Capítulo 2 – Quem sangra no asfalto

936 Words
Luna Tem dias em que o morro respira pesado. O ar fica mais denso, o silêncio fala mais alto que qualquer grito, e até os cachorros se escondem. Aquela tarde era assim. Nublada, abafada, como se o céu soubesse que alguma coisa ia dar errado. A ONG estava mais cheia que o normal. Tinha criança demais, comida de menos e paciência no limite. Célia tentava manter a ordem no fogão, Pedro dava aula de matemática com voz cansada, e eu tentava separar uma briga entre duas meninas por causa de uma boneca velha. Vida normal no Alto da Fumaça. Até o primeiro estouro. Um barulho seco, forte, como tapa de Deus na cara da terra. A molecada congelou. Meu coração também. — Foi tiro? — Pedro perguntou, levantando o rosto com o susto nos olhos. — Foi. Corri até a porta e olhei pra fora. Nada. Só o eco do disparo perdido no concreto. Mas bastou um minuto e já começavam os sussurros, os boatos que correm mais rápido que moto: os homens do Draco desceram o morro batendo num cara do asfalto que veio cobrar dívida no lugar errado. Na hora senti o estômago embrulhar. — Pedro, segura as crianças aqui. Fecha a porta. — Minha voz saiu firme, mas por dentro eu tremia. Desci os degraus do beco com pressa, os olhos varrendo tudo. Gente recolhendo roupas do varal, mães puxando filhos pra dentro, portas batendo. Aquilo era um código silencioso: não se mete, não vê nada. Mas eu via. Na entrada da viela 14, três homens cercavam um rapaz jogado no chão. Devia ter uns vinte e poucos anos, roupa de motoboy, sangue escorrendo da testa. Um deles chutava suas costelas com ódio. Outro ria. O terceiro apontava uma pistola pro chão, mas com a mão firme demais pro meu gosto. Me aproximei até que pudessem me ver. — Ô! Já deu, né? Os três viraram pra mim. Silêncio. Só o som da respiração do rapaz, arfando como cachorro atropelado. — Vai cuidar das tuas criança, dona ONG — disse o que chutava. — Esse cara entrou aqui errado, só vai sair no caixão — completou o outro. — Ele é gente. Gente sangra. Gente sente dor — falei, firme, engolindo o medo. O que segurava a arma se aproximou. Tinha olhos pequenos, raivosos, e um sorriso sem alma. — E quem é você pra falar de dor, princesa? Antes que eu respondesse, outra voz se impôs no ar. Grave. Gelada. — Ela é minha conhecida. Draco. Ele surgiu como sempre: no meio do nada, no meio de tudo. Os homens abriram espaço na hora, como se ele fosse mais que homem. Como se fosse sentença. Os olhos dele vieram direto pra mim. — De novo você se metendo. — De novo teus homens passando do limite — rebati. Ele andou devagar até onde o rapaz caído gemia. Se agachou, analisou o rosto dele como se olhasse um bicho estranho. Depois virou-se pra mim. — Ele veio cobrar uma dívida aqui dentro. Isso é invasão. — Isso é desespero. A gente sabe o que o povo faz por cinquenta reais nesse lugar. Ele ficou em silêncio. Só os olhos me queimavam. Mas não era raiva. Era outra coisa. Curiosidade? Admiração? Eu não sabia. Só sentia aquele calor estranho subindo pela garganta. — Tira ele daqui — Draco mandou, e os homens obedeceram. O rapaz foi arrastado como saco de lixo, mas vivo. Por pouco. Eu ainda estava parada quando Draco chegou mais perto. — Você tem mania de herói. Isso aqui não é filme, Luna. — E você acha que é o vilão? Ele sorriu, mas o sorriso não era leve. Era escuro, enviesado. — Eu sou o que esse lugar precisa. Só isso. — Não. Você é o que esse lugar aprendeu a temer. Ele parou. Me olhou por inteiro. Não com desejo, mas com atenção. Como se tentasse entender de onde vinha tanta ousadia. — Sabe o que eu não entendo? — ele disse. — Você podia estar em qualquer lugar. Com sua faculdade, sua cara limpa, sua vidinha certinha. Por que insiste em ficar aqui? — Porque aqui ninguém olha por eles. Porque aqui todo mundo só sobrevive. E eu não quero ver mais criança virando número de estatística. Ele se aproximou ainda mais. A ponto de eu sentir o cheiro dele — mistura de suor, pólvora e perfume amadeirado. Bruto e intenso. Como ele. — Você é bonita demais pra morrer por causa dos outros. — E você é poderoso demais pra continuar matando quem não tem escolha. O silêncio entre a gente ficou pesado. Tinha algo ali. Algo feio, forte, quase íntimo. Ele olhou meus lábios, depois meus olhos. E por um segundo, achei que ele fosse dizer algo diferente. Mas não. Ele virou as costas. — Vai pra casa, Luna. Antes que eu mude de ideia. Fiquei parada até ele sumir na próxima viela. As pernas tremiam, mas eu não deixei cair. Voltei pra ONG, onde Célia me esperava na porta com os braços cruzados. — Tu foi lá de novo, né? Assenti. — Dessa vez foi por pouco, menina. Draco tá te marcando. Isso não é bom. — E se for tarde demais? Célia me olhou com olhos cansados, mas cheios de amor. — A gente sempre tem escolha, Luna. Até quando parece que não tem. Só que, naquela noite, deitada no colchão fino do meu quartinho, eu soube que alguma escolha já tinha sido feita. E que a próxima vez que eu cruzasse com Draco… não ia ser só confronto. Ia ser colisão.
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