NÃO DEMOROU MUITO para que chegássemos à taverna. E quando aquela mulher grã-fina entrou comigo, percebi o olhar estranhado do capitão Gulian que, além de nos reparar, reparava também o amontoado de coisas que ganhei.
Depositei em suas mãos todas as cinco moedas e ele arqueou as sobrancelhas.
— Você não gastou nenhuma?
Percebi um suspiro da mulher ao ouvir a voz do capitão Gulian e ambos olhamos para ela.
— Esta é Dalarise Fafio, filha do dono de uma loja de roupa para sumos — a anunciei à medida que o garoto deixava todas as peças de roupas na mesa do capitão. — Eu...
— Prazer — Ele se adiantou. Ela inclinou seu corpo para frente e estendeu seu braço para o capitão, que se levantou para cumprimentá-la em imediato. Com cautela, mas decidido, ele pegou e beijou a mão da mulher. Fez como se provasse uma especiaria, tudo isso enquanto cortejava descaradamente seus s***s intencionalmente saltados de seu b***o.
— Prazer. Capitão Gulian Beho.
— Eu sei — disse ao estremecer a voz e dizer quase só entre os dentes, ao bafejar seu bom hálito nele. Os olhos de Dalarise estagnaram-se mais abaixo, encarando sua mão enlaçada com a do capitão. — É forte — comentou.
O capitão Gulian sorriu outra vez no canto da boca ao desvencilhar sua mão da dela, mesmo com a mulher persistindo em prendê-la.
— O pai dela me conhecia antes de ter me visto — anunciei antes de as coisas ficarem muito estranhas.
O capitão Gulian apenas ergueu as sobrancelhas.
— O dono é famoso, por isso — explicou Dalarise, com a voz trêmula, tentando sorrir e falar ao mesmo tempo.
— Imagino então que você tenha ganhado tudo isso, já que me devolveu todas as moedas — o capitão observou.
— Sim — Dalarise respondeu por mim. — E com o meu dinheiro comprei uma colônia de humano para ele e dei meus próprios sabões para que se banhasse — contou à medida que movia um ombro para frente e o outro para trás sem parar. — Ofereci a minha casa para que se limpasse, mas ele disse que teve ordens diretas do senhor para voltar, se banhar e se arrumar aqui. — Jogou os ombros para o alto. Dalarise era tão expressiva com o corpo — Então decidi trazê-lo.
— Estou em dívida com a milady — anunciou o capitão, inclinando o corpo de leve para frente em reverência. — Como posso pagá-la?
Dalarise inebriou-se com a possibilidade. Pude ver com seu quase saltinho e os olhos que cintilavam. Sem contar que ela fez um leve gesto superior, como se dissesse com o corpo que era uma mulher de dotes e que precisava de um pagamento à altura.
— Pode começar me apresentando o Dergo, capitão Gulian Beho.
Enquanto a Dalarise e o capitão Gulian se direcionavam ao Dergo, eu banhei e me arrumei no banheiro da taverna. Lá, inebriado pela minha vaidade, contemplei as roupas a cada toque e a cada instante que as sentia na minha pele.
Senti o calor do meu corpo esquentando as peças que me cobriam a modo de me habituar a elas com certa rapidez, assim como me sentia habituado aos trapos que vivia vestido.
Minutos depois voltei à biblioteca e, a certa distância a via: branca, com a sua cúpula colorida, rodeada por aquelas avenidas tão lotadas quanto antes.
Minha cabeça ainda doía, mas a felicidade de finalmente poder entrar lá era superior. Portanto, tratei logo de subir as escadas. Ao alcançar o topo dela, avistei a biblioteca com milhares de centenas de estantes em diversos andares. Vastos pátios cercavam quadras de estantes e mesas de estudos naquele pavimento. Mas no centro de toda a construção tinha uma mureta com cerca de um metro de altura e, segundo o livro que eu tinha lido sobre a biblioteca de Andorra, depois da mureta, podia se ver os andares superiores e inferiores; do chão ao teto em formato circular.
Olhei à volta e não vi aquela vara de bambu para esfregar em sua cara o meu bom cheiro e a minha boa roupa. Apesar de que quando podemos, essas pessoas nunca estão lá para exibirmos que temos o que nos faltava e que nos impedia antes de estar ali.
