Sofia Narrando
Sempre que eu fecho os olhos, tento imaginar como seria ter uma mãe de verdade. Daquelas que pegam a gente no colo quando o mundo pesa demais, que ajudam a escolher o vestido da festa da escola, que brigam porque a gente chegou tarde, mas que no fundo só estavam preocupadas. Só que, pra mim, isso sempre foi só imaginação.
Eu fui criada pela minha avó, Dona Neide. Uma mulher forte, com mãos calejadas e coração gigante. Ela é meu porto seguro, meu chão, minha família inteira. Tudo que eu sou hoje, tudo que aprendi sobre respeito, dignidade e amor veio dela. Acordava de madrugada pra fazer quentinha e vender na estação, só pra garantir o meu lanche da escola. Nunca reclamou. Nunca virou o rosto. Ela me olha com aqueles olhos cansados, mas cheios de carinho, e diz:
— Você vai ser alguém nessa vida, minha filha. Eu tenho fé.
E é por ela que eu carrego tantos sonhos. Quero terminar o ensino médio, fazer faculdade, ser médica pediatra e cuidar de verdade, da nossa gente, do nosso futuro, da nossa luta. Quero sair da Baixada e mostrar pra todo mundo que o CEP não define ninguém. Que menina de comunidade também tem talento, também tem valor.
Mas por mais que eu tente seguir em frente, tem um buraco aqui dentro que nunca fechou. Um vazio que grita em silêncio toda vez que vejo alguma amiga falando da mãe. Toda vez que o Dia das Mães chega e eu fico pensando o que escrever no cartão da escola. Porque a minha mãe, bom, a minha mãe não sabe nem o que é ser isso.
Elís. O nome dela é esse. Curto, direto. Igual ela. Uma mulher bonita, vaidosa, que nunca passou despercebida em lugar nenhum. Desde que eu me entendo por gente, sei que ela existe. Sei que ela é minha mãe. Mas não porque ela estava presente, e sim porque fazia questão de dizer pros outros que tinha uma filha. Como se bastasse gritar pro mundo que é mãe pra ser, de fato, uma.
Elís me teve com 15 anos. Nova demais, é verdade. Mas isso nunca foi desculpa. Porque tem gente que amadurece na marra, que encara a vida de frente. Ela não. Ela fugiu. Me deixou com minha avó e sumiu no mundaréu da vida. Dizia que não podia cuidar de mim, que ainda tinha muito o que viver. E foi viver mesmo, no baile, nos braços de homem casado, nas madrugadas cheias de fumaça e promessas vazias.
A última vez que a vi, eu tinha 11 anos. Ela apareceu na casa da minha avó com uma roupa justa, cheia de maquiagem e aquele cheiro forte de perfume misturado com cigarro. Me chamou de “filhota” e me deu um beijo na testa. Eu, boba e carente, sorri. Achei que era o começo de alguma coisa. Mas foi só mais uma visita relâmpago, só mais uma ilusão. Ela ficou menos de uma hora e foi embora sem nem olhar pra trás.
Hoje, aos 17 anos, eu entendo mais do que gostaria. Sei que ela é amante de um cara perigoso, um traficante conhecido lá do Chapadão. O tipo de homem que mete medo até nos mais valentes. Dizem que ela vive bem, que não falta nada, que anda de moto com ele, que vai de carro pra baile. Mas nunca teve tempo nem coragem de vir me ver. Nunca trouxe um presente de aniversário, nunca ligou no Natal, nunca me procurou quando eu adoeci.
Dói. Dói mais do que posso explicar. Porque, mesmo depois de tudo, tem uma parte de mim que ainda queria um colo, um afago, uma explicação. Uma parte teimosa que sonha em ouvir um “me perdoa” sincero. Só que, com o tempo, a gente aprende que não pode esperar demais de quem nunca quis dar nada.
E nesse meio de dor e abandono, quem segurou a barra foi minha avó. A véia guerreira que ralou sozinha pra me criar. Qu ume dividiu o pouco que tinha. Que escolheu cuidar de mim quando a própria filha virou as costas. Nunca vou esquecer as vezes que ela abriu mão do almoço pra eu poder lanchar