Papo reto? Tem hora que eu acho que tô me acostumando a mentir. E isso é o que mais me apavora. Não é só medo da minha mãe descobrir. É medo de eu parar de sentir culpa. Medo de virar aquele tipo de pessoa que olha pra própria mãe, sorri, abraça… e continua indo pro corre como se fosse só mais um rolê do dia.
Porque chegar pra ela e falar a verdade — “pô, coroa, me revoltei, tô no tráfico” — é impossível. Ela não merece isso. Ela não aguenta isso. Ela, que já perdeu um filho, não merece perder o último pro lado mais sujo do inferno.
Mas eu tô indo. Tô me entregando. E eu sinto. O pior é sentir. Sentir a mudança. O escuro.
Tomamos café na paz, mas enquanto eu mastigava o pão, parecia que mastigava concreto. Minha mãe achava que eu tava quieto porque tava com sono. Não. Eu tava quieto porque tem coisa dentro de mim que se eu abrir a boca… escapa.
Navÿlla saiu pro mercado, eu fiquei vendo jornal como quem tenta enganar a cabeça com “vida normal”. “Vida normal”… palavra que já não serve pra mim.
Pouco antes do almoço, ela voltou com as compras. Minha mãe ficou toda feliz, abraçando, agradecendo, elogiando. A cena era bonita. Linda até. Mas dentro de mim? Um buraco. Um buraco se abrindo, fome de alguma coisa que eu nem nome sei dar.
Ficamos de love no sofá. O filme passava, mas eu não tava ali. Minha cabeça tava no passado, no sangue, nos tiros, no meu irmão caído no chão. Tava em tudo que eu finjo que esqueci, mas que lembra de mim todo dia.
A internet caía e voltava. Desde a operação, gato net não presta mais. O Estado entra, destrói, vai embora, leva vida, deixa silêncio. Sobe morro, quebra casa, some criança, aparece corpo. Depois disso? Sinal fraco, luz piscando, medo alto.
Umas 17h, Navÿlla meteu o pé porque minha sogra — o cão — começou com crise. Eu respirei fundo, mas o ar não entrava direito. O peso no peito já virou parte do meu corpo.
Dormi até 18h. Acordei como quem desperta de uma cova. Banho, roupa, pistola na cintura — cada peça encaixando como se fosse natural. E isso é o mais macabro: tá ficando natural.
Saí no sapatinho. Minha mãe nem percebeu. Mas eu senti o cheiro dela na sala, cheiro de café e preocupação, mesmo dormindo. Parece que mãe sente a treva chegando, mesmo de olhos fechados.
Caminhei até o ponto. O menor me passou o radinho e vazou. O frio da noite tava cortando, mas dentro de mim tava pior — uma frieza que não tem nada a ver com temperatura.
No plantão, o tempo vira uma massa escura. A gente fica ali vendo o nada e o tudo ao mesmo tempo. Passando visão. Vigiando. Esperando. É tipo abrir a porta pro vazio e pedir pra ele entrar.
Às nove, o menor trouxe quentinha, coca, água. Comi como quem não sente sabor. Porque a verdade é que faz tempo que nada tem gosto.
Mais tarde, troquei de roupa em casa, chequei minha mãe — dormindo, indefesa, parecendo menor do que realmente é — e voltei. Peguei dois biscoitos só pra enganar o estômago. Mas o que doía não era fome de comida. Era outra fome. Uma fome de justiça torta, vingança, sangue… uma fome que eu não tinha antes, mas que agora é a única que me acompanha sempre.
A madrugada caiu pesada. Oração dos amigos ecoou. É uma das poucas coisas que ainda me lembra que existe algo acima da gente. Mas mesmo assim, no fundo, eu sinto que Deus olha pra comunidade de longe. De muito longe. Como se Ele não quisesse se sujar chegando perto.
Segurança redobrada. Muita calma. Calma demais. E calma demais é sempre prenúncio de desgraça.
Eu pensava na operação. Pensava no meu irmão. No rosto dele. No sangue quente virando frio. Nos olhos dele olhando pro nada, enquanto o mundo continuava. Meu mundo acabou naquele dia, mas o resto seguiu como se nada tivesse acontecido. E isso me destruiu. E é aí que eu percebo: eu não voltei desse dia. Eu fiquei preso lá. Parado no mesmo lugar onde enterrei meu irmão, e tudo que veio depois não é vida… é só consequência.
Quando dei por mim, já era 6h30. O menor pra me render chegou. Trocamos uma ideia. A dele tava pesada também.
— Vários crias bom se foram, inclusive, meu irmão — falei, com a voz seca, sem vida.
— É… esse dia bagulho foi doido. Usaram até drone… Mas na troia é mole pô, quero ver eles virem de peito aberto pra bater de frente — ele respondeu, rindo sem humor.
