FAMIGERADO

1962 Words
Logo amanheceu e o resultado da madrugada foi de alguns homens dormindo encostados nos cantos das paredes e outros por sobre as mesas, assim como eu. Eu sentia pontadas agudas na cabeça quando tentava manter os olhos abertos e, a cada claridade que vinha até mim, a dor se arraigava sem dó no meu cérebro. Preferiria morrer a ter de sentir tudo aquilo outra vez. O capitão Gulian já estava acordado e ria debochadamente enquanto analisava meu jeito provavelmente estranho de passar por esse ritual m*****o. — Como está, Telo? Antes me negava a olhar para ele enquanto zombava de mim, mas em meio à pergunta eu era forçado a pelo menos passar os olhos em sua direção, ao dizer: — É normal esse m*l estar? Ele riu descaradamente mais alto desta vez, me constrangendo. Quando olhei para os lados, procurando ver alguém acordando com as risadas, percebi outros homens a segui-lo na zombaria. Talvez não estivessem rindo de mim, talvez estivessem rindo da risada do capitão Gulian. Desejei que fosse esse o caso, até ver um deles apontando para mim e fazendo outros rirem consigo. Infames e desprezíveis. — Quer ir à biblioteca, Telo? — provocou-me o capitão, buscando desculpas para continuar com seus tripúdios. Mas não deixei barato. — Eu precisaria de sua permissão em escrito — esclareci, depreciando suas risadas que foram se desfazendo ao não notar mais o meu desgosto por suas brincadeiras desnecessárias. Me desculpe, capitão Gulian, mas esse tipo de batalha sou eu quem ganho, seria impossível converter em números o sentimento aprazível que me inundou, eu sou quem tenho a melhor parte do seu cérebro; isso até ele não saber que era uma batalha, porque sabendo, usaria este lado de seu cérebro contra mim. Ele estendeu sua gigantesca mão em minha direção, do outro lado da mesa, e eu soube na mesma hora do que se tratava. Tirei de minha bolsa transversal de couro velho, deitado ao meu lado no banco, um punhado de folhas amarradas com uma capa marrom de couro curtido, com uma linha também de couro que contornava o caderno, o forçando a se manter fechado. Em seguida tirei também uma pena e um tinteiro fechado por rolha, que carregava por todos os cantos. Por fim dei em suas mãos os itens e ele folheou o livro que eu mesmo fiz até encontrar uma página em branco, onde escreveu por extenso tudo o que já sabia que precisaria escrever, me dando plena permissão para estudar pelo tempo necessário durante todo aquele dia. Depois ele empurrou o livro sobre a mesa e eu o peguei. Saí da taverna logo depois e fui à procura da biblioteca. Andei por avenidas, ruas e vielas, todas cobertas por paralelepípedos e abarrotadas de humanos e sumos. Perguntei para muitos e por quase todos fui ignorado. O único que quis gastar seu tempo comigo, foi até gentil e me disse detalhadamente como chegar à biblioteca. Felizmente demorei para chegar até ela, pois antes pude aproveitar a vista. Não só Andorra em si, mas o reino de Madeter tinha uma arquitetura magnífica, com construções em formatos de prismas, cones... tetos em formatos de dodecaedros, icosaedros, tetraedro, e uma diversidade surpreendente de formas nos formatos e texturas. A biblioteca em si ocupava mais que um quilômetro quadrado, rodeada por quatro importantes avenidas, com portas em frente a todas elas e com um pátio vasto que cercava todo o lugar. Sua construção era em formato de cubo com a cúpula em icosaedro, sendo feita de grandes vidros de diferentes cores grudados por barras de metais. Estar lá dentro, com o sol da manhã batendo naqueles vidros e refletindo no lado de dentro diversas cores e desenhos, deveria ser maravilhoso. Mesmo que a dor de cabeça me alertasse de sua