A madrugada se despediu devagar, e o céu da Filadélfia começou a se tingir de um azul pálido — um azul nervoso, trêmulo, como se o próprio firmamento hesitasse diante do novo dia que nascia.
A mansão Vitale despertava em silêncio, e até as paredes pareciam aguardar permissão para respirar.
Acordei antes do sol, não por insônia, mas por hábito.
Anos de lanchonete e orfanato me ensinaram que quem se levanta primeiro tem mais chances de vencer o dia — e, às vezes, sobreviver a ele. Faith ainda dormia.
O rosto dela parecia tranquilo, um descanso que o corpo doente raramente concede.
Os fios finos do cabelo se espalhavam sobre o travesseiro como um campo de trigo sob vento leve.
Por um instante, fui novamente a menina de dez anos, ajoelhada no jardim do orfanato, observando a irmã Teresa estender lençóis brancos e cantarolar hinos entre as flores. Ela dizia que cada manhã era um presente embrulhado em esperança.
“Amanhã é só uma folha em branco, minhas meninas. O que vocês escreverem nela é escolha de vocês.”
As lições dela ainda ecoavam em mim, moldando minha fé, minha forma de enxergar a dor e o recomeço.
Mas a folha daquele dia parecia mais densa, como se o destino houvesse mergulhado nela uma pena de chumbo.
Desci as escadas guiada pelo aroma de café fresco.
A cozinha exalava calor e vida — o contraste exato do que eu imaginava encontrar em uma casa de mármore e aço.
Mirtes já estava de pé, supervisionando o café da manhã com a atenção de quem cuida de um ritual.
— Bom dia, senhorita Hope — disse ela com um leve sorriso, enxugando as mãos no avental. — Dormiu bem?
— Dormi, sim, obrigada, senhora Mirtes.
Ela me observou com ternura, os olhos cheios de uma preocupação mansa. — Sua irmã ainda está fraca, não é?
— Está, mas agora temos uma chance, já é o suficiente para recomeçar.
Mirtes assentiu, emocionada. — Sabe, essa casa sempre foi grande demais para tão pouca vida. É bom ver pessoas que ainda acreditam em recomeços.
As palavras dela ficaram pairando no ar, como um eco de esperança em um espaço que tanto precisava dela.
Olhei pela janela: o jardim brilhava sob o orvalho da manhã.
As gotículas pareciam pequenas joias descansando nas pétalas das roseiras, cada uma prometendo um novo dia repleto de possibilidades.
O doce canto dos pássaros se misturava ao perfume das glicínias, criando uma sinfonia natural de vida.
Havia beleza, sim — mas uma beleza que pedia redenção, um lembrete de que mesmo na dor, a vida continuava a florescer.
O som dos passos de Anthony ecoou no corredor com precisão quase militar. Quando ele entrou no salão principal, o ar pareceu mudar de densidade.
Vestia-se como sempre: terno escuro, camisa branca, cada movimento medido, cada palavra ensaiada antes mesmo de ser dita.
O olhar — frio, exato — era o de quem aprendeu cedo que o afeto pode ser uma fraqueza. Mirtes se afastou discretamente, deixando-nos a sós.
— Senhorita Salazar — começou ele, sem cumprimentos. — Precisamos alinhar algumas questões.
Fiquei de pé, mantendo as mãos unidas diante do corpo, como se estivesse segurando todas as esperanças e medos dentro de mim. — Claro, senhor Vitale.
— A partir de amanhã, você e sua irmã iniciarão os exames preparatórios. A equipe médica já foi instruída.
Sua irmã será hospitalizada em regime integral, com acompanhamento constante.
A cirurgia ocorrerá assim que o quadro clínico permitir.
— Ele fez uma pausa curta, o olhar imóvel, como se estivesse medindo o impacto de suas palavras, calculando a tensão no ar.
— Quanto a você, começaremos os exames de fertilidade e compatibilidade no mesmo período. O cronograma não pode ter atrasos.
Assenti, mantendo a postura. — Entendido, senhor Vitale.
— O casamento — prosseguiu ele — ocorrerá dentro de trinta dias, o prazo definido no testamento do meu avô. Hoje mesmo você será apresentada a ele.
Essas palavras, embora esperadas, soaram dentro de mim como um toque de sino distante, reverberando nas paredes da minha mente casamento, contrato e prazo.
Tão diferentes da ideia que cresci acreditando — a união como promessa diante de Deus, não como cláusula diante de advogados.
— Eu agradeço, senhor Vitale — disse, reunindo coragem, lutando contra o nó na garganta. — Agradeço pela oportunidade de tratar minha irmã. Sei que o senhor não tinha obrigação de…
— Não estou ajudando — interrompeu, seco, como se cortasse um laço emocional que estava prestes a se formar.
— Estou apenas cumprindo o que foi acordado.
A frieza dele me atravessou como vento cortante, um lembrete de que daqui em diante, eu estaria atenta a cada movimento seu, cada palavra e cada não-dito.
— Ainda assim — murmurei, com um pequeno sorriso, tentando em vão aquecer a atmosfera gélida. — Agradeço senhor.
Por um instante, percebi um lampejo nos olhos dele — desconforto, talvez curiosidade, como se ele estivesse lutando contra as próprias emoções, contra a educação que lhe fora imposta.
Logo se dissipou, encerrando a oportunidade de um momento mais humano entre nós.
— Prepare-se — disse, ajustando o relógio, seus gestos sempre tão controlados; a precisão quase uma forma de defesa.
— O meu avô está no jardim dos fundos. Ele prefere o ar da manhã.
