Draco
Tem gente que olha pra mim e vê um criminoso. Outros me chamam de rei. Já ouvi sussurrando que sou lenda. Besteira. Eu sou só o reflexo do lugar que me criou.
Aqui, ou você manda ou obedece. Quem fica no meio, morre. E eu aprendi cedo demais a não hesitar.
Naquele dia, quando me disseram que a moça da ONG tinha se metido de novo, eu achei que era exagero. Mulher metida a salvadora sempre aparece. Elas gritam, choram, depois somem. Mas quando virei a viela e vi ela de frente pra três dos meus, peito estufado e voz firme, algo travou.
Luna.
O nome já tinha ficado na cabeça desde a outra vez. Mas agora era o olhar. A postura. A ousadia.
Ela não devia estar ali. Não com aquele vestido surrado e o queixo levantado como se nada a intimidasse. Pior: como se me desafiar fosse rotina.
— Já deu, né? — ela falou pros meus.
Não pediu, não chorou. Ordenou. Como se tivesse esse direito.
Vi o Deivinho, o menorzinho dos três, querer retrucar. Só que minha presença chegou antes das palavras dele. Eles congelaram. Eu também, por dentro.
— Ela é minha conhecida — falei, só pra cortar o clima.
Mentira. Ela não era nada minha. Mas o tom que usei deixou claro: ninguém encosta nela sem minha ordem.
Fiquei olhando. Ela não desviou os olhos. E isso, nesse lugar, é mais perigoso que arma carregada.
Depois que mandei soltarem o boy do asfalto, ela continuou me enfrentando. Como se ainda tivesse munição.
— Você tem mania de herói. Isso aqui não é filme, Luna.
Ela disparou sem pensar:
— E você acha que é o vilão?
Arqueei a sobrancelha. Resposta afiada. Gosto de gente que pensa rápido. Mas detesto quem esquece o lugar que ocupa.
— Eu sou o que esse lugar precisa. Só isso.
Ela deu uma risada curta. De escárnio. Não de quem tem medo.
— Você é o que esse lugar aprendeu a temer.
Ela estava certa. E isso me irritou.
Me aproximei. Cada passo era um aviso. Ela não recuou. Olhei bem pra ela. A pele morena marcada pelo sol, os olhos claros demais pra essa escuridão. Boca firme, expressão suada, sem maquiagem nem artifício.
Bonita demais pra morrer por bobagem.
— Você podia estar em qualquer lugar — falei. — Por que insiste em ficar aqui?
— Porque aqui todo mundo só sobrevive. E eu não quero ver mais criança virando número de estatística.
Essas palavras bateram fundo. Não por causa do conteúdo. Mas pelo jeito como ela disse. Como se acreditasse de verdade. Como se achasse que dava pra consertar esse lugar.
Não dá.
Me aproximei mais. A ponto de sentir o cheiro do sabonete barato que ela usava. Ela segurou firme o olhar. E por um segundo, o mundo ficou em silêncio. Só nós dois ali.
Senti vontade de mandar ela calar a boca.
Senti vontade de mandar ela calar a boca com a minha.
Mas não fiz nenhum dos dois.
— Vai pra casa, Luna. Antes que eu mude de ideia.
Dei as costas. Ficar mais tempo ali ia me expor. E eu não me exponho.
No dia seguinte, a ONG ficou sob observação. Disfarçada, claro. Beco acima, beco abaixo. Dois dos meus rodando o entorno. Ordens minhas. Queria saber mais dela. Não porque me importava. Mas porque não gosto de peças soltas.
Ela era uma.
Passaram-me um rádio:
"A moça tá na quadra da escola comunitária. Reunião com as mães."
Fui ver com os próprios olhos.
Do alto do terraço do Bar do Mário, dava pra ter uma vista boa. Ela estava lá embaixo, gesticulando, explicando alguma coisa. Falava firme, sem frescura. Algumas mães ouviam, outras discutiam. Ela bancava. Não abaixava.
Era como flor de lixeira. Nasce no caos e insiste em ser bonita. Incomoda.
Vi ela abraçar uma senhora chorando. Depois agachar pra falar com uma menina que devia ter uns sete anos. Pegou uma bala do bolso e deu. Sorriu.
Eu desci antes que o calor no peito ficasse visível.
Mais tarde, o tempo fechou. Literalmente. Céu preto, trovão rachando o morro ao meio.
Fui resolver um problema na parte baixa, perto da biqueira do Valdão. Tinha moleque vendendo produto falsificado com nosso selo. Isso dava merda.
Cheguei com mais dois. Encapuzado, mão no cabo da arma, padrão.
Pegamos o moleque fácil. Dezessete anos, tatuagem fresca, olho arrogante.
— Tu sabe que não pode usar nosso nome — falei, encostando ele na parede.
— Eu só queria levantar um, chefe. Tá tudo r**m lá em casa — ele disse, gaguejando.
Olhei pro chão. Caixa de bombons falsificados, algumas paradas de maconha m*l prensadas. Amador.
Ia dar só um corretivo. Mas aí, ela apareceu.
De novo.
— Para, Draco. É só um moleque tentando comer.
Virei devagar. A chuva já começava a cair, fina. Ela estava sem guarda-chuva, cabelo colado na testa, camisa molhada marcando o corpo. Mas o olhar? O mesmo. Desafiador.
— Você tem radar pra onde eu tô?
— Tenho radar pra injustiça.
— Isso aqui não é injustiça. É lei. A minha.
— Tua lei mata os mesmos que diz proteger.
— E tua bondade enterra quem não tem escolha — rebati. — Tu acha que ele vai parar porque tu pediu? Ele vai fazer de novo. E da próxima, vai morrer.
Ela andou até mim, passo a passo, sem medo. Parou a um palmo.
— Talvez ele morra. Mas não pelas minhas mãos. E isso já é alguma coisa.
Fiquei olhando. Água escorrendo do queixo dela. Os olhos brilhando de raiva. Ou era medo disfarçado. Ou era alguma coisa entre os dois.
Não aguentei.
Segurei o braço dela.
— Tu não sabe no que tá mexendo, Luna.
— Sei sim — ela respondeu, firme. — Tô mexendo no que você tenta esconder. E isso te assusta.
As palavras dela me atravessaram feito lâmina fina.
Soltei o braço. Ela não se moveu. Só ficou me olhando, peito subindo e descendo, como se fosse ela quem controlasse a cena agora.
— Ele tá livre — falei, apontando pro moleque. — Mas da próxima, é contigo que eu acerto.
Ela assentiu. Virou as costas e saiu na chuva como se fosse intocável.
Eu fiquei ali. Molhado. Calado. Furioso.
E, pela primeira vez em muito tempo... confuso.
Mais tarde, sozinho no meu quarto, encostado na janela, acendi um cigarro e fiquei pensando nela.
Não devia.
Mas fiquei.
A ousadia, a boca, os olhos.
E o pior: a verdade nas palavras. Porque ela falava e algo em mim escutava. Contra a vontade. Contra a lógica.
Aquela mulher era uma ameaça.
E eu nunca deixo ameaças soltas.