Venho de vivências pesadas

1463 Words
No hotel Susana Já são 4h da manhã e acordo com lágrimas nos olhos, fico deitado e tento de alguma forma me acalmar .. Há exatamente 3 anos aprendi a conviver com ansiedade .. Uma luta constante entre a razão e a emoção. Desde aí eu vivo meio na luz e meio nas trevas, onde o caos e a paz estão exatamente no mesmo sítio ..dentro de mim. Havia dias em que acordava no chão a chorar e pedir socorro no meu silêncio mais insurdecedor, queria que toda aquela angústia apenas parasse .. No dia seguinte eu estaria plena e teria sido só mais uma crise, uma noite .. Uma noite daquelas de terror , em que me abraçaria e me sentaria no chão agarrada às minhas pernas ou então me abraçaria e repetiria pra mim mesma “já passamos por isto antes, vamos ficar bem” como se dentro de mim houvesse duas pessoas, uma delas assombra-me e a outra é a luz quando estou perdida nas minhas crises mais sombrias. Eu pensava “só tenho que fazer isto sozinha”. Seria apenas eu e os meus demônios e quando tudo acalmasse eu apenas me perguntaria “porquê comigo?” Quando foi que me tornei a pessoa que não vive mas sobrevive a cada crise ?! ” Aí eu apercebi-me cada vez mais que não sabia muito sobre mim e que não me conhecia o suficiente para saber o quão sensível e sentimental eu de fato era. As vezes não nos conhecemos, passamos a vida a usar apenas “máscaras” para parecer ser alguém que na realidade não somos, porque queremos ser vistos como fortes e até frios e m*l sabemos que apenas estamos acabando com a gente. Acabo por me sentar na cama e respiro fundo .. Ao fechar os olhos, memórias aterrorizam-me e mais uma vez tento controlar a respiração .. e em vez de retrair os meus pensamentos, decido enfrentá-los .. As memórias de infância então levam-me de volta ao túnel do tempo e lá estou eu com 4 ou 5 anos .. Incrível ter memórias dessa época , não é ? Mas eu tenho .. E com os olhos fechados posso ver o sorriso da minha avó, e sentir o abraço mais acolhedor de todo o meu mundo .. naquele abraço eu posso despir a armadura, sem filtros..ser apenas eu. Lembro-me de coisas tão felizes e outras tão trágicas .. E aquele momento começa tudo outra vez .. mais uma vez vejo aquele carro parar em frente à porta de minha avó, e já sei que mais uma vez a minha mãe será insultada, e na próxima semana talvez ele toque a campainha de casa e acorde a minha mãe aos socos e aos pontapés .. Ouço a minha mãe gritar, implorar para que ele pare e não me leve embora .. Naquele momento eu quero ir à cozinha e pegar uma faca, mas só tenho 5 anos e não posso fazer nada, a não ser olhar aquela cena e implorar aos soluços que largue a minha mãe, pois eu não preciso de um pai que só sabe ameaçar a minha mãe. Talvez a noite seja o meu avô que chegue a casa e leve a minha avó pelos cabelos para o quarto e então feche a porta para mais uma vez eu não assistir a minha avó a ser espancada .. E mais uma vez eu não posso fazer nada . Lembro-me de uma noite em que fiquei com os meus avós após a minha mãe sair, porque nós vivíamos com eles e a minha mãe era jovem e queria sair, se divertir .. O meu pai tinha traumatizado muito a minha mãe e naquele momento ela queria apenas sair e esquecer o inferno que ela ainda passava nas mãos dele, mesmo separada separada, o meu pai arranjava sempre uma maneira de ameaçar ou manipular a minha mãe com o medo que ele próprio criado nela. Naquela noite tudo parecia normal, até ouvir os gritos do meu avô na porta da entrada de casa .. Corro até lá mas deparo-me com a minha avó a sangrar da boca e o meu avô a empurrá la pelas escadas a baixo. Naquele momento eu queria correr, queria que aquilo parasse .. Porque as mulheres da minha vida aceitavam ser segundas opções e ainda espancadas ?! A minha avó só tinha 40 anos e a minha mãe 25, não tinham que tolerar passar por tudo aquilo .. As vezes que