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1471 Words
Cheguei na casa da Navÿlla já com o coração meio acelerado, não sei se era saudade dela ou o clima estranho que o morro tava respirando desde cedo. Ela abriu a porta com aquele sorriso que sempre desarma, cabelo solto, camiseta larga, cheirando a sabonete simples de mercado — mas em mim batia melhor que perfume caro. Entrei e ela nem esperou muito pra colar no meu peito, mãos frias na minha nuca, beijo quente na boca, como se a noite tivesse sido feita só pra nós dois. A sala tava com a luz baixa, televisão passando qualquer coisa que a gente nem prestou atenção. Ela sentou no meu colo e eu envolvi a cintura com força, sentindo a tranquilidade que eu só encontrava ali. Navÿlla fazia o tempo desacelerar. Com ela eu esquecia dívida, guerra, passado. Parecia que Deus dava trégua cinco minutos só pra eu respirar. — Tava com saudade — ela sussurrou, olhando pra mim como se quisesse morar dentro dos meus olhos. Eu ri baixo, encostando minha testa na dela. — Também tava. De verdade. O beijo veio de novo, mais calmo, mais certo, como se a gente tivesse todo o tempo do mundo. A respiração dela misturava na minha, o corpo encaixava fácil, e por alguns minutos eu esqueci o resto. O morro podia tá pegando fogo — mas ali, com ela, parecia paz. Até o celular vibrar. EQUIPE CAOS 🚩 46 mensagens não lidas. "— Caveirão no pé da favela. — Papo de opera." Só li isso e entendi tudo. A alma mudou de temperatura na hora. Eu congelei com o aparelho na mão. Parecia que o beijo ainda tava na boca, mas a realidade já puxava pelo braço. Navÿlla percebeu. Ela sempre percebe. — Thayan… — ela murmurou, um medo pequeno no fundo dos olhos. — Não vai. Eu respirei fundo, cabeça já longe, corpo ainda ali. — Navÿlla… eu não posso, preciso realmente ir. Ela engoliu seco, como quem tenta segurar o coração na garganta. — Então volta — disse, firme, mesmo tremendo por dentro. Prometer seria mentira — mas eu quis voltar. E isso já doeu o suficiente. Saí pela porta com a pistola presa na cintura, sentindo o cabo sob a camisa. O vento da madrugada bateu no rosto e o morro parecia respirando mais rápido que eu. Ouvi rádio ao longe, estalo, correria, barulho de porta fechando com pressa. Subi pelos becos com a mente fria e o sangue quente. Cada laje, cada escada, cada viela estreita tinha cheiro de guerra iminente. Lembrei do meu irmão. O rosto dele no chão. Olho aberto, sem brilho. A boca meio torta, como se ainda fosse falar alguma coisa. Enterrar irmão não sai da gente — vira tatuagem na alma. Eu subi mais rápido. No alto do beco da Grota, dei de cara com eles: Mais Novo — pequeno, rápido, sorriso malandro, jeito de quem aprendeu a sobreviver antes de aprender a falar direito. Paulista — olhar calculado, respiração estável, a calma de quem atira pensando três segundos à frente. — Olha ele aí… — Mais Novo soltou com deboche leve. — Achei que tava dormindo. — Papo de operação — respondi firme, encarando ele de volta. — A última coisa que eu estaria era dormindo, bandido. Paulista riu fraco, aquele riso de confirmação. — Aí sim, Revoltado. É isso que eu quero ver. Ele me entregou um rádio pequeno, limpo, o suficiente pra me incluir. Não perguntei nada — a gente só entende. A operação estourou segundos depois. Não teve aviso real, só instinto — o morro muda de cheiro quando a tropa entra. O ar fica mais denso, as luzes piscam, as pessoas desaparecem das janelas. Em seguida, o primeiro confronto abriu a madrugada. O som ecoou pelo concreto, mas eu não narro estampido — som a gente sente no osso, não escreve. Nós três avançamos. Paulista pela direita, Mais Novo pela lateral, eu no centro — sem medo, sem tremor. Era como se o morro me engolisse e eu virasse ele próprio. Quando vimos dois PM descendo armados, não teve conversa. Eles viram a gente, miraram, e ali eu podia ser corpo no chão igual meu irmão. Mas quem caiu foi ele. Meu tiro foi seco, direto, final. Primeiro homem que eu baleei. Não celebrou dentro de mim — só silenciou. Como fechar porta lentamente. Mais Novo olhou de lado, impressionado. — Revoltado botou moral. — falou quase em riso. Paulista completou curto: — Agora tu tá conosco. E seguimos. As vielas estreitavam, descíamos de um beco pra outro como sombra. Cada movimento era instintivo, visceral. A adrenalina deixava audição fina — dava pra ouvir voz de PM no rádio deles, passos pesados nas escadas, o arrastar de sola grossa tentando não fazer barulho. A gente se posicionava melhor. Paulista organizava com gestos, sem gastar palavra. Mais Novo dava rota. Eu era o impulso. — Direita limpa. — alguém sussurrou no rádio. — Atenção na Nova Brasília. — outra voz cortou. — Tem viatura esperando brecha. — Entendido. — Paulista respondeu por nós. Descemos correndo por trás de uma oficina abandonada. O ferro enferrujado raspou meu braço, deixou ardência fina. Não parei. O morro inteiro parecia pulsar. Cada casa tinha alguém assistindo pela fresta. Criança acordada sem choro — porque já aprendeu a engolir medo. Velha fazendo sinal da cruz. Cachorro inquieto. O morro sabe quando vai sangrar. Quando passamos por trás do bar da dona Alice, ouvi movimento. Não precisei pensar: encostei na parede, arma levantada, pulmão preso. Dois PM entraram na viela estreita. A rua era uma garganta — quem tava de frente engolia ou era engolido. Paulista sinalizou três. Dois. Um. Eu e Mais Novo saímos primeiro, Paulista deu cobertura. Não teve segundo round. Mais um PM no chão. O outro correu. Pegou beco, desceu ladeira solto. Mas não ia longe — não com a gente atrás. Corremos. Chão molhado, chinelo voando de morador fugindo pra dentro de casa. Coração socando costela. Pulamos caixa d’água, cortamos por dentro de quintal alheio. Pegamos ele antes da saída da Limeira. Mais Novo apontou. Paulista encostou frio. Eu finalizei. E o rádio soltou: — Equipe Caos avançando. — — Resistência firme. — — Seguir para o alto da Skol. Eu olhei pro céu. Nem três da manhã direito. E a favela ainda tinha noite pra gastar com morte. Mais Novo esbarrou no meu ombro: — Cê percebeu, né? — disse com sorriso torto. — Tua mão não treme. — Porque quem treme morre. — respondi. Paulista completou sem emoção: — Revoltado é linha de frente. Agora é oficial. E ali, pela primeira vez desde o enterro, eu senti que não era só dor. Era propósito. A gente subiu de novo, agora pela parte alta. Encontramos mais três da equipe posicionados atrás da escola municipal. PM já tentava avançar pela principal, mas a gente segurou pela lateral. O fogo comia sem descanso — e não descrevo som, descrevo sensação: O corpo quente. O ar pesado. O dedo firme. O sangue exigindo resposta. Perdi a conta de quantas vezes o ferrolho recuou na minha mão. No meio do caos, pensei em Navÿlla. Na fala dela: Volta. No medo escondido. No sorriso que me salva. Pensei na minha mãe, dona Ana, que dormia achando que eu tava onde não tô. Pensei no irmão caído, na última vez que ele riu alto comigo. Pensei que se eu caísse ali, ninguém ia rir daquela forma por mim. Quando percebi, já tinha base jurada mais três vezes. A rua virou memória rápida: rosto, mira, queda. A cada disparo meu corpo aprendia viver no inferno. E eu avançava. Paulista me olhou com respeito novo. Mais Novo já me chamava sem peso na voz. Eu já era deles. Não sei quanto tempo passou até o morro começar a esvaziar de farda. Talvez minutos, talvez horas. A madrugada foi longa — e eu virei outra pessoa dentro dela. Tava vivo. Tava sujo. Tava no jogo. Quando o último rádio avisou retirada, eu respirei fundo, sentindo a alma pesada e estranhamente leve tentando coexistir dentro do mesmo peito. Paulista bateu minha mão como quem crava pacto silencioso. Mais Novo deu risada, feliz como quem achou parceiro à altura. — Revoltado — ele disse — nasce cria hoje. E eu só pensei em uma coisa: Voltar. Pra Navÿlla. Pra ela ver que eu ainda tinha pulso, pele, coração. Pra ela ver que eu cumpri — mesmo que por pouco. Desci o morro com a arma ainda quente na cintura, o corpo doído, mas a decisão firme: essa noite não ia terminar comigo desaparecendo. — Eu volto. — murmurei pra mim mesmo, com um gosto novo na boca. — Nem que seja sangrando. Porque depois da primeira morte, ninguém volta igual. Mas eu ia voltar. Nem Deus me tirava esse caminho.
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