Me direcionei até a mureta, e percebi que o espaço vago começava tendo um grande círculo do andar mais alto, a ponto de ter apenas um corredor circular para as estantes encostadas nas paredes, cujos livros tinham placas amarelas que os restringiam, possivelmente, do uso por sumos, e acabando no andar mais baixo, com círculos menores que iam se fechando de andar em andar, até se findar no penúltimo, com cerca de um círculo de uns quatro metros quadrado.
As cores refletidas dos vidros me fazia banhar em sua magnitude de beleza, enquanto eu reparava as placas de alertas dos livros do último pavimento, desejando-os.
Após me deliciar de tudo aquilo, olhei à minha volta. Conforme eu girava entorno de meu próprio corpo, fui percebendo as estantes marrons escuras, recheadas de livros dos mais diversos temas e das mais variadas capas e molduras, com mesas de estudos grandes e com divisórias para que cada um possa ter seu espaço devidamente distribuído com uma pequena estante de dois compartimentos em cada divisória. Meu coração gritava dentro do meu peito, querendo ver tudo aquilo, por tão egoístas meus olhos serem e não quererem dividir a vista.
Já fazia tanto tempo que eu não entrava numa biblioteca daquele porte. Só em algumas pequenas entorno dos portos por onde estive.
Fui obrigado mais por Jado que por Lida a ler em meus primeiros anos de vida. Ele me ensinou a ler e a escrever em seis semanas, e Lida matemática, pelo menos o básico e um pouco do intermediário, durante três meses. Não foi tão difícil, por nossa espécie ter essa capacidade incrível de memorização e por termos facilidade de fazer associações com outras coisas pela bagagem de informações que carregamos.
Temos memória fotográfica quando criança, mas quando atingimos certa fase de nossa vida adulta, o cérebro começa a falhar. Muitos acreditam que seja pelo fato de armazenarmos muita coisa ao longo de nossas vidas; por isso, desde novos carregamos livros que são a nossa segunda memória. Tudo o que lemos, temos o costume cultural de reescrever do modo mais explicado e resumido possível, ao modo de um leigo poder dominar o assunto numa simples leitura rápida.
Jado me instigava da melhor forma a ler. Começou com temas mais leves, ainda com um ano e meio de idade. Cada vez mais eu lia e gradativamente os temas iam pesando, até que de tanto ser obrigado acabei me acostumando a guardar minhas vontades só para mim, tornando-me volátil às ordens. Jado me ensinou que não temos vontade própria e que só existimos para servir. Era revoltante ouvir isso no início, mas o tempo nos faz acostumar com todo tipo de coisa.
— Não somos exatamente escravos. Somos a outra parte do nosso senhor — ele dizia. — Somos eles. Nascemos para carregar e manter em pleno funcionamento o pedaço do cérebro deles que eles não podem.
Nunca achei que os sumos gostassem de ler tantas coisas e de armazenar tantas informações distintas. Fazemos mais por ser a única coisa que sabemos fazer muito bem, além de sermos obrigados também.
Após desfrutar dos regozijos, preocupei-me como poderia arranjar uma vaga em uma daquelas mesas. Um sumo mais alto que eu e com mais corpo também, passou por mim carregando vários livros pesados.
— Oi.
Ele me olhou e me analisou antes de falar qualquer coisa:
— Oi. — Foi seco.
— Como consigo uma vaga em uma daquelas mesas?
Ele voltou a olhar para frente e depois para mim.
— Não são mesas, são compartimentos de estudos integrados. Só seriam mesas se tirassem todas aquelas divisórias.
Eu havia me esquecido de que sumos de cidades tão grandes como Andorra eram irritantes quanto à definição das coisas. Eu mesmo era chato com definições quando mais novo. Reformulei então a pergunta, sabendo que o havia ofendido com a minha ignorância:
— Como consigo uma vaga naqueles compartimentos de estudos?
Ele apontou seu dedo magricelo e comprido até uma fila e pude ver de relance um balcão e um homem humano atrás da gigantesca fila. Respirei fundo. Nada é fácil, nada que valha a pena lutar é, contentei-me com o que o capitão Gulian vivia dizendo.
