Desci o beco quase sem sentir o peso do corpo. A adrenalina ainda fervia na minha veia, queimando num ritmo que não dava trégua. Eu tinha acabado de viver a noite mais insana da minha vida — e isso já dizia muito, vindo de mim. A operação tinha varrido a Penha com tudo, PM entrando rasgando, e eu… eu tinha feito o que jurei que faria: não recuei. Pela primeira vez, botei um PM no chão. Não sei se morreu, não sei se só caiu. Só sei que fui eu. Meu dedo. Minha mira. Meu ódio.
E agora, com a pistola escondida na cintura e a roupa cheirando a pólvora, tudo que eu conseguia pensar era: Navÿlla.
O morro tava silencioso daquele jeito tenso, pesado, que só quem vive em comunidade conhece. Não era paz — era o intervalo entre duas guerras. O tipo de silêncio que até os cachorros respeitam. Tinha gente recolhendo porta, gente cochichando nas janelas, criança sendo puxada pra dentro, e eu passando no meio como se tivesse voltando de uma caminhada normal. Mas não tinha normal naquilo. Nada.
A porta da casa da dona Marta já tava fechada, só com aquela fresta de luz vazando por debaixo. Respirei fundo, passei a mão no rosto pra tirar o sangue seco no canto da boca — não era meu, acho — e bati. Duas vezes. De leve.
A porta abriu quase que no mesmo segundo.
Navÿlla puxou o ar como quem toma um susto que prende a alma e depois me abraçou com força, quase me quebrando no meio.
— Meu Deus, Thayan… — a voz dela tremia no meu pescoço. — Eu achei que tu não ia voltar… achei que…
Eu segurei a cabeça dela entre minhas mãos.
— Tô aqui, amor. Fica calma.
Ela se afastou um pouco, olhando pra mim de cima a baixo.
— Tu tá fedendo a tiro, sangue, fumaça… — o olhar dela ficou acusador, desesperado, machucado. — O que que tu fez?
Engoli seco. Não respondi. Só entrei, porque ela abriu espaço. Porque, se eu respondesse, talvez eu falasse demais. Talvez eu desabasse ali mesmo.
A sala tava do mesmo jeito que eu tinha deixado: luz fraca, sofá velho, cheiro de café requentado. Mas agora parecia outra casa. Parecia que tinha encolhido.
— Senta — ela mandou, quase sem voz.
Eu sentei. Ela veio com um pano molhado, ajoelhou na minha frente e começou a limpar meu braço. A água ficou rosada.
— É teu?
— Não.
— Sério?
Assenti.
— Então de quem?
Dessa vez, eu desviei o olhar. Não tinha como mentir, mas também não tinha como dizer.
O suspiro dela foi como uma lâmina.
— Thayan… fala comigo.
Demorei alguns segundos, mas abri a boca.
— Aconteceu. O que eu te falei que ia acabar acontecendo um dia.
Ela fechou os olhos devagar. Quando abriu, tinha lágrima segurada ali, e ela não deixou escorrer.
— Tu atirou em alguém.
— É.
— PM?
Assenti de novo.
Silêncio.
Silêncio pesado, quase doído.
Ela largou o pano no chão.
— Tu tá ciente do que fez? Tu tá ciente do tamanho da m***a que tu comprou? Eles não vão deixar isso barato, Thayan. Tu acha que a PM vai engolir calado?
— Eles já tiraram alguém de mim — respondi rápido. — Agora, se tentar vir de novo, não vou ficar olhando quieto.
Ela ficou me encarando por longos segundos, como se estivesse tentando enxergar dentro da minha cabeça.
— Isso não vai trazer teu irmão de volta.
Respirei fundo. Bem fundo.
— Sei. Mas também não vou deixar passar como se nada tivesse acontecido.
Navÿlla se levantou, andou de um lado pro outro, mãos na cabeça, completamente desnorteada.
— Eu te amo, Thayan, mas… — Ela parou. Engoliu seco. — Eu tô com medo. De verdade. Tu vai se m***r nesse tipo de vida. Tu vai morrer por vingança. Tu vai virar estatística, virar número, virar manchete…
— Eu voltei, amor — falei baixo. — Eu prometi pra tu que ia voltar e voltei.
Ela olhou pra mim de novo, sem piscar.
— E se da próxima vez tu não voltar?
Antes que eu pudesse responder, a porta do quarto abriu.
Dona Marta apareceu.
Olhar duro. Boca torcida. Braço cruzado.
— Eu sabia — ela disse, apontando pra mim com o queixo. — Sabia que isso ia acontecer um dia. Eu senti. Bandido sempre volta pra casa fedendo a crime.
— Mãe… — Navÿlla tentou.
Mas dona Marta não deixou.
— Tu acha que eu sou i****a? A gente mora na Penha, menina. Todo mundo sabe quando tem operação. E eu ouvi os tiro daqui mesmo. Agora olha pra cara do teu homem. Foi brincar de herói no meio da rua, né?
