Pela primeira vez, temi não conseguir cumprir a promessa que fiz a mim mesma: garantir que aquelas crianças nascessem saudáveis.
Acontece que o ser humano Annália estava sofrendo e ninguém parecia enxergar.
Do lado de fora, no corredor silencioso, Filippo segurou meu braço com firmeza. Seu toque era quente, quase impetuoso, fez meus pêlos focarem arrepiados .
— Você me disse que estava bem — disse ele, em um tom baixo e seco.
— Eu pensei que estava... — respondi, tentando manter a compostura. — Mas os enjoos pioraram. Estou vomitando quase tudo o que como.
Ele franziu a testa, preocupado.
— E ninguém percebeu isso?
— Malva sempre notava — confessei, hesitante. — Mas ela está viajando. Lua de mel. E dona Gemma tem se ocupado demais com os preparativos de algo que o seu pai pediu... algo que tem haver com a empresa de vocês. - ele me olhou com severidade.
—O que sabe sobre nossos negócios?
—Apenas que são empresários e....aí, está me machucando...- falei olhando em sua direção, um brilho passou por seus olhos ele apertou mais para depois soltar.
No entanto, seu olhar se tornou mais sombrio. Ele respirou fundo, como se estivesse tomando uma decisão difícil.
— A partir de agora, você vai dormir no mesmo quarto que eu — afirmou, com firmeza. — Até os bebês nascerem.
Fiquei com os olhos arregalados. O coração acelerou. A alma pulou dentro de mim.
— O quê?
— Não quero correr mais riscos. Você pode desmaiar e estando sozinha, colocará em risco os meus filhos. Se algo acontecer quero estar por perto. Preciso garantir que meus filhos estejam bem. E, se depender de você, não estão.
Ele falava como um comandante em meio à batalha. Frio. Rápido. Implacável.
Mas eu... só conseguia pensar na cama dele. No perfume que impregnava suas camisas. Na ideia de acordar ao no mesmo cômodo — mesmo que por razões que não sejam ligadas ao amor.
— Tudo bem — respondi, tentando disfarçar a euforia por trás de uma expressão neutra. Que vinha carregada com uma pontada de tristeza.
Durante o trajeto de volta, o carro seguia em silêncio. Ele não dizia nada. Eu também não. Mas meus pensamentos eram um turbilhão.
Será que ele vai começar a me enxergar?
Estar no mesmo espaço todas as noites pode mudar algo?
Será que o coração de gelo dele pode, ao menos, se rachar?
Todo percurso foi feito em silêncio absoluto. Ele sequer me olhou.
Ao chegarmos em casa, ele foi direto para o quarto e mandou que todas as minhas coisas fossem retiradas do meu antigo cômodo. Não me esperou. Pediu a um dos seguranças que avisasse. E eu fui. Silenciosa. Submissa. Como se estivesse cruzando o limiar de uma nova vida.
Ao entrar no quarto dele, percebi pela primeira vez a saudade que sentia das visitas que fazia às escondidas, de observar o quanto ele era metódico. Tudo excessivamente organizado. As roupas no armário alinhadas por cor. Os livros empilhados com precisão. A cama feita com uma perfeição quase militar. Parecia que não havia espaço ali para falhas, sentimentos ou bagunças.
Talvez por isso ele não suportasse minha presença. Eu era tudo o que ele evitava: emoção fora de hora. Desejo inconveniente. Sentimentos à flor da pele.
Filippo mandou montar uma cama para mim na parede oposta a qual a dele ficava. Ficou destoando a madeira pintada de branco e a colcha clara dos demais itens e cores do quarto. Eu era a intrusa.
Naquela noite, deitei-me na cama sem coragem para o espiar, fiquei quieta como ele ordenou. De costas para a porta, apenas respirei o aroma do quarto de Filippo. Passei horas com os olhos abertos, ouvindo sua respiração tranquila.
Até que tomei coragem e olhei para a cama do siciliano, Filippo dormia como se não carregasse culpa alguma. Eu, por outro lado, carregava amor demais — e esperança em excesso.
Passei a madrugada refletindo sobre os detalhes. Os olhares fugazes. Os gestos que ele tentava ocultar. Os fragmentos da verdade que começavam a me ferir. Talvez ele seja um sádico...