— Se eu fosse você perderia a esperança de ter uma vaga nesta semana — o sumo adiantou. — Existem outros na fila para conseguir pegar ao menos um dos livros nas mãos. Ali você faz a reserva e ele te diz que dia é para voltar. — Ergui as sobrancelhas, decepcionado. Tudo piorou quando ele acrescentou: — Eu fiz a reserva de hoje, cinco dias atrás.
De fato não importava o tamanho do meu esforço, que eu nunca conseguiria. Lamentei-me por alguns segundos, mas logo busquei o lado positivo. Ao menos eu enfrentarei a fila e terei uma cadeira num daqueles compartimentos de estudos me esperando, enquanto estarei em alto mar, indo o capitão Gulian sabe-se lá para onde.
— Obrigado. — Assenti com a cabeça.
Imediatamente o sumo virou num corredor enquanto eu fui reto, até a fila que dobrava e dobrava, com os sumos pisando sobre uma linha branca desenhada no chão.
Esperei na fila atrás de uma suma da minha altura. Demorou muito tempo até que chegasse a minha vez. Eu já estava com o livro aberto na página que tinha a permissão do capitão. O homem só estendeu sua mão, sem olhar para mim, pegou meu livro surrado e leu toda a permissão. No fim, na assinatura do capitão, onde ele escrevia seu nome bem redondinho, o sujeito olhou para mim com seus olhos arregalados.
Lá vem ele dizer também que sabe quem sou.
— Você é do capitão Gulian Beho, do Dergo?
Ergui as sobrancelhas ao assentir com a cabeça. E tem outro, senão o do Dergo? Eu já estava ficando metido com toda essa atenção.
— Por favor, me acompanhe. — Saiu de trás do balcão, pousou sua mão sobre meu ombro e começou a me conduzir. Arregalei os olhos.
Estaria ele me conduzindo até um dos inimigos do meu senhor? Entre meus devaneios, ensaiei desesperadamente o que diria ao inimigo do capitão Gulian, dizendo que meu dono não se importava comigo e que por isso não poderia me usar para chegar até ele. Chegaria até a mostrar a cicatriz do pescoço e contar sua história.
O homem chegou até as escadas — uma levava a andares inferiores e a outra levava para superiores — e usamos a que subia. Subimos vários lances até estarmos em um dos andares mais alto e, mesmo depois de pararmos de subir, ele continuou a andar por várias sessões de salas, entre corredores e mais corredores, onde havia sumos dentro delas, com uma mesa grande e encostada à parede repleta de livros. Aquele era outro tipo de compartimento de estudo. Um tipo especial de compartimento.
Distante de nós, um sumo bem vestido: com uma capa grossa e preta pendida sobre os ombros, vestindo por baixo dela uma roupa bem alinhada nova e cinza, de botas pretas, com uma cicatriz grossa, meia circular, e profunda da sobrancelha ao queixo, se aproximava. Meus olhos se prenderam aos dele, conforme meus lábios balbuciavam pensamentos. O fato de ele estar bem vestido ou ter aquela enorme cicatriz que se destacava não era o que me fazia ficar atônito, e sim a sua extrema perfeição e similaridade com a minha aparência. Era como se eu me visse, só que um pouco mais velho e com um andar cheio de atitude.
Era normal encontrar alguém muito parecido conosco, mas aquela foi a minha primeira vez. E eu nem sabia como reagir, apenas o encarava e podia ver como eu pareço aos olhos alheios.
Passando por mim, o sumo acenou com a cabeça, sem emitir um único som e seguiu pelo corredor, inferiorizando o que tinha acontecido ali. Virei a cabeça para segui-lo e o vi olhando para mim ao virar por uma esquina e sumir de vista.
Como não havia mais nada a fazer, segui o humano até que ele parou em frente a uma sala vazia de tamanho mediano para um humano, mas grande para um sumo e apontou, dizendo:
— Você ficará aqui.
Olhei para cima, tentando alcançar os olhos do sujeito.
— Que dia eu preciso voltar para ficar nessa sala, senhor?
Ele sorriu com deboche, mas não tanto.
— Você ficará nesta sala agora. Você não precisa de agendamentos. O dia que quiser, nem precisa enfrentar fila, chegue até o balcão e avise que irá para uma das salas especiais para que eu lhe entregue a chave da que estiver vazia.