O jardim era um espetáculo de ordem e simetria. Roseiras, glicínias, fontes circulares e arbustos aparados como se cada folha tivesse sua própria hierarquia, poderosa e imutável.
Anthony caminhava à frente com passos firmes; eu o seguia em silêncio, sentindo que, de alguma forma, aquele lugar representava o próprio dono — belo, mas preso à rigidez que o sustentava, cada elemento escolhido com base nos padrões da tradição que ele parecia carregar como um fardo.
O avô estava sentado sob um caramanchão florido, como se estivesse ali para olhos que não só viam, mas sentiam a vida pulsar ao seu redor.
A pele alva, os cabelos brancos, as mãos finas pousadas sobre uma manta, testamento de uma vida que já floresceu.
Os olhos, porém, eram vivos.
Azuis, profundos, com a mesma cor dos do neto — mas sem o gelo.
— Então é você a moça que o destino trouxe até nós — disse ele, com voz fraca, mas firme, como se cada palavra fosse um passo cuidadoso sobre um terreno delicado.
Ajoelhei-me, tomada por um impulso natural de respeito e reverência. — Senhor Vitale, é uma honra conhecê-lo.
Ele sorriu, gentil, numa luz que parecia apagar a frieza do ambiente.
— Não precisa de formalidades, minha filha, há muito tempo esta casa não recebe alguém que chame este lugar de lar.
Anthony ficou imóvel, observando de longe, o semblante impassível, mas com a tensão visível em seus ombros.
O velho pousou a mão sobre a minha, um gesto simples que carregava um mundo de significados.
— Ouvi sobre sua irmã. — O olhar dele amaciou, infundindo compaixão nos resquícios da dureza que o cercava.
— Quando um coração puro faz sacrifícios por amor, o céu costuma recompensar.
As palavras tocaram fundo, reverberando em mim como uma canção antiga, uma verdade escondida na profundidade da alma.
— Eu acredito nisso, senhor — respondi, sentindo a voz embargar, cada sílaba se tornando um tributo à esperança.
— Acredito que o amor, quando é verdadeiro, não exige retribuição. Ele só sabe doar.
O velho Vitale assentiu devagar, como se estivesse sintonizado com o fluxo do universo. — É assim que deve ser.
Vi o neto desviar o olhar, seu controle se desfazendo por um breve momento.
Talvez porque aquilo o ferisse de alguma forma — o som de um sentimento que ele ainda não conseguia nomear.
De volta ao quarto, encontrei Faith desperta, o rosto pálido, mas os olhos brilhando como duas pequenas estrelas teimosas, resplandecendo força e determinação.
— E então? — perguntou ela, incapaz de esconder a curiosidade.
— Ele é um homem de poucas palavras, mas justo. E o avô dele... parece um anjo cansado.
Ela riu, com a voz rouca, a expressão suavizada por um toque de humor. — Então o nosso destino tem anjos escondidos em ternos.
Sentei ao lado dela, ajeitando o lençol, tentando trazer um pouco de aconchego à sua fragilidade. — Você vai melhorar logo, mana, o tratamento começa amanhã.
Ela me observou, séria por um momento, a expressão se tornando uma máscara de preocupação. — E você vai se casar?
— Em trinta dias.
Faith sorriu fraco, a luz da esperança brilhando em seu olhar. — Trinta dias é o tempo que Deus leva pra fazer um milagre, Hope.
A frase dela me atravessou como uma revelação, uma conexão divina estabelecendo-se entre nós.
Pensei na estrada, na mansão, nas promessas silenciosas que o céu parecia esconder.
A estrada simbolizava o caminho entre a dor e a esperança, repleta de curvas e desafios. A mansão, o peso da promessa, os segredos que ainda estavam por vir.
E eu estava ali, suspensa entre os dois, tentando manter viva a fé que sempre nos sustentou.
Mais tarde, quando a noite caiu, desci ao jardim. A lua refletia nas fontes como prata líquida, um sussurro de beleza na escuridão, e o vento espalhava o perfume das glicínias pelo ar, como uma canção de ninar para a alma cansada.
Toquei uma das pétalas e fechei os olhos, deixando que as lembranças surgissem na mente.
O orfanato, a irmã Teresa, o riso de Faith — tudo voltou como uma onda de nostalgia e amor.
As lições, as orações, os dias em que dividíamos um pão e o chamávamos de banquete.
Faith dizia que a fé é a ponte entre o que se vê e o que se espera, e agora entendia: eu era essa ponte. “Senhor, não me deixe esquecer quem sou.
Não me deixe perder o coração na casa dos poderosos. E que a promessa que fiz diante da dor, eu cumpra diante da Tua luz.” Quando abri os olhos, vi uma sombra ao longe — Anthony, parado sob a varanda, o rosto meio oculto pela penumbra. Não disse nada.
Talvez nem ele soubesse o que o havia trazido ali, mas imaginava que dentro dele houvesse uma batalha silenciosa entre o dever e a humanidade.
Mas naquele instante, percebi algo — não era amor. Era o início de um reconhecimento, uma pequena fissura na armadura que envolvia seu coração.
A alma dele, mesmo envolta em ferro, parecia recordar, ainda que por um segundo, o que era ser humano.
O vento soprou mais forte, como se quisesse levar suas barreiras. A lua se escondeu atrás das nuvens, uma dança de luz e sombra.
A mansão, outrora fria, parecia respirar de novo, como se a vida voltasse a pulsar em seus corredores.
E eu soube — com a certeza mansa que só a fé ensina — que a estrada ainda era longa. Mas, pela primeira vez, o caminho não me assustava. Porque havia promessa. E, dentro dela, havia Deus.