013

1978 Words
Saí do beco com a sensação de que o chão inteiro respirava pesado. Era como se a comunidade tivesse acordado antes de todo mundo — mais cedo, mais alerta, mais desconfiada. Cada laje parecia ter ouvido meu nome antes de eu mesmo acordar. Cada porta fechada parecia esconder alguém cochichando sobre mim. O morro fala rápido… mas naquele dia, falava voando. E eu era o assunto. O vento batia gelado, carregando poeira e resto de gás que ainda grudava nos becos desde a operação da madrugada. Quem mora na favela sabe: quando o morro acorda quieto demais, é porque a rua tá falando alto. E a rua tava gritando sem fazer barulho. Cheguei num ponto alto da viela e vi alguns moradores amontoados perto da grade de contenção, olhando lá pra baixo, pra entrada da comunidade. A tensão era tão grande que parecia dar pra ver no ar — quase como fumaça. Foi aí que ouvi um rádio estalar. Claro. Perto. — Dois caveirão subindo a Meu peito congelou. m*l tinha dado três passos quando: — THAYAN! Virei rápido. Era o Mais Novo descendo a viela apressado, quase tropeçando no chinelo. Nada de sorrisinho debochado. Era seriedade pura. Atrás dele vinha o Paulista, rádio na mão, postura reta, olhar calculado. — c*****o, moleque, te procurei na tua casa! — Mais Novo reclamou, ofegante. — Tu some na hora errada, p***a! — O que tá acontecendo? — perguntei, mas já sabia a resposta. Paulista não enrolou: — A PM subiu com lista na mão. E teu nome tá no topo. Engoli seco. — Confirmado? — Confirmadíssimo — ele ergueu o rádio. — Eles tão rodando atrás do “rapaz do casaco cinza”. Quem foi o gênio que rodou ontem de casaco cinza? Fiquei quieto. Mais Novo me puxou pelo braço: — Vem. Te tirar da principal é prioridade. Se a PM te pega ali, acabou. Não é operação de prisão, Revoltado. É operação de apagar. A gente subiu por uma viela estreita, desviando das ruas abertas. Quem conhece o morro sabe: rua larga é convite pra polícia avançar. Viela é escudo. O clima tava tão denso que dava pra ouvir o coração das casas: portas fechando rápido, mães puxando crianças, cachorros latindo, televisões sendo desligadas. O medo correndo mais rápido que as pessoas. Paulista falou sem olhar pra mim: — A facção tá juntando os homens. Mas até o chefe bater o martelo, tua vida tá por tua conta. E por nossa também. O morro precisa de você vivo… por enquanto. Mais Novo riu de canto: — Olha o status do garoto… — Não é status — Paulista corrigiu. — É risco. Ele virou peça grande sem querer. Peça grande vira alvo fácil. A frase bateu forte no estômago. — Qual é o plano? — perguntei. — Vem — Mais Novo apontou. — Vamos te botar no miolo da favela. A PM evita entrar ali no início. E se entrar… Paulista completou: — …não entra sozinha. E se entrar sozinha, não sai. Descemos por um corredor estreito, passando por roupas estendidas, cheiro de feijão começando a ferver, barulho de ventilador velho. O morro parecia normal por alguns segundos — mas o medo tava ali escondido. Na janela que se fechava rápido. No olhar atravessado das senhoras. No menino que parou de empinar pipa quando me viu. O rádio estalou: — Unidade três, avança. — Unidade quatro, mantém posição. — Ordem é localizar elementos envolvidos no confronto de ontem. Mais Novo bufou: — “Elementos”… sempre isso. Nunca é homem. Paulista complementou: — Estatística. Eles precisam entregar número, não justiça. Subimos até uma laje de visão ampla. Dava pra ver quase tudo — o morro, a principal, parte da Nova Brasília. Era ponto estratégico, mas exposto. Três caras armados estavam lá. Todos me olharam como se eu fosse peça nova num tabuleiro de guerra. — É ele? — um deles perguntou. — É — Paulista