— Duvido pô, vem nada. Quem tem cu tem medo. Mas tem nada não, se eles voltarem vão entrar na bala. Tamo cheio de ódio, preparado e capacitado pra m***r polícia. Quero ver eles botar a cara. Bota nada! — eu disse, sentindo a raiva pulsar como sangue novo.
— Mas e tu, menor? — ele me olhou, sincero. — Tu entrou pro crime do nada… Teu irmão dizia que tu era o orgulho dele, da tua família, qual foi? Entrou nessa por ódio?
— Ódio… revolta… sede de vingança… e necessidade. Desde que meu irmão morreu que o bagulho não ficou legal. Minha mãe entrou em depressão, parou de trabalhar, eu também fiquei sem meus b***s… então acabamos ficando sem nada em casa, porque por bem ou por m*l meu irmão também colocava a parte dele pra ajudar. Aí ela sem trabalhar, meu irmão morto e eu sem meus b***s… complicou. Chegou uma fase que só tinha miojo.
— Entendi legal. É f**a, menor. Às vezes a gente recorre a isso por não ter outra saída. É o crime ou a fome, fala tu, tô errado?
— Tá nada — respondi, olhando ao redor. Perguntei a uma senhora que horas eram e ela disse que já era dez pras 07h.
— Vai lá, menor, mete o pé. Eu assumo daqui. Tô ligado que tu tá morto, dá pra ver na tua cara o cansaço pô. Vai descansar, ver tua coroa, tomar um café.
— Valeu, bandido, é nós. Atividade na reta e qualquer parada já sabe, né?
— Bala neles — ele disse, batendo a mão na minha. Eu bati de volta e meti o pé.
Assim que cheguei em casa, tomei um susto com a minha mãe na porta, tomando café e olhando a rua. O rosto dela era pura preocupação.
— Estava aonde, seu Thayan? — ela perguntou.
— Eu? — ela me olhou torto. — Vendo emprego né, mãe… onde mais que eu estaria?
— Vendo emprego às sete da manhã?
— Primeiro eu fui lá na associação de moradores ver uma parada — menti na cara dura, sustentando o olhar.
— Tá mentindo pra mim por quê, Thayan? — ela perguntou séria, sem elevar a voz.
— Que mentindo, mãe, tá maluca? Eu fui lá na associação sim, pô. Tô vendo o bagulho pra senhora, de psicólogo. Eles têm um projeto social lá e a senhora tá precisando de ajuda, pô — contei a verdade, só invertendo as datas.
— Hum… tá bom, Thayan… vigia, hein…
— Tô vigiando, meu bem — abracei ela e beijei sua bochecha. — Te amo, coroa.
— Também te amo, meu filho. Agora entra e vai tomar café. Bora!
Entrei. A porta ainda nem tinha fechado direito e já senti o peso voltando pro meu ombro, como se o ar da rua tivesse grudado em mim. Minha mãe falava alguma coisa na cozinha, mas minha cabeça tava longe, muito longe. Eu sentia o cheiro do café, mas não sentia gosto de nada. Nem do cheiro. Nem de mim.
Sentei na mesa e encarei o prato. Era pão, manteiga e café. Era simples. Era coisa de mãe. Era amor puro. E mesmo assim… parecia que eu tava traindo ela só de respirar. Porque ela fazia tudo isso acreditando na minha palavra. E eu? Eu tava jogando minha palavra fora igual lixo.
Enquanto ela falava sobre coisas pequenas — mercado, contas, dor nas costas — eu sentia meu peito apertar, não de emoção, mas de um tipo de medo que não tem nome. Medo de que um dia ela olhe pra mim e não reconheça o filho dela. Medo de que ela descubra quem eu tô virando quando ela fecha os olhos.
Terminei o café, mas não terminei a culpa. Essa nunca acaba.
Fui pro quarto devagar, como quem carrega corrente no pé. Tirei a camisa, encostei a cabeça na parede e respirei fundo. A respiração veio pesada, como se o ar tivesse que atravessar concreto antes de entrar no meu pulmão. Fechei os olhos e de novo vi meu irmão no chão. De novo o sangue quente. De novo o grito preso. De novo o silêncio depois.
E aí bateu a real mais uma vez: eu não sou mais o moleque que ele dizia ter orgulho. Eu virei exatamente aquilo que ele tentou me afastar. O tipo de pessoa que respira ódio e bebe revolta. O tipo de pessoa que, sem perceber, se acostuma com o escuro.
Passei a mão no rosto, senti o suor frio. Senti o peso da pistola ainda marcada na cintura. Senti o gosto metálico do medo e da raiva misturados.
E percebi, com um nó na garganta que não descia:
Eu já não me sentia filho de ninguém. Não me sentia protegido por nada. Não me sentia vivo de verdade. Eu era só uma sombra andando por aí, sobrevivendo por instinto, respirando por necessidade… e matando por consequência.
E o pior de tudo?
O pior, o mais c***l, o mais sujo?
Eu tava começando a me acostumar.