Sofia Narrando
Me chamo Sofia Menezes, Sou magra, morena e tenho cabelos cacheados que chegam na cintura. Meus olhos são castanhos, não me acho feia e nem bonita, tenho dezessete anos e carrego no peïto uma história que não escolhi viver, mas que me moldou como ninguém. Filha única de uma mulher que nunca soube me amar e de um pai... bem, nem sei se posso chamá-lo assim. Nunca o conheci. Nem nome ele deixou. Na minha certidão, tá lá seco, frio, impessoal: “pai desconhecido”. E, olha, nunca um nome fez tanto sentido. Um verdadeiro completo desconhecido.
Desde que me entendo por gente, moro com a minha avó. Uma mulher de fibra, dessas que a vida bate e ela encara de pé. Minha mãe? Foi embora quando eu era um bebê. Dizem que saiu pra dar um rolê e nunca mais voltou. Sabe aquelas histórias que a gente ouve e parece que é mentira? Pois é, essa é a minha verdade. Só que, diferente do que muita gente pensa, eu não fico me lamentando. Eu cresci vendo a minha avó levantar todo dia antes do sol nascer pra garantir o nosso sustento. Nunca deixou faltar comida no prato nem amor no coração.
— Sofia, menina, corta esse bolo certinho, hein? — ela diz sempre, enquanto enche as garrafas térmicas com café e suco de laranja.
— Tô caprichando, vó. Tá tudo no jeito.
Eu acordo todo dia às quatro da manhã. Mas minha avó já tá de pé às três. Aos dez anos eu já fazia bolo melhor que muita boleira por aí. Hoje sou eu quem cuida da parte dos bolos e das tortas de frango, de atum, de carne. Às quatro e meia, ela já tá saindo com o carrinho que ela mesma puxa, carregado de quitutes e bebidas, indo pro ponto perto da estação. Volta lá pelas nove da manhã com os isopores vazios. Mas descansar? Isso é luxo pra quem pode.
Enquanto ela tá na rua, eu preparo o almoço que ela também vende por lá. Faço tudo fresquinho: arroz, feijão, macarrão, salada, purê, maionese E duas opções de carne, às vezes frango, às vezes porco, às vezes carne de panela. Às dez e meia tá tudo pronto. Às onze, ela já tá saindo de novo com os dois isopores grandões. Só quem viu sabe o quanto aquilo pesa. E ela vai, firme, com aquela força que só vó tem.
Já tentei várias vezes convencê-la a me deixar ir no lugar dela, pelo menos na hora do almoço.
— Deixa que eu vou, vó. A senhora já fez demais hoje.
— Não, minha filha. Cê tem que estudar. Isso é o mais importante. Eu aguento.
— Mas, vó...
— Já falei. Eu vou. Você fica e estuda.
Ela fala com aquele tom que a gente respeita. Não é dureza, é cuidado. E eu obedeço.
Depois que ela sai, eu lavo tudo, deixo a casa limpinha. Às treze horas já tô pronta pra escola. Estudo aqui mesmo na Baixada, perto de casa. A aula começa às 13:15 e, mesmo cansada, eu vou. Às vezes, confesso, já cochilei na sala. É difícil manter o olho aberto depois de uma manhã tão puxada. Mas eu sigo. Já tô no último ano. Tá pertinho de acabar essa fase e, se Deus quiser, começar outra. Uma melhor. Uma que traga de volta pra minha vó tudo o que ela me deu até hoje.
Tenho tios, tias, primos, mas ninguém muito presente. Cada um tocando sua vida, como se a gente não existisse. Só uma das minhas tias aparece por aqui uma vez por semana. O resto? Mäl mandam mensagem. Cresci vendo minha avó ser esquecida por quem ela tanto cuidou. Por isso, cresci com uma missão. Eu vou mudar essa realidade. Vou dar pra ela o que ninguém deu: tranquilidade. Uma vida estável. Muito amor. Porque foi isso que ela me deu quando o mundo virou as costas pra mim.
— Quando eu estiver lá em cima, vó, a senhora vai comigo. — falo pra ela às vezes, quando a gente tá sentada no sofá, vendo novela e dividindo um copo de café com leite.
— Lá em cima onde, menina?
— Lá em cima da vida. Quando tudo melhorar. Quando eu tiver meu diploma, meu emprego bom, minha casa. A senhora vai tá lá. Porque se eu chegar lá, foi a senhora quem me empurrou.
Ela sorri e me dá um tapinha de leve no braço.
— Boba.
Mas eu sei que ela se emociona. Sei porque ela enxuga os olhos disfarçadamente quando acha que eu não tô vendo.
Essa mulher é tudo pra mim. Meu porto seguro. Minha força. Minha inspiração. Quando eu me sinto fraca, é nela que penso. E sigo. Porque desistir não é opção. A vida já foi dura demais com a gente. Tá na hora de retribuir.
E se alguém me perguntar, no futuro, quem foi que me estendeu a mão quando minha mãe me largou como se eu fosse um cachorro sarnento, eu vou responder sem pestanejar:
— Foi minha avó. Só ela. E que sorte a minha.
Na escola, minha melhor amiga é a Heloísa. A gente se conheceu no primeiro ano do ensino médio e, desde então, é uma só. Ela é daquele tipo que fala alto, dá risada de tudo e sempre tem uma resposta na ponta da língua. Totalmente o oposto de mim, que sou mais calada, mais na minha. Mas talvez seja isso que faz dar certo. Ela me ajuda a soltar um pouco, e eu puxo ela de volta pra realidade quando ela viaja demais.
— Amiga, um dia a gente vai sair daqui e rir de tudo isso — ela vive dizendo, segurando meu braço como se fôssemos jurar segredo eterno.
— Vamos sim. E a primeira coisa que eu vou fazer é pagar um salão de luxo pra deixar a senhora toda produzida — brinco, e a gente ri até a barriga doer.
Nunca namorei. E, sinceramente? Nem tenho pressa. Uma vez, quando eu tinha uns treze anos, beijei um menino da rua de cima. Achei que ia ser aquele negócio bonito que a gente vê em novela, mas mäl terminou o beijo e o garoto já queria mandar em mim. Queria saber com quem eu andava, por que eu não respondia na hora, essas coisas. Aí eu parei e pensei: “Peraí, se eu mäl comecei a gostar e já tão querendo mandar em mim, imagina depois?”
Me afastei. Não queria e não quero ninguém que ache que pode me controlar. Desde então, decidi focar no que realmente importa: os estudos. Porque é isso que vai mudar a minha vida. Não beijo, não romance, não ilusão. É o conhecimento que vai me tirar daqui. Por mim. Pela minha avó. E pelo futuro que eu sei que a gente merece.