confirmou. — Fica ligado. Se viatura avançar, avisa. Silêncio de pré-guerra. Vento ouvindo tudo. Mais Novo se aproximou: — Tá tremendo? — Não. Mentira. Mas não era medo. Era uma mistura estranha de adrenalina, raiva, culpa. Paulista percebeu: — Não faz besteira, Revoltado. Se a PM avançar, a gente recua. A prioridade é você não ser visto. Hoje não é dia de confronto. — Eu sei. — Não — ele cortou. — Ontem você avançou como se tivesse pedido pra morrer. Hoje vai ter que fazer o contrário: pedir pra viver. As palavras grudaram. Então Mais Novo olhou pra rua e seu rosto mudou: — Eles tão vindo. Duas viaturas abrindo caminho… e o caveirão atrás. O som dos motores tomou o morro. Pesado. Lento. Ameaçador. Gritos ecoaram lá embaixo: — PM! — Fecha a rua! — Entra pra dentro! O morro inteiro se mexeu de uma vez. Paulista puxou a pistola, mas apontou pro chão: — Ninguém atira. Só responde se tiver risco real. Eles tão atrás dele, não da gente. Meu sangue ferveu. Era isso? Eu era o alvo? Respirei fundo. Parecia respirar água. A primeira granada de luz estourou lá embaixo. A viela tremeu. Mais Novo arregalou os olhos: — Revoltado… agora fudeu. Agora é guerra. Paulista berrou: — DESCE! E o caos explodiu: crianças chorando, portas batendo, motos arrancando, rádios chiando, sirenes cortando o ar. Moradores correndo, mulheres gritando nomes de filhos, passos desesperados ecoando pelas lajes. O caveirão avançava como se tivesse tempo infinito pra esmagar tudo. Descemos por outra escada. Cada degrau parecia mais estreito, mais quente. O morro respirava no meu cangote. — Se eles te enxergam… acabou — Paulista avisou. — Tu virou alvo, irmão. Tá pintado. — Mais Novo completou. Viramos a curva… E ela tava ali. Minha mãe. Dona Ana. No meio da viela, descalça, cabelo preso às pressas, rosto iluminado pelo clarão da granada. Ela me viu armado. Me viu correndo. Me viu com dois homens armados. Me viu respirando guerra. Ela sabia. Mas ver é outra coisa. Ver transforma. — Meu Deus… — ela murmurou. — É isso mesmo que eu tô vendo, Thayan? Congelei. Paulista tentou puxá-la: — Dona Ana, entra pra dentro! A senhora vai ser atingida! Mas ela não escutava. Só me encarava. Só olhava a arma na minha mão. A postura de homem que não volta mais. — Eu tentei — ela disse, voz quebrada. — Eu juro que tentei te segurar fora disso. Eu tentei… A lágrima caiu. — Olha onde você tá, meu filho… Eu respirei fundo. Não tinha como esconder nada. Lá embaixo, o caveirão virou a rua. O chão tremeu. As luzes piscaram. — VAMBORA, REVOLTADO! — gritou o Mais Novo. Paulista puxava minha mãe de volta. Ela segurou meu braço por um segundo — só um segundo. — Não morre. Se você morrer… eu morro junto. Engoli seco. Soltei. A porta bateu. O barulho acertou meu peito como soco. Corremos. Chegamos na laje de baixo. A viatura avançou. E dessa vez, não era só fuga. Era resposta. Virei o corpo, ergui a arma e atirei de volta, mirando pneu, farol, avanço. Não por poder. Não por coragem. Mas porque estavam empurrando o morro pra dentro do abismo — e eu estava no meio da linha. A viatura perdeu velocidade. Paulista gritou: — AGORA, CORRE! A gente sumiu pelo miolo, enquanto a guerra engolia tudo atrás da gente. E ali, no meio do caos, entendi uma verdade c***l: Eu já não fazia parte da vida que minha mãe queria. Eu fazia parte da guerra. E a guerra tinha me vestido por inteiro. O miolo da comunidade engoliu a gente como se estivesse vivo. As vielas se fechavam atrás dos nossos passos, as portas batendo com pressa, as janelas se trancando como pálpebras assustadas. A guerra tinha tomado forma — e não era só policial, não era só bandido. Era o morro inteiro tentando