existência com dolorosos latejos a cada par de segundos. Corri até meu destino, atravessando uma das avenidas e passando por charretes que seguiam apressadas; por comerciantes com carroças cheias de diversas mercadorias e por carruagens com nobres, tendo os estandartes de suas casas ondulando conforme o vento batia, se vangloriando em diversos ângulos e esfregando na cara dos pobres quem passava por ali. De fato estou em Andorra, uma cidade de poder; uma cidade moderna. Estava certo que não era Abon ou Ohj, mas já era uma cidade gigantesca e rica; perfeita. Deveriam cobrar pedágios de turistas só por andarem em suas ruas. Passei por uma das gigantescas portas de dois lados, feitas de madeira marrom escura, com desenhos encravados e, logo de entrada, vislumbrei o vestíbulo. À minha frente tinha uma grandiosa escada que parecia conduzir, quem por ela ousasse pisar, aos céus, com um tapete aveludado preto centralizado nela, deixando à mostra os cantos da madeira de tonalidade vinho. Subi pela escada me sentindo gente, meu coração ranzinza e empedrado quase começou a bater e senti uma onda de calor mais forte que o álcool que estava em meu corpo. Isso, até ouvir uma voz de repreensão me barrar no alto dela, enquanto ele descia e eu subia: — Ei, sumo! O que faz aqui? Saia! — Me enxotou com voz e gestos, na língua Guaco. Tirei da bolsa de couro transversal suja, a permissão do capitão Gulian, ao ser forçadamente conduzido para trás, à medida que a vara seca descia. — Tenho permissão do meu senhor — farfalhei na sua língua, ao deixar visível a página onde estava a permissão. Cheguei a apontar para o papel repetidas vezes, mas a criatura desprezível que se aproximava de mim, com aqueles olhos ferventes, não parecia se importar. — Eu tenho a permissão — repeti, no intuito de poder ser ouvido ou de ter uma resposta. — Você não está com a vestimenta apropriada para entrar aqui — urrou por cima dos ombros, em posição ereta e nobre. — E fede! — Fez uma expressão de nojo. — Peça para que seu dono te compre umas roupas e te dê um banho e aí sim você poderá retornar. — Agitou as mãos ao me enxotar, enquanto ainda descia a enorme escadaria, só que agora bem próximo a mim. — Agora saia! Seu verme toleirão de Asiri; criatura das profundezas. Não era um animal para que meu dono me desse banho. Eu era perfeitamente capaz de fazer isso. Mas o medo de apanhar me impedia de verbalizar esse pensamento. Retirei-me imediatamente e todas as diversidades de cores e formas não me agradavam mais. Não quando eu só podia ter uma limitada vista. Andei alguns quilômetros até chegar à taverna outra vez. Estava suado e mais fedido que de costume. Minha expressão de enfado, acima das que carregava diariamente, foi o suficiente para que Gulian me interrogasse: — Não gostou dos livros? — Não pude entrar, senhor. — Abaixei a cabeça, envergonhado. — Me desculpe. — E por que não? — Pareceu indignado pôr terem o privado de conhecimento extra. Chegou até a se arrumar no banco enquanto me encarava. Ergui a visão, encontrando os olhos dele e, deixei parte do ódio que senti por aquele homem magricelo, escapar do meu olhar. — Um homem disse que eu fedia e me vestia m*l demais para entrar. — Tentei não ser tão dramático, como ele já dissera que eu era algumas vezes. O capitão não desfez as palavras do homem, no entanto, mergulhou a mão em sua bolsa de moedas e deu algumas em minhas mãos. Ao sentir o toque gélido do metal em contato com a minha pele, senti as minhas espinhas arderem. Arregalei os olhos vendo o brilho daqueles pedaços de prata e me arrepiei do pelo dos dedos do pé à nuca. — Compra uns dois conjuntos de roupas, um sabão e uma colônia. Depois volte até a