####A CULPA

868 Words
O AMANHECER Anthony O relógio marcava uma hora da manhã quando estacionei o carro diante da mansão. As luzes da fachada estavam apagadas, exceto pelas lanternas do jardim, que lançavam sombras alongadas sobre a pedra clara da entrada. O ar da madrugada era frio, e por um momento fiquei dentro do carro, com o motor desligado, observando a casa silenciosa. Era estranho como um lugar tão grande podia parecer tão vazio. Subi as escadas sem fazer ruído. O velho já devia estar dormindo havia horas, e eu não queria que ouvisse o som do portão. Atravessar aquele corredor sempre me causava uma sensação de deslocamento — como se eu invadisse o passado. Ali, as lembranças ainda tinham cheiro: o perfume da minha avó, a madeira encerada, o toque de música clássica que ela colocava nas manhãs de domingo. No quarto, tirei o paletó, deixei o celular sobre a mesa e caminhei até o banheiro. O espelho me devolveu um rosto cansado, mas ainda firme. Joguei água fria no rosto, tentando apagar qualquer traço da noite anterior. Isabella tinha ido embora deixando para trás o mesmo vazio de sempre. E pela primeira vez, aquele vazio pareceu mais incômodo do que libertador. O banho foi rápido. A água quente caiu sobre mim como se quisesse arrancar a culpa que eu fingia não ter. Quando voltei para o quarto, vesti o roupão, deitei e fechei os olhos. O silêncio da casa era quase absoluto, e adormeci com a sensação amarga de que algo em mim começava a se partir. A manhã chegou sem pedir licença, o sol atravessava as cortinas com insistência, e o canto dos pássaros no jardim me fez abrir os olhos. O relógio marcava oito e meia. Levantei-me devagar, ainda com o corpo pesado, e fui direto ao banheiro. O espelho agora mostrava um homem que tentava parecer inteiro. Desci as escadas e o aroma do café fresco me guiou até o salão principal. A mesa estava posta, e o som leve de vozes veio do jardim interno. Ao me aproximar, reconheci o riso suave do meu avô — um riso que não ouvia havia muito tempo — e a voz calma de Hope. Ela estava ali, ao lado dele, servindo o café da manhã com a delicadeza de quem faz do cuidado uma oração. O velho Rorô sorria enquanto ela cortava as frutas e ajeitava o guardanapo em seu colo, como se aquele gesto simples devolvesse à casa a vida que há anos se perdera. Fiquei parado à porta, observando. O contraste entre o que eu era e o que via diante de mim me atravessou como uma lâmina. Na noite anterior, eu busquei prazer. Agora, diante daquela mulher e daquele homem, via amor — em sua forma mais simples, mais humana, mais silenciosa. E pela primeira vez em muito tempo, senti vergonha. Ela percebeu minha presença e se levantou imediatamente. — Bom dia, senhor Anthony. O tom era respeitoso, mas o sorriso era leve. — Bom dia — respondi, tentando disfarçar a voz rouca. — Como está sua irmã? — Está reagindo bem, graças a Deus. Os médicos dizem que o corpo dela está respondendo ao tratamento inicial. A cirurgia deve acontecer em poucos dias. Assenti, cruzando os braços. — Fico feliz por saber. Meu avô, animado como um garoto, interveio: — E eu, meu filho, estou me sentindo um rapaz de quinze anos com os cuidados dessa enfermeira particular. Ele riu alto, e Hope também. A cena era tão leve que eu mesmo não consegui conter um sorriso discreto. — Vejo que o senhor está em ótimas mãos — comentei. — Melhores impossível — respondeu o velho, piscando-me com cumplicidade. — Você devia aprender com ela, Anthony. Essa moça tem um dom. — Eu aprendo apenas observando, avô — respondi, com honestidade. Aproximei-me, inclinei-me e beijei a testa do velho. — Só vim me despedir. Preciso ir para a empresa. Hope ajeitou a xícara sobre a bandeja e disse com serenidade: — Sua irmã vai ficar sob observação o dia todo, senhor Anthony. Os medicamentos a deixarão sonolenta, então eu volto para o hospital apenas à noite. — Entendo — murmurei. — Então hoje você descansa um pouco. Ela assentiu, e por um breve instante nossos olhares se cruzaram. Havia algo naquele olhar — uma espécie de compaixão silenciosa que me desarmava. — Tenha um bom dia — ela disse. — Bom trabalho, senhor Anthony. Sorri de leve, mas não respondi. Caminhei até o corredor e, antes de sair, olhei uma última vez para a cena: meu avô sorrindo como há muito tempo não sorria e Hope ao lado dele, simples, serena, quase luminosa. E foi impossível não pensar no contraste. Enquanto ela alimentava a fé e o afeto com gestos pequenos, eu passava as noites alimentando vazios. No caminho até o carro, senti um incômodo que não consegui explicar. Talvez fosse apenas culpa. Ou talvez o início de algo que eu ainda não sabia nomear. O motor do carro ronronou, e a mansão ficou para trás, banhada pela luz do sol. Mas, pela primeira vez em muitos anos, eu me perguntei se o poder que conquistei valia o preço de um coração em paz.
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