Capítulo 1 – Onde a lei não chega
Luna
Subir aquele morro era como entrar num campo de guerra sem armadura. Os becos eram estreitos, as casas espremidas umas sobre as outras, e a tensão pairava no ar como fumaça de pólvora. Ainda era cedo, o sol nem tinha alcançado o topo do céu, mas o calor já grudava na pele como se o inferno morasse ali.
Eu caminhava rápido, desviando de latas de lixo abertas, crianças descalças e olhares desconfiados. Meu tênis já estava furado nas pontas, a mochila pesava nos ombros, e o cansaço era constante, mas eu não parava. Não podia. Porque se eu não estivesse lá por eles, ninguém mais estaria.
Meu nome é Luna. Tenho 23 anos, sou formada em Serviço Social, e trabalho numa ONG dentro do Complexo do Alto da Fumaça, uma das comunidades mais perigosas do Rio. A gente atende crianças e adolescentes em situação de risco, dando reforço escolar, alimentação e, principalmente, afeto. Coisa rara por aqui.
Dizem que sou louca por me enfiar nesse lugar todos os dias, sozinha, com cara de “moça certinha da Zona Sul”, mas eu sempre respondo o mesmo: louco é quem vira as costas. Eu cresci vendo minha mãe se virar pra criar três filhos sozinha, cozinhando com água da chuva e luz de gato. Então eu sei o que é ser invisível.
— Ei, Luna! — gritou Joãozinho, correndo em minha direção com os pés sujos e um sorriso maior que o rosto.
Me abaixei pra abraçá-lo.
— Vai devagar, menino, vai cair!
— Tô treinando pra ser jogador! — ele disse, mostrando as canelas finas e os olhos cheios de brilho.
— E vai ser. Mas só se passar de ano, hein?
Ele assentiu com energia e correu morro acima.
A ONG era uma casa improvisada, pintada com cores vivas pra disfarçar o mofo. Lá dentro, tudo era doado: cadernos rabiscados, lápis sem ponta, mesas de plástico. Mas também era o único lugar onde muitas crianças se sentiam seguras. Eu, Célia (a cozinheira de mão cheia) e Pedro (o educador) éramos os únicos funcionários fixos. O resto vinha quando dava, quando podia. Porque ajudar pobre no Brasil é luxo.
Naquela manhã, organizei as apostilas enquanto esperava os meninos chegarem. Mas a movimentação lá fora estava diferente. O som do funk subiu alto demais, e os passos acelerados nas vielas eram um sinal claro: algo estava prestes a acontecer.
Foi então que Valéria entrou esbaforida.
— Luna, fica esperta. Os cara tão descendo. Diz que Draco tá vindo com os homens dele.
Meu estômago virou
.
Draco.
Mesmo sem nunca tê-lo visto, todo mundo no morro sabia quem ele era. O dono do pedaço. Frio. Calculista. Letal. Ele não gritava, não precisava. Bastava olhar, e os outros abaixavam a cabeça. Dizem que ele matou o próprio tio com treze anos, que botou fogo em um desafeto com quinze e que com vinte e seis já controlava todo o Alto da Fumaça. Ele era o rei do morro, e o morro o temia com razão.
— Eles tão vindo pra cá? — perguntei, tentando manter a calma.
— Disseram que sim. Viu Darlan? Aquela peste pegou uma pipa no lugar errado ontem. No meio do terreno deles.
Puta merda.
Darlan.
Onze anos, elétrico, arteiro, mas puro de coração. Eu tinha avisado que ele parasse com essas pipas nos terrenos proibidos. Aquilo era território da boca. Mas criança é criança, né?
Saí correndo da ONG, subindo os degraus rachados da viela, desviando de fios soltos e olhos curiosos. O coração batia forte, mas as pernas não hesitavam. Eu sabia que era perigoso, que não deveria me meter, mas a ideia de Darlan ser punido por uma brincadeira me tirava o ar.
Quando dobrei a esquina, vi a cena.
Dois homens armados arrastavam o menino pelo colarinho da camiseta. Um deles tinha tatuagens no pescoço, o outro mascava chiclete com raiva. Darlan chorava em silêncio, com o rosto sujo e os olhos arregalados.
— Larga ele! — gritei, sem pensar.
Os dois pararam. Os olhares se voltaram pra mim como facas. Mas foi o silêncio que me fez gelar. Um silêncio tenso, perigoso. E então ele apareceu.
Draco.
Caminhava no meio dos becos como se fosse dono de tudo. E era. Camiseta preta colada no corpo musculoso, corrente grossa no pescoço, braço tatuado até o punho. O rosto era bonito, mas de um jeito bruto. Mandíbula firme, olhos castanhos escuros como poço sem fundo, e uma cicatriz fina que cortava sua sobrancelha esquerda. Ele não sorria. Não precisava.
Os homens se afastaram instintivamente, como se a presença dele queimasse.
— Quem é essa? — ele perguntou, a voz grave e firme como pedra.
— É a moça da ONG — respondeu um dos capangas.
Draco se aproximou devagar, sem pressa. Seus olhos cravados em mim. Eu não me movi. Não queria mostrar medo, mesmo que cada fibra do meu corpo gritasse para correr.
— Você sempre mete o nariz onde não foi chamada?
— Eu defendo as crianças. Só isso.
— Esse moleque invadiu meu território.
— Ele tem onze anos — rebati, firme. — Foi pegar uma pipa.
Draco ficou em silêncio. Me observando. Um olhar demorado, como se estivesse me estudando. Como se decidisse ali, naquele instante, se eu viveria ou não.
— Como é seu nome?
— Luna.
— Luna — ele repetiu, devagar, provando o som da palavra.
Eu senti um arrepio estranho. Não de medo. Algo... mais profundo. Quase sujo.
— Você tem coragem — ele disse, e então virou-se para os homens. — Solta o moleque.
— Mas, chefe…
— Eu falei pra soltar.
Eles obedeceram na hora. Darlan correu pra mim e eu o abracei forte, sentindo o corpinho dele tremer.
— Pode ir pra casa, pequeno — falei, e ele disparou morro abaixo.
Draco voltou a me encarar.
— Você se importa demais. Isso é um defeito aqui.
— Eu não vim pra agradar.
Ele sorriu de lado. Um sorriso curto, perigoso.
— Ainda vou descobrir o que fazer com você, Luna da ONG.
E foi embora.
Eu fiquei parada, ofegante. A multidão ao redor começou a se dispersar, como se o feitiço tivesse acabado. Mas algo dentro de mim... não se acalmou. Aquele olhar. A forma como ele disse meu nome. Aquilo não era o fim. Era o começo.
Voltei pra ONG tentando agir normalmente, mas Célia logo percebeu.
— Tu viu ele, né?
— Vi.
— E?
— E ele me olhou como se já tivesse me escolhido.
Célia largou a colher de p*u na panela.
— Ai, Luna... cuidado com esse tipo de homem. Draco não sabe amar. Ele só sabe possuir.
Eu sorri, mas não disse nada. Por dentro, algo já se quebrava. Eu tinha olhado o perigo nos olhos... e o perigo tinha gostado de mim.