a minha mãe estaria a trabalhar eu ficava com os meus avós e enquanto a minha avó fazia a limpeza de um escritório, eu e o meu avô esperávamos por ela no carro e nesse momento eu era sempre abusada por ele, ele sempre me dizia que era um segredo e que eu não podia contar a ninguém. Claro que eu nunca me atrevi a contar .. até que aos 7 anos não aguentei e já sabia que aquilo que ele fazia comigo era errado e nojento .. Então mesmo assustado, com medo eu contei a minha mãe, lembro-me do nojo, pavor que foi contar todo aquele inferno que eu vivia quando ficava sozinha com ele, eu sentia sempre medo de ficar com ele .. Claro que aquilo foi um escândalo, uma confusão, mas eu não podia me calar! Saímos de casa deles e fomos embora para outra casa só nossa. Há medida que fui crescendo, fui deixando de mostrar o que realmente sentia, apenas me afastava das pessoas e jamais deixaria que alguém percebesse os meus reais sentimentos. Na adolescência tornei-me uma jovem fechada. na minha família havia sempre quem me chama-se antissocial, ou bicho do mato .. Eu limitava-me sempre a ficar trancada no meu quarto, era lá que eu desabava sempre em silêncio. Naquela altura quem observa-se o meu comportamento seria fácil me rotular, e havia sempre quem o fizesse .. mas só eu sabia os traumas que carregava, como dores que eu enfrentava, só não mostrava. venho de vivências muito pesadas, de relacionamentos complicados. O meu foco estes 20 anos tenho sido eu. Preciso me perdoar por muitas coisas mas ainda mais dar perdões .. não pelos outros, mas por mim mesma .. A minha maior luta sempre foi jamais me tornar quem me feriu e não deixar que o passado n***o que carrego me influencie. Olhando para trás eu sei que sou o resultado das atitudes e dos caminhos percorridos apenas por mim, o retrovisor do passado não pode ser mudado, então limito-me aceitar, mesmo que seja doloroso, eu apenas prefiro aceitar e seguir em frente, eu não sou o meu passado muito menos sou quem me feriu. Sempre batalhei pra me tornar alguém melhor, o meu passado pode ser pesado, mas ainda assim é meu e eu só posso seguir em frente e tentar ultrapassar todos os traumas deixados por ele. Quando alguém pergunta como era o relacionamento dos meus pais juntos, respondo sempre de forma irônica ou fria. Quanto aos meus avós? Tento sempre romantizar e dizer que foram um amor trágico. E porquê um amor trágico? Porque ela jamais ousou amar outro homem, e por muito que ele tivesse mil defeitos, ela apenas olharia para os vinte que ele possuía, embora ela soubesse tudo aquilo que ele era na realidade. Ele poderia errar, mas ela sempre estaria disposta a perdoar .. por muitas brigas, por muitas mágoas que ele causasse a ela, ela ainda estaria disposta a ficar ali .. com ele e por ele .. fosse no bem ou no mau ela estaria sempre disposta a permanecer no mesmo sítio. Sobre ele? Penso que ele a amou .. da forma mais egoista, mais possessiva e doentia que um ser pode amar o outro, mas penso que talvez ainda assim fosse amor. Ele nunca se casou com ela porque antes de conhecer a minha avó , a irmã mais velha que ele considerava uma mãe o obrigou a casar com outra mulher, e naquele tempo não tinha como ele rejeitar .. anos depois ele conheceu a minha avó. O meu avô jamais negou a alguém que ela era a mulher da vida dele. ele até tentou se separar mas a esposa não aceitou o divórcio, o que resultou em ele ter duas famílias .. Duas famílias que sabiam a existência uma da outra. O amor da minha avó por ele levou-a cedo, e o amor dele por ela também acabou por o levar. Então para mim sempre será um amor trágico. Se houver outro tempo e espaço, não quero rever ninguém desta vida, quero apenas rever o sorriso dela mais uma vez e ter a certeza que noutro tempo e espaço ela tenha um começo bonito e um final feliz.
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