sobreviver ao próprio destino. Eu corria, mas a imagem da minha mãe grudou na minha cabeça como sangue seco: o olhar, o tremor da mão, o jeito desesperado de dizer “não morre”. Aquilo me perfurava mais do que qualquer tiro poderia perfurar. Mais Novo percebeu meu silêncio. — Ei… — ele me cutucou com o ombro. — Não viaja agora, irmão. Se tu desligar a mente, tu cai. — Eu tô bem — respondi, mas a voz saiu mais fraca do que eu esperava. Paulista olhou pra trás, avaliando meu estado como quem avalia terreno minado. — Não tá — ele rebateu. — Mas depois você surta. Agora a gente sobrevive. O rádio dele estalou: — ATENÇÃO: viatura na rua trinta e um. — Caveirão reposicionando. — Posição quatro, aciona. Paulista respondeu rápido: — Copiado. Miolo seguro por enquanto. — E desligou. — Vamos descer mais. A PM não vai entrar nesse buraco sem apoio. Descemos por uma escada estreita demais, quase vertical. Minhas mãos tremiam, mas não era só adrenalina. Era o que tinha acabado de acontecer. Minha mãe me vendo daquele jeito… armado, sujo, pronto pra m***r ou morrer. Era o tipo de cena que nenhuma mãe deveria ver, principalmente uma que passou a vida inteira tentando manter o filho fora desse mundo. A cada degrau que eu descia, parecia que a culpa subia. No pé da escada, um corredor longo se abria, cheio de roupas estendidas, chinelos pelo chão, latões de água. A vida comum tentando continuar no meio da guerra. Mas ninguém tinha rosto. Só sombra. Só medo. Um senhor fechou a porta quando me viu passar. Uma mulher puxou a filha rápido pro lado. Um cachorro latiu, mas nem aproximou. Eu era sinal de perigo. Um aviso andando. Um problema anunciado. Mais Novo deu um t**a leve no meu braço. — Para com essa cara. Tu tá vivo. E tá com a gente. O resto a gente resolve depois. — É — Paulista completou. — Respira. Não dá pra fraquejar agora. Respirei fundo, mas parecia que o ar travava no meio da garganta. — Ela nunca tinha me visto assim — falei baixo, sem perceber que tinha dito. Paulista respondeu sem olhar: — Nenhuma mãe merece ver. Mas acontece. Ficamos em silêncio. Não um silêncio de calma — silêncio de guerra. O rádio estalou de novo: — POSIÇÃO DO ALVO NÃO LOCALIZADA. — REPETINDO: NÃO LOCALIZADA. — AVANÇAR PARA O SETOR C. Mais Novo sorriu de canto. — Estão rodando sem saber pra onde ir. Melhor pra nós. Paulista, frio como sempre, rebateu: — Perdidos não. Só ajustando as peças. Caminhamos até uma laje baixa, escondida entre duas casas coladas. Era quase uma toca — estreita, abafada, mas segura o suficiente pra respirar por alguns segundos. Ali, o morro parecia outro mundo. Mais silencioso. Mais denso. Paulista sentou num caixote e checou o carregador. — A gente segura aqui — ele disse. — A PM não vai entrar nesse beco sem motivo. Mais Novo completou: — E tu tá ligado que pra eles ninguém aqui tem nome, né? É “suspeito”. “Elemento”. Nada de Thayan. Aquela palavra me bateu forte. Elemento. Suspeito. Nunca “pessoa”. Nunca “filho”. Nunca “cara que tentou fazer certo”. Só alvo. Fechei os olhos por dois segundos. Vi o rosto da minha mãe. O tremor na voz dela. O medo. A dor. A pergunta muda: onde foi que eu perdi você? Foi aí que ouvimos passos. Levantei a arma na hora. Mas era Tiaguinho da Caatinga. — Paulista… duas viaturas recuaram. Caveirão ficou no Largo. Mas tão falando que vão procurar o cara do casaco cinza. Meu estômago travou. Mais Novo olhou direto pra mim. — É isso. Eles colaram tua descrição. Tu virou procura. Paulista perguntou: — Falaram nome? — Não. Só “indivíduo armado”. — Ótimo — Paulista respondeu. — Pelo menos não te identificaram. Eu ri sem humor.
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