FAMIGERADO II

1311 Words
Minha língua travou. Ela sabia meu nome? Verifiquei rapidamente na página se ela continha essa informação, mas não. Voltei a olhar para ela, estranhado e intimidado por ser conhecido. — Sim...? — Deveria soar como resposta, mas saiu como pergunta. — Pai! — berrou a mulher. Cheguei a fechar os olhos de susto, encolher os ombros e levar o corpo para trás, como se já não estivesse assustado o suficiente, tendo aquela voz escrupulosa entrando nos meus ouvidos que respondiam em pontadas no cérebro. Olhei à volta e percebi que para o restante das pessoas dali eu ainda continuava um ninguém. Talvez um pior ninguém que antes, agora que agregaram o nome do capitão à minha figura. — O que foi! — um velho rechonchudo e sem pescoço, com um papo enorme, veio mancando de uma porta nos fundos, que era do meu lado esquerdo, enquanto olhava irritado para a balconista. — Este é Telo. — Apontou para mim, estranhamente animada, e olhei para o velho de cabelo grisalho e de pele brilhante. Em seu rosto percebi um grande ponto de interrogação. — Sumo do capitão Gulian Beho! — ela acrescentou, erguendo as sobrancelhas e mantendo um sorriso forçado. O velho desmanchou sua expressão inclemente e soltou um som semelhante a: — Ho! Ho! Telo, ãhn? — E se aproximou de mim, mancando. — Meu pai é apaixonado por sumos e você é um sumo famoso... para quem gosta da sua espécie — explicou. — C-co-como assim famoso? — indaguei. — Você é o autor de todas aventuras do capitão Gulian Beho, benzinho — ela me explicou. — Me diga, Telo! — o velho exclamou com sorriso no rosto. Não dava tempo nem de eu virar a cabeça pra um, para outro chamar minha atenção. — Os livretos das aventuras em alto mar de seu senhor são todos verídicos ou só parcialmente verdadeiros? — São cem por cento reais, senhor. Narro aventuras sem nem um pingo de imaginação. Apenas escrevo o que o capitão Gulian me obriga a ver. Seus olhos vibravam de felicidade. — Nunca duvidei — a filha sussurrou, maravilhada. — E o que faz em Andorra, criança? — o velho me indagou. Arrumei a minha posição a modo de ficar ereto. Eu era famoso, oras! — Sou adulto, senhor — garanti. — É claro que sim, é só força de expressão. — É por que você é pequeno — a intrometida explicou. Levei meus olhos sérios até ela e os parei por um tempo ali. Seu pai gargalhou em imediato, me forçando a olhar para ele outra vez. — De fato é do capitão Gulian Beho. Olhe esse olhar. — O velho parecia feliz por me ver olhando feio para sua filha. — Senhor... Tentei explicar o porquê de eu a ter olhado feio, mas ele aparentava gostar tanto de sumo que ignorou a minha falta de respeito. — O que deseja nesse humilde estabelecimento, Telo, sumo do capitão Gulian Beho? Tentei não ser sarcástico só por que ele gostava de mim, ainda assim podia ser tapeado por qualquer humano que eu ousasse ser grosso. — Roupas e calçado, senhor. — Pois bem... — disse ao me mostrar seu estoque de roupas espalhadas por toda a loja grande, apontando com os braços volumosos abertos e os arrastando para os lados. — Escolha cinco peças e mais um calçado, por conta da casa. Encolhi as sobrancelhas. — Certeza? Ele balançou a cabeça dele. O sorriso aberto e amigável parecia confirmar também. — Certeza. Nem ousei em me fazer de difícil, apenas me mostrei admirado. Nunca imaginei acabar ganhando peças de roupa de um estranho. De um humano estranho. Fui direto até elas e procurei não as tocar para não as sujar. O homem já estava sendo bondoso comigo para eu deixar suas roupas fedidas e sujas com um simples toque meu. Apontei para um terno listrado de marrom e bege, acreditando eu, que em mim ficaria até na cintura na parte da frente, enquanto dos lados e atrás iria até a batata da perna; apontei depois para dois chemises brancos; depois para uma calça de brim bege; para um calçado de couro marrom ilustrado; para uma camisa que eu poderia usar no dia a dia e outro terno — este preto com detalhes floridos, dourados e bordados em toda a sua borda —, acreditando que iria ficar um pouco abaixo da minha cintura. O velho pegou todas as peças e as embrulhou com papel pardo. Pedi e apontei, antes de pensar em ir embora, para uma camisa de botão com manga longa, branca à medida que perguntava: — Quanto custa aquela? O velho mexeu com a mão em sinal de desdém, sorrindo enquanto seus olhos se detinham em meu rosto. — É por conta da casa. — Mas com ela são seis peças de roupa, senhor — reagi e ele mexeu com os ombros ao sorrir amigável outra vez. — Quem está contando? Sem perceber formei um sorriso no rosto e assenti uma vez com a cabeça. — Muito obrigado. O velho a pôs junto com o resto e fiquei olhando para ele. Não podia simplesmente ir embora sem agradecer da forma mais especial ou falar qualquer coisa extra: que no momento não tinha nada em mente. O clima foi ficando estranho enquanto eu, com todo aquele peso e volume nos braços, encarava o velho e ele a mim. — Então... Obrigado do fundo do meu coração. — Foi o que eu melhor consegui pensar na hora. O velho que tinha um jeito amigável abriu outro sorriso. — Não por isso. A filha dele ajeitou o b***o e deixou seus s***s quase saltados para fora, amaneirando logo em seguida os cachos pendidos num penteado assustador. Saiu em seguida de trás do balcão e passou por seu pai. — Parece pesado, não vai precisar de ajuda, Telo? — Eu não ousaria em pedir, senhora — comentei. — Mas você não está pedindo, benzinho. Eu estou me oferecendo. — E pegou tudo o que estava em meus braços e os segurou desajeitadamente até que deixou tudo cair. Burra! Tentou pegá-los enquanto caía, mas, atrapalhada do jeito que era, não conseguiu, e se arrumou ereta ao arrumar outra mecha de cabelo, encaixando-a com o resto. Bufou irritada, por fim. — Papai, arrume uma carroça e peça para o mimado do seu filho nos levar até... Olhou atentamente em minha boca ao mexer sem parar com seu corpo, de um lado ao outro, com um bico em seu rosto enjoativo de mulher que consegue tudo o que quer. — Taverna — acrescentei ao perceber que esperava ouvir onde o capitão estava. — Qual delas, meu benzinho? — indagou com uma das mãos erguidas à altura da cabeça. Ponderei, olhando com os olhos pensativos para o lado. — Não sei o nome, mas sei onde fica. — Maravilhoso! — exclamou no mesmo instante em que eu falava a última palavra, num tom irritante e explosivo. Quando me abaixei para alcançar as peças no chão, a mão da mulher me interrompeu em sinal de pare e instintivamente fui para trás, encolhendo alguns músculos. O senhor juntou as sobrancelhas ao notar meu medo e formou um sorriso sem graça para nos livrar daquela cena constrangedora. — Não precisa pegar, meu benzinho — A mulher comentou. — Vejo que o capitão Gulian Beho precede o que dizem sobre ele — o velho gorducho comentou. E entendendo imediatamente sobre o que se tratava aquele comentário, tratei de explicar a situação: — Meu senhor nunca tocou um dedo em mim no intuito de me machucar ou corrigir. — E vendo que deixei uma brecha para interpretação, corrigi o que disse rapidamente: — E em intuito algum. Mas vivo num navio grande, senhor, onde homens são ignorantes e brutos. Ele assentiu com a cabeça e mais nada foi dito.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD