}}}}}ONDE DORME A FÉ
737 Words
Hope
O silêncio da mansão parecia respirar por conta própria.
Era um silêncio denso, vivo, cheio de histórias não contadas.
Cada passo que eu dava pelo corredor soava como se eu estivesse caminhando dentro de um sonho — ou de uma memória que não era minha.
Quando fechei a porta do quarto, encostei as costas nela e deixei o corpo escorregar um pouco, até sentir o frio da madeira nas omoplatas.
Respirei fundo.
Anthony.
O nome dele ficou suspenso no ar, pesado e intrigante, como se carregasse séculos de segredos.
Ele fala como quem dita sentenças, mas olha como quem procura algo que perdeu há muito tempo.
Há dor ali. Uma dor antiga, disfarçada de disciplina.
É fácil perceber que ele carrega mágoas demais — até no jeito que respira.
Há um cansaço nos gestos dele, um peso invisível entre cada palavra.
É como se medisse tudo: o tom, o olhar, o silêncio.
Como se tivesse medo de sentir, medo de ser humano demais.
Sentei-me à beira da cama, observando o quarto iluminado pela penumbra amarelada do abajur.
O som do relógio de parede era o único que ousava quebrar o silêncio.
A lembrança da voz dele — fria, contida, mas curiosamente vulnerável — ainda ecoava dentro de mim.
Não era arrogância o que eu via em Anthony.
Era defesa.
Uma forma sofisticada de esconder cicatrizes.
E, de algum modo, eu reconhecia esse tipo de dor.
Era diferente da minha, mas também nascida da falta.
Eu e Faith crescemos sem nada.
Sem pai. Sem mãe.
Sem sobrenome que abrisse portas, sem braços adultos que nos segurassem nos dias frios.
Mas tínhamos uma à outra.
E tínhamos fé.
Fé era o pão que não faltava na mesa.
Fé era o teto que nos abrigava quando o mundo era duro demais.
Fé foi o colo que nos embalou nas noites em que só o vento respondia às nossas preces.
Mas e ele?
Onde estão os pais de Anthony Vitale?
O que aconteceu com a criança que ele foi, para que o homem que nasceu dela aprendesse a viver sem amor, mas não sem regras?
Que perda moldou aquela frieza?
Quem lhe ensinou que o controle é mais seguro do que o afeto?
O dinheiro dele compra tudo — exceto paz.
A frieza que o protege deve custar caro.
Talvez mais caro do que a minha esperança.
Olhei ao redor.
O quarto era grande, elegante, perfeito.
Demais para mim.
Cortinas de linho se moviam suavemente com o vento, o tapete era macio, e o abajur dourado lançava uma luz cálida sobre a mobília impecável.
Mas nada daquilo me pertencia.
Era como viver dentro de uma pintura bonita demais para conter vida real.
Fechei os olhos e inspirei fundo.
O perfume das glicínias vinha do jardim, misturado ao frescor da madrugada.
Aquele aroma me lembrava o orfanato — quando a irmã Teresa pendurava flores secas nas janelas, dizendo que “o perfume das coisas simples é o cheiro do amor de Deus”.
Naquele instante, senti como se ela estivesse ali, me observando, com o mesmo olhar paciente de sempre.
Ajoelhei-me ao lado da cama e juntei as mãos.
A oração veio sozinha, sem esforço, como quem conversa com um amigo de infância:
> “Senhor, se o coração dele carrega feridas que o tempo não curou,
não permita que a minha fé se torne mais uma cicatriz.
Se o frio o mantém de pé, que o Teu calor o ensine a descansar.
E se eu tiver que caminhar por entre sombras,
que a Tua luz nunca se apague dentro de mim.”
A voz embargou, mas não por tristeza — era gratidão.
Porque, de alguma forma, eu sabia que Deus estava nos dois caminhos: no dele, árido e solitário; e no meu, incerto, mas cheio de amor.
Deitei-me.
O teto, branco e alto, parecia o céu de um templo silencioso.
Fechei os olhos e pensei em Faith.
Amanhã começaremos a caminhada.
Ela, rumo à cirurgia.
Eu, rumo a um destino que escolhi por amor.
Talvez não seja o casamento dos sonhos, mas é o caminho que me foi dado — e onde há amor, há propósito.
Anthony não entende isso ainda.
Mas um dia entenderá.
Nem toda promessa nasce de um altar. Algumas nascem da dor e florescem na fé.
E, no fundo, acredito que mesmo as promessas feitas por contrato podem ser abençoadas…
desde que cumpridas com verdade.
- Writer