— Dona Marta — falei, tentando manter o respeito — não é assim…
— Cala a boca. — A voz dela atravessou o ar. — Tu entra e sai daqui como se essa casa fosse motel. E agora volta cheio de sangue? Sangue de quem, Thayan? Hein? Quem que tu matou lá fora?
— Mãe, para! — Navÿlla se colocou na frente dela.
— Não! Não vou parar! — Ela olhou pra filha com dor e raiva misturados. — Tu quer morrer igual essas mulher que chora no Fantástico falando “ah, eu sabia que ele era envolvidim, mas achava que ia mudar”? Eu te criei pra isso não. Eu não vou deixar tu se enterrar junto com vagabundo.
— Pô, dona Marta — falei, sentindo o sangue esquentar — não fala assim comigo.
— TÔ FALANDO FOI POUCO!
A voz dela ecoou pela casa inteira.
Eu fiquei quieto. Por respeito. Por consideração à Navÿlla. Porque, se eu respondesse, ia virar briga f**a — e eu não queria que minha mina escolhesse lado entre eu e a mãe dela.
— Eu vou embora — falei, levantando.
Navÿlla segurou meu pulso.
— Não faz isso.
— Tá tarde, amor. Amanhã a gente conversa.
Ela apertou minha mão, desesperada.
— Tu jura que volta?
— Juro.
Beijei a testa dela, dei um último olhar pra dona Marta — que continuou me encarando como se eu fosse um incêndio prestes a engolir a casa — e saí.
Fui andando devagar, porque não dava pra correr com a cabeça daquele jeito. O morro tava mais quieto que antes. A fumaça ainda tava no ar. As conversas sussurradas também.
Quando virei na minha rua, vi algo que fez meu peito travar.
Dona Ana tava sentada na porta de casa.
Esperando.
Com a luz acesa atrás.
Com aquele olhar que só mãe tem.
Quando ela me viu, levantou devagar, como se tivesse juntando coragem.
— Onde tu tava, Thayan?
Parei.
O silêncio pesou.
Ela deu mais um passo.
— Eu ouvi tudo. A vizinhança inteira ouviu. O morro inteiro tá falando. Tu tava no meio do tiroteio, não tava?
— Mãe…
— Não me chama de mãe desse jeito. — A voz dela saiu falhada, mas firme. — Eu te conheço. Conheço tua respiração, teu jeito de andar, o jeito que tu olha pro chão quando tá mentindo. E tu não vai mentir pra mim hoje.
Engoli em seco. O peito parecia ter virado pedra.
— Tava. — Minha voz saiu baixa. — Eu tava.
Os olhos dela piscaram rápido, como se a verdade tivesse batido forte demais.
— Então é isso mesmo… — Ela levou a mão à boca. — Tu tá no crime.
Fiquei quieto.
Ela repetiu, mais alto:
— Tu tá no crime, Thayan?
— Tô no que eu preciso tá — respondi, sem rodeio.
O barulho que saiu da garganta dela foi metade pranto, metade raiva.
— Eu criei você pra isso?
— Mãe, não começa…
— Eu criei você SOZINHA! Pra ver tu se misturar com bandido? Pra ver tu virar alvo da polícia? Pra ver tu descer num saco preto, igual desceram o teu irmão?
Aquela última frase me acertou como tiro.
Como se tivesse perfurado meu peito sem dó.
— Não fala dele, mãe.
— Vou falar sim! — ela gritou, apontando o dedo na minha cara, chorando sem se importar mais. — O que fizeram com ele já me destruiu uma vez. E agora tu vai seguir o mesmo caminho? Vai se jogar pra morte? Vai se m***r pra provar o quê? Pra quem?
— Eu não tô me matando. — Respirei fundo. — Tô vivendo do jeito que dá. Do jeito que sobrou.
— Isso não é vida!
— É o que tem pra mim.
A dor no rosto dela foi tão grande que eu tive que desviar o olhar.
— Eu tive dois filhos… — ela disse, a voz quebrando. — Dois. E agora só tenho um. Mas se tu continuar nessa vida, Thayan… eu vou perder o segundo também.
Fechei os olhos.
— Eu não vou morrer agora, mãe.
— Agora. — Ela riu, sem humor. — Sempre é “agora”. Até o dia que não volta.
Fiquei parado ali por longos segundos, sentindo a culpa apertar o pescoço como uma corda.
— Eu prometo que amanhã a gente conversa melhor — falei, abrindo a porta.
— Eu não quero promessa — ela chorou. — Quero meu filho.
Entrei.
Fechei a porta devagar.
E, quando o silêncio tomou conta da sala, eu finalmente senti o peso de tudo que tinha acontecido naquela noite.
Não só o tiro que eu dei.
Não só a operação.
Mas o que aquilo tava começando a fazer comigo.
Com a Navÿlla.
Com minha mãe.
Com o morro.
Com tudo.
E eu percebi — pela primeira vez — que a guerra não tava só lá fora.
Tava aqui dentro também.
E eu não fazia ideia de como sobreviver às duas.