Um mês pode parecer pouco pra muita gente. Pra mim, virou uma década inteira em cima das costas. Cada noite desse mês teve gosto de ferro, de pólvora, de corrida no escuro e respiração presa enquanto o rádio chiava meu nome. Nunca imaginei que a vida ia me virar desse jeito, mas quando o sangue começa a bater na alma, você entende rápido que o caminho não volta mais. E nesse mês… eu aprendi isso do pior jeito possível.
Depois daquela primeira operação, quando eu realmente puxei o gatilho sem pensar duas vezes, as coisas começaram a andar muito rápido. Tão rápido que às vezes parecia que meu corpo ia pra um lado e minha cabeça ficava dois passos atrás tentando alcançar. O chefe percebeu. Ele sempre percebe. No crime, ninguém te elogia por sentimento — elogiam por resultado. E o meu resultado estava aparecendo.
Nas semanas seguintes, rodei com três equipes diferentes. Troquei tiro com polícia em viela, em escadão, em terreno baldio. Teve operação que começou às duas da manhã e só terminou quando o sol já estava batendo nas lajes. E eu ali, com o suor escorrendo, corpo inteiro tremendo por dentro, mas o dedo firme no gatilho. Em todas elas, saí inteiro. Nenhuma bala me acertou de verdade. Só arranhões, cortes de farpa, um r***o no braço que o chefe mesmo fechou com durex e esparadrapo improvisado porque “médico custa dinheiro e tempo”.
Cada vez que eu voltava vivo de uma troca de tiro, o respeito mudava. O olhar mudava. A forma como falavam comigo mudava. Antes eu era aquele garoto revoltado pela morte do irmão. Agora… agora eu era um soldado em ascensão. E no Comando Vermelho, soldado bom é moeda rara.
Foi aí que o chefe me chamou num canto, aquela voz calma que todo mundo teme mais que grito.
— Tu não é só mais um, Thayan. — Ele disse, segurando meu ombro. — Tu tem sangue frio. Tem firmeza. E, mais importante, tem lealdade. A gente viu.
Eu só assenti. Não sabia o que responder. Não sabia nem se queria ouvir aquilo. Ele, no entanto, continuou:
— A partir de hoje, tu entra no trabalho pesado. Nada de recadinho. Nada de vigiar movimentinho de esquina. Vai carregar coisa grande. Vai entregar coisa grande. E vai receber como gente grande.
Eu me lembrei do meu irmão na mesma hora. O jeito que ele falava que eu tinha nascido pra algo maior. Que eu nunca ia ser “só mais um”. Ele dizia aquilo rindo. Nunca pensou que o “algo maior” ia ser virar nome de guerra em morro. Se ele visse agora, não sei se me abraçaria ou me daria um t**a na cara. Talvez os dois.
Foi também nesse mês que tudo descambou de vez: o x9 abriu a boca. O desgraçado contou tudo. Horário. Rota. Quem estava. E principalmente… quem eu era. Meu nome, minha idade, o rosto. Tudo entregue de bandeja. Era questão de tempo até a polícia juntar com as imagens das operações. Juntaram rápido. Apareci no jornal. Na TV. Na internet. “Thayan Araújo, vulgo Revoltado”. Meu rosto, meu nome, minha história sendo cuspida pra todo mundo como se fosse novela.
Eu lembro da primeira vez que vi a reportagem de verdade. Foi na televisão velha da dona Marta, ali da esquina. Eu tinha ido comprar água. Quando entrei, ela estava com o olho arregalado, o volume no máximo. E foi o meu rosto que apareceu, borrado pela imagem de baixa qualidade, mas reconhecível como bater de frente com espelho.
— Meu Deus do céu… — ela murmurou.
Eu só virei as costas e fui embora. Não adiantava tentar explicar.
A notícia rodou. A favela inteira ficou sabendo oficialmente. E teve gente que achou bonito. Gente que achou pesado. Gente que ficou com medo. Gente que me parou pra tirar foto, acreditando que crime é glamour. Gente que começou a me olhar com distância. E teve minha mãe.
Dona Ana não me procurou na primeira semana. Nem na segunda. Quando eu aparecia, ela virava o rosto. Não gritava. Não xingava. Não pedia explicação. Era pior. Era aquele silêncio que corta o peito. Aquele olhar que segura um milhão de perguntas e nenhuma delas tem resposta que sirva. Ela já sabia que eu estava no crime. Já tinha entendido isso antes mesmo de eu assumir. Mas ver meu rosto estampado em noticiário… ver que eu tinha puxado o gatilho… ver que eu era um alvo… isso foi o baque que ela não estava preparada pra levar.
E mesmo assim, toda vez que eu chegava perto dela, ela soltava só uma frase:
— Eu sou tua mãe, Thayan. E mãe ama até sangrar.
Eu nunca soube o que responder.
Navÿlla, por outro lado, não me largou por um segundo. Nem quando me viu chegando tarde, com cheiro de pólvora, com arranhão aberto no braço, com a roupa suja de poeira e sangue dos outros. Nunca questionou. Nunca pediu pra eu sair. Nunca pediu pra eu mudar. Ela só perguntava se eu estava vivo. E quando eu dizia que sim, ela me puxava pro colo dela como se quisesse garantir que meu coração continuava batendo ali.