Assenti com a cabeça ao levemente arregalar os olhos. Poderia me acostumar facilmente com esse favoritismo. Não é que ser sumo do capitão Gulian tinha seu lado positivo? Favorecer o sumo do capitão do Dergo é favorecer o próprio capitão. Senti uma onda de superioridade passar em minhas veias, abastecendo o tanque geralmente seco de autoestima.
Por fim, o homem entregou em minhas mãos a chave da sala e terminou:
— Bons estudos, Telo.
— O-Obrigado... senhor — respondi. Cresci os olhos mais uma vez. Em momento algum eu disse que me chamava Telo.
Ele saiu logo em seguida, me deixando sozinho, enquanto eu olhava a sala do lado de fora. Ela tinha um vidro transparente, beirando o chão até quase o teto daquele andar. O cômodo tinha talvez um metro e meio por dois de tamanho, era espaço suficiente para um sumo do meu tamanho estudar com tranquilidade, ainda mais por eu ser acostumado a viver atrás de um armário de roupa com pouco mais que um metro de espaço até a parede.
— Espere, senhor — eu disse, me virando e estendendo minha mão em sua direção.
O homem travou as pernas e, sem dar mais um passo, virou em minha direção com aquele sorriso falso e interesseiro, indagando:
— Pois não?
— Eu posso vagar por outros andares para escolher outros livros?
— Sim, você pode ir a qualquer andar, menos no último. — Apontou para cima. — Você só vai precisar mostrar a chave aos guardas enquanto vaga por aqui ou por ali. Deseja saber algo mais?
— E pela noite, como farei para ler?
Ele deu dois passos em minha direção.
— Quando você sentir falta de iluminação o suficiente para proceder na leitura, poderá ascender uma lamparina que estará pendurada na parede da sua sala de estudo. Caso acabe o óleo, venha até a mim com a lamparina e eu o abastecerei a você. — Arrumou sua posição e abriu outro sorriso falso. — Deseja saber algo mais?
Gesticulei negativamente com a cabeça.
— Não, só isso. Muito obrigado.
Em seguida eu fiquei parado, o vendo se afastar. E para evitar problemas, rondei por estantes daquele mesmo andar. Se os livros não fossem do gosto do capitão Gulian eu procuraria depois nos outros.
Eu procurei e procurei, passando a mão nas brochuras dos livros enquanto meus dedos escorregavam por elas e eu sentia suas texturas. Bati os olhos num livro de medicina. Poderia ser útil no futuro para ajudar mais o cozinheiro em procedimentos avançados de operações. Meus conhecimentos já estavam bem defasados, por isso o peguei e o carreguei até a sala. Trancado e já sentado à mesa, forcei a vista e percebi que o livro não prendia a minha atenção. Não sei se era por as coisas serem tratadas de um modo irritante, ou pelas pontadas no cérebro que eu sentia ao focar os olhos. Só sabia que aqueles bichos néscios mudaram meu cérebro ao me fazer beber daquela coisa r**m que mudou o meu comportamento. Me condenei por agora ter um cérebro similar aos deles.
Ali, eu divagava meus olhos por aquelas páginas secas e agora sem vidas, imaginando o que queriam dizer em todo seu contexto.
Indignado, saí da sala na intenção de devolver o livro no lugar de onde eu o tirei. Depois tornei a vagar pelos corredores e então avistei um livro que se destacava perante meus olhos: A teoria da magia, por Anua Uhrim. Meu coração deu um tranco e então começou a bombear o sangue com solavancos violentos, fazendo todo o nervo de meu corpo tremer. Tinha nele um selo amarelo escrito: uso restrito.
Corri até o livro, olhando para todos os lados, na esperança de não ter de brigar com outro sumo por ele. Ao chegar à sua frente, contemplei sua beleza antes de tocá-lo. Era belo e parecia brilhar por si só.
Um sinal de alerta disparou na minha cabeça, identificando aquele momento como perigoso. Ou podia ser só a minha mente querendo me livrar de grandes mudanças na minha vida sem graça. Não sei o que aconteceu depois, mas uma parte da minha cabeça agiu, só sei que era uma parte muito corajosa e agiu no ímpeto mais forte que vi.
Tratei logo de tirar aquele livro dali e o levar até minha sala, para devorá-lo como nunca devorei nenhum outro. O leria por inteiro antes de alguém tirá-lo de mim; antes de devolvê-lo ao seu andar de origem.