04 - Sofia

1045 Words
Sofia Narrando Hoje eu acordei antes das quatro. Tava frio pra caramba, o céu ainda nem clareando direito. Pulei da cama tremendo, escovei os dentes e lavei o rosto. A água tava gelada, mas serviu pra me acordar de vez. Vesti logo um casaco por cima do moletom que eu já tava usando pra dormir, enfiei o cabelo dentro da touca e fui direto pra cozinha. Ontem à noite eu fiz uma leva de coxinha. Tava um tempão sem fazer, mas começaram a pedir pra minha avó de novo, aí não teve jeito. Quando cheguei na cozinha, ela já tava lá coando o café no coador de pano, do jeitinho que só ela sabe fazer. Fui fritando as coxinhas, uma por uma, devagarzinho pra não estourar e nem deixar oleosa. A cozinha tava quentinha, cheirando fritura e café passado. Quando terminamos tudo, ajudei minha avó a embalar. Cada coisa no seu recipiente, arrumada dentro do isopor. Depois segurei o carrinho enquanto ela amarrava o isopor direitinho, pra não correr o risco de virar no meio do caminho. Ela saiu enfrentando o frio com aquele casaquinho de sempre. Fiquei olhando ela descer a rua puxando o carrinho, igual faz todo dia, com aquela força que só ela tem. — Deus te acompanhe, vó, Eu te amo. Voltei pra dentro e já botei o feijão de molho na água quente. Enquanto isso, tomei um café preto bem forte pra terminar de despertar. A cabeça já tava no almoço. Fui picando os legumes, preparando o arroz, temperando a carne. Quando vi, já tava tudo nos trinques. Nem parecia que era tão cedo assim. Minha avó chegou pouco antes das dez. Ela entrou cansada, se sentou um pouco no sofá. — Senta aí, vó, vou fazer tua vitamina. — Faz com banana, mamão e maçã, hein? Do jeitinho que eu gosto — ela falou, sorrindo cansada. Preparei a vitamina bem reforçada, do jeitinho que ela pediu. Enquanto ela tomava, eu fui ajeitando as marmitas. Arroz, feijão, carne de panela, salada. Tudo bem arrumado, caprichado, porque a gente sabe que pra vender comida tem que fazer com carinho. Ela tomou a vitamina, descansou uns minutinhos e já saiu de novo pra vender as marmitas. Não para, minha véia. Fiquei na cozinha, lavei as panelas, limpei o fogão, dei uma geral no chão e já tava terminando de passar o pano com o cheirinho, quando ouvi alguém bater no portão. Forte. Com pressa. Como se estivesse desesperado. Larguei o rodo com o pano e fui andando rápido até o portão. Nunca abro de primeira. Sempre pergunto antes. — Quem é? — Abre, Sofia. Sou eu, tua mãe, Abre logo! A voz dela tava trêmula, desesperada. Na hora, meu coração acelerou. Abri o portão correndo. Ela entrou afobada, com os olhos arregalados, meio suada apesar do frio. — O que foi? — Sofia... eu... ai meu Deus... aconteceu uma coisa horrível! — Calma, fala devagar... respira. O que aconteceu? Ela pegou minha mão e me puxou para dentro, pediu um copo de água e eu só contei para a cozinha. Cruzeiro e os braços bem ali na porta da cozinha e fiquei olhando para ela, a mulher é morena mas estava pálida, parece que estava fugindo da força. — E cadê a tua avó, tá sozinha em casa? — Minha vó tá trabalhando, as pessoas trabalham sabia. É assim que a gente consegue se manter. Ela pediu café, passei um café para ela, nem devia, mas fiz. Ela pegou a xícara com as mãos tremendo. Bebeu um gole devagar, respirando fundo. Fiquei olhando pra ela em silêncio, esperando ela dizer o que tava engasgado na garganta. — Mataram o Leleco — ela disse, com a voz embargada. — Invadiram o morro de madrugada, metralharam ele todinho. — Leleco? Que Leleco, Elís? — O dono do Chapadão, Sofia, ele mesmo. O cara que mandava em tudo. Minha cabeça deu um nó. — Ué, e tu tem a ver com isso desde quando? Ela abaixou os olhos. Silêncio. — Elís — falei mais firme. — Que que cê tem a ver com o dono do Chapadão? Ela respirou fundo, passou a mão no rosto. — Eu me deitava com ele, Sofia. Eu era tipo amante fixa dele, mas agora ferrou tudo. — E o que tem a ver, acho que quem matou ele vai atrás de você? Porque até onde eu sei, homens como esse Leleco não só tem uma amante. Será que todas vão fugir? Ela assentiu com a cabeça, olhos marejados. — E agora quem assumiu tudo foi o filho dele, o Terror. Um moleque frio, sem coração. Tá botando geral pra correr, cobrando cada dívida, cada traidor. Dizem que ele é pïor que o pai. — Eu não faço ideia de quem era esse cara, muito menos o filho dele — falei, tentando absorver tudo de uma vez. — E tu tá com medo de morrer? Ela me olhou como quem já sabia que a resposta era sim. — Tô com muito medo. O Terror já sabe quem eu sou. Já sabe que eu era dele, e pra esse povo, O que vale é o dinheiro, eu devo muito a leleco e agora o Terror quer cobrar as dívidas. — Como assim, Elís? Tu devia o quê pra esse povo? Que que tu fez? Ela baixou a cabeça, os olhos vermelhos. — Eu devo tudo, devo a vida. Se não fosse ele, eu não teria colocado essas próteses, feito a harmonização, e muito menos as minhas viagens. Fora a casa, o carro e o resto todo. Fiquei sem chão. Meu estômago embrulhou. Tive que segurar na pia pra não cair pra trás. — E agora? O que tu vai fazer? — Eu não sei, mas eu preciso fugir, uma hora ou outra o terror vai vir atrás de mim, E se ele me pegar já era. — Para com isso, Elís — falei, com a voz falhando. — Ninguém vai pegar ninguém. A gente vai dar um jeito. Mas por dentro, eu já sabia: esse tipo de dívida, nesse mundo, não tem perdão. E se esse tal de Terror for mesmo o que tão dizendo, minha mãe tá com os dias contados. E eu, sem querer, acabei entrando nessa história também.
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