taverna para se banhar. — Senhor... Eu não acreditava que ele depositou moedas em minhas mãos, permitindo que eu escolhesse a minha própria roupa. Fazia tanto tempo que eu não escolhia as minhas próprias coisas. — Já fazia tanto tempo que eu não precisava que você descesse do Dergo para me ajudar a resolver assuntos, que não cheguei a reparar nas suas roupas. Estão, de fato, um frangalho, Telo. — E ainda me advertiu: — Você tem que me lembrar de vez em quando para te comprar roupas. Não consigo pensar em tudo sozinho. Segurei minha língua e mantive meu cérebro curioso quieto, mas me perguntei o porquê de ele estar sendo gentil comigo naquele dia. Normalmente ele não me tratava muito diferente de Vitto. Após dada a permissão em escrito para que eu comprasse o que ele me disse, saí sem mais hesitar. Tinha uma loja que vendia coisas só para sumos, que vi enquanto conhecia a cidade rumo à biblioteca. Mas é claro que todos os sumos estavam com seus donos: donas na grande maioria. Era como comprar coisas para o animalzinho de estimação, enchendo-os de mimos. Estes sumos eram gordos e sadios, com bochechas avermelhadas; diferente de mim. Não que eu passasse fome, mas não tinha tempo para engordar. Vitto ocupava qualquer “tempo livre” que eu pudesse chegar a ter. Fui inocentemente até a irônica banca alta e disse na língua de Madeter: — Bom dia, senhora — Meu bom humor estava reluzindo em forma de um sorriso, assim como a boa vontade em falar a sua língua, mesmo com o acontecido de antes. Fiquei na ponta dos pés e olhei para cima para avistá-la bem. — Gostaria de roupas elegantes para mim. — Loja errada. Saia daqui! — vociferou com antipatia ao apontar para a porta. Algumas madames pararam no mesmo instante para me olhar. Eu ficaria sem graça se não tivesse vivido o episódio de mais cedo. Abri a minha mão e a mulher vislumbrou as moedas. — Você as roubou? — Tentou tirá-las de mim, mas fui mais rápido e puxei a mão. — Não! Meu dono as me deu para que eu comprasse roupas, sabão e uma colônia. Ele precisa que eu vá à biblioteca, mas não posso entrar assim — expliquei ao me olhar. A balconista olhou o máximo que podia enxergar do meu corpo, com certa desaprovação e mau gosto. — Você espera que eu acredite que o seu dono te deu cinco cutos de prata? — ela me indagou. — É claro que não pode entrar na biblioteca assim! — uma das mulheres com um sumo ao meu lado exclamou ao mesmo tempo em que a balconista falava. Em seguida bufou, estupefata. Olhei para ela e voltei a olhar para a balconista. — Pode repetir a pergunta, por favor? — pedi. Ela respirou fundo ao revirar os olhos. — Tem alguma permissão em escrito? — Eu tenho aqui no meu livro. — Por que vocês, vira-latas, nunca vêm com um papel já solto? — a balconista me perguntou. Em seguida, ela fez caras e bocas ao mexer com a cabeça, deixando-a e tirando-a no mesmo instante em diferentes posições. Eu a estava aborrecendo. Procurei não olhar e nem responder nada. Se eu dissesse uma coisa sequer dos pensamentos que vagavam na minha mente, todas ali me bateriam. A única coisa que fiz, foi tirar da bolsa transversal de couro velha e marrom, o velho livro e abrir na página onde o capitão Gulian me permitia estar ali. — Aqui. A mulher puxou o livro da minha mão e começou a ler. Repentinamente seus olhos já grande esbugalharam. — Capitão Gulian Beho?! — sua voz aguda, quase igual à de uma suma, exclamou estridente. Engoliu seco e me devolveu o livro, desta vez com gentileza e um sorriso preocupado no rosto magro e coberto por sardas na região abaixo dos olhos. — Você é Telo, sumo do capitão Gulian Beho? — Me olhou agora de uma forma doce.
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