Capítulo 5 – O preço de falar alto

923 Words
Luna No morro, cada palavra proferida carrega um fardo, uma responsabilidade que ecoa pelos becos e vielas. Em certos momentos, essa carga se torna mais opressora que o aço frio de uma arma, capaz de ferir mais fundo e deixar cicatrizes invisíveis. E eu, na minha impulsividade, deixei que as palavras me escapassem, como pássaros assustados em meio a uma tempestade. Falei além do que devia. Desde aquele fatídico dia em que minha voz se elevou em desafio a Draco, expondo nossa discórdia perante a comunidade, a própria atmosfera do morro parece ter se alterado. Uma brisa gélida varreu a cumplicidade que antes nos envolvia, substituindo-a por um silêncio carregado, quase palpável. O respeito que eu outrora sentia nos olhares alheios se esvaiu, dando lugar a acenos furtivos e evasivos "bom dia" sussurrados. As mães, antes calorosas e acolhedoras, agora desviam o olhar, como se temessem a proximidade de alguém marcado pela ousadia. As crianças, que antes corriam em minha direção com sorrisos escancarados e braços abertos, agora apenas observam de longe, a curiosidade em seus rostos infantis refreada por um medo silencioso que paira no ar. Aquele grito imprudente não apenas expôs uma desavença, mas ergueu um muro invisível entre mim e aqueles que antes compartilhavam a mesma vida, os mesmos códigos, o mesmo chão. A ONG parece respirar um vazio palpável. As vozes que antes ecoavam pelos corredores agora são apenas sussurros distantes, memórias de um tempo mais cheio. O ar carrega um peso invisível, uma estagnação que se instala em cada canto, tornando a respiração mais difícil, os movimentos lentos. E eu permaneço aqui, ilha em meio a esse oceano de silêncio, sentindo o frio da ausência me envolver, a solidão como um eco constante dentro de mim. *** Na terça, encontrei a porta arrombada. Nada roubado. Nada quebrado. Só aberta. Só aviso. Pedro chegou e me olhou como se soubesse. Não precisou perguntar nada. — Foi por causa dele, né? Assenti, sem força pra responder. Ele suspirou. Estava tenso também, mas ainda tinha coragem nos olhos. — Luna, esses caras vivem de ego. Se você desafia, não é só ele que sente. É o sistema todo que se incomoda. — Eu não vou abaixar a cabeça. — Então se prepara pra pagar o preço. E o preço veio. *** Na quinta, um recado. Escrito com carvão, na parede lateral da ONG: "Se mete mais uma vez e não sobra nem a tinta colorida." Fiquei encarando aquilo por uns bons minutos. O sol batendo na tinta vermelha da parede como se zombasse de mim. A caligrafia era feia, mas a mensagem, clara. Meus dedos tremiam, mas não chorei. Não por medo. Por raiva. Porque ameaçar criança é covardia. E ameaçar quem cuida delas… é doença. No dia seguinte, fui trabalhar mesmo assim. Pintei por cima do recado. De amarelo forte. Não pra esquecer. Mas pra deixar claro: não me recuo fácil. Célia apareceu mais tarde com um olhar pesado. — Luna, tu precisa de proteção. Assim, do jeito que tá, vão te machucar. Eles já tão falando que tu desrespeitou “a firma”. — Eu não tenho medo de bandido. — Mas devia. Porque bandido apaixonado é pior. Olhei pra ela. — Quem falou em paixão? — Não sou cega, menina. Draco te cerca como fera cheirando o cio. E tu tá se acostumando com o cheiro. Engoli seco. Não respondi. Porque ela não tava errada. *** Na sexta, eu recebi outro aviso. Não escrito. Não dito. Um saco preto jogado na porta da ONG. Dentro: um gato morto. Cortado no meio. Meus joelhos quase cederam. Era um ritual. Um símbolo. Um aviso claro: Se você continuar, vai ser você. Passei a noite acordada. Com a luz acesa. Com medo real, pela primeira vez. Não por mim. Mas pelas crianças. Pela ONG. Pelo que a gente construiu com tão pouco. E no fundo… por ele. Porque eu sabia. Aquilo não era decisão de Draco. Era obra dos homens em volta dele. Os que se sentem ameaçados pela fraqueza do chefe quando olha pra “moça da ONG”. Eles querem me calar porque acham que ele não vai. Mas e se um dia ele decidir que também quer? Na manhã seguinte, pedi pra Pedro fechar mais cedo. Disse pras crianças voltarem pra casa logo. Algo em mim já previa. À tarde, ele apareceu. Draco. No meio da rua. Com dois homens atrás. Sem arma visível. Sem pose de patrão. Só presença. — Preciso falar contigo — disse, sem firula. Olhei pros lados. Os vizinhos espiavam por trás das cortinas. O morro inteiro assistindo de novo. — Se for ameaça, pode guardar. Já recebi o suficiente essa semana. Ele fechou a cara. — Se fosse pra te calar, tu já tava no chão, Luna. — Então o que é? Ele hesitou. E ali eu vi: alguma coisa estava quebrando dentro dele também. — É aviso. Tu mexeu no lugar errado. E agora... querem tua cabeça. Mesmo que eu não mande. — E você? Vai me proteger? Silêncio. Longo. Dolorido. — Não sei. — Ele respondeu. Sincero demais pra alguém como ele. — Mas se te matarem, o morro morre junto. Eu respirei fundo. A raiva, a dor, o medo... tudo se misturando. — Então segura tua cadeia, Draco. Porque se eu cair, vou cair gritando seu nome. Ele me olhou com fúria. Com desejo. Com algo que ainda não tinha nome. Virou as costas. E foi embora. Mas eu sabia: Isso não tinha fim. Isso tava só começando.
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