“Você ama um cara que chegou aqui todo sujo de sangue?”, perguntei uma noite, tentando afastar ela.
Ela riu fraco.
— Eu amo você. O resto eu aguento.
Eu queria acreditar que ela ia aguentar tudo mesmo. Mas nem eu sabia o que ainda estava por vir.
Meu fuzil chegou na terceira semana. Uma arma que eu nunca imaginei tocar. Pesado. Gelado. Forte. O tipo de arma que muda a pessoa que usa. Quando o chefe me entregou, ele disse:
— Agora tu tá pronto de verdade.
Eu não estava. Mas quem liga?
Foi nesse clima que o baile veio. O primeiro baile desde que meu irmão morreu. O primeiro baile com meu nome rodando pela favela. O primeiro baile onde eu ia entrar não como o Thayan, mas como o Revoltado. E quando você entra com nome de guerra… todo mundo olha.
A noite estava quente, abafada, o tipo de calor que gruda no pescoço. A favela estava acesa — luzes piscando nas lajes, fogos estourando lá em cima, motos passando com o guidão solto, gente gritando, música estralando no auge. O baile daquele dia parecia maior do que todos os outros. Parecia feito pra mim, mesmo que não fosse. Parecia esperando meu passo.
Subi o beco com o fuzil atravessado no peito, colete por baixo da camisa, rádio preso na cintura. A cada passo, alguém me cumprimentava.
— Aí, Revoltado, tá sinistro, hein.
— Respeito é o que tu plantou, irmão.
— Esse é o cara que voltou diferente.
Eu só acenava. Nada demais. O respeito é bonito, mas traz peso. Quanto mais gente te olha, mais gente te deseja m*l. E eu sempre soube disso.
Quando cheguei na entrada do baile, a fumaça estava tão densa que parecia neblina. Luz vermelha piscava, cortando os rostos. O som vibrava no peito. Era tanto grave que dava impressão de que o chão respirava. E no meio disso tudo, Navÿlla apareceu do meu lado como se tivesse brotado da sombra, linda, com aquele brilho nos olhos que sempre me desmontou.
Ela segurou meu braço e me puxou pra pista.
— Hoje você vive, Thayan — ela sussurrou. — Pelo menos hoje.
Eu deixei. Deixei ela me puxar, me segurar, me beijar no canto da boca. Deixei ela encostar o rosto no meu pescoço enquanto a música estourava. Mas mesmo ali, no meio do calor do baile, eu não relaxei. Meu olho estava sempre rodando. Sempre atento. Sempre esperando algo. Quando você vive no crime, você nunca baixa totalmente a guarda. Nem quando dança. Nem quando respira.
E foi quando a batida baixou e a música mudou que eu senti. Não sei explicar. Não foi barulho. Não foi visão. Foi instinto. Aquele frio que sobe pelas costas quando algo está prestes a acontecer. E eu olhei pra direita — e vi dois caras que eu não conhecia, parados demais, olhando demais, tensos demais.
Navÿlla percebeu na mesma hora que eu fiquei rígido.
— O que foi? — ela perguntou baixinho.
— Nada ainda — respondi. — Mas fica atrás de mim.
Ela obedeceu.
Foi só questão de segundos até eu ver o brilho metálico no movimento da mão de um deles. E meu corpo reagiu antes da minha cabeça. Empurrei Navÿlla pra trás, tirei o fuzil da bandoleira e dei três disparos secos, controlados. Não era tiro pra cima. Era tiro pra acertar. A música abafou o som, mas quem entende tiro reconhece na hora.
As pessoas gritaram. O baile abriu como mar se abrindo. Os caras recuaram, tropeçando. E então o morro inteiro entrou em alerta. Rádio chamou. Gritaria começou. E o baile virou caos.
Eu dei passos pra frente, fuzil firme, olhando pros lados. Navÿlla segurava minha camisa por trás, tremendo.
E no meio do caos, eu senti uma coisa estranha. Uma mistura de adrenalina, medo e… poder. Não o tipo de poder que engrandece. O tipo que amarra destino. Eu tinha cruzado uma linha que não tem volta. E todo mundo ali sabia. Eu era o cara armado. Eu era o alvo. Eu era o nome que estava no jornal. Eu era o Revoltado.
Quando a situação acalmou e os caras foram embora arrastados pelos próprios amigos, o baile voltou devagar. Mas eu não voltei. Eu continuei ali, parado, respirando fundo, mão trêmula no fuzil. Não pelo tiro. Mas pelo que ele simbolizava.
Quando olhei pra Navÿlla, ela estava me encarando com os olhos cheios d’água.
— É isso que você virou? — ela perguntou, baixinho.
Eu engoli seco.
— Não sei no que eu virei. Só sei que é o que sobrou de mim.
Ela me abraçou, mesmo assim.
Naquela noite, indo embora do baile com o fuzil nas costas e o corpo suado, eu entendi: não era só a polícia que estava caçando o Revoltado. Era eu mesmo. Eu estava me perdendo a cada dia. Um mês tinha sido suficiente pra me transformar em alguém que até meu irmão não reconheceria.
E o pior?
Eu estava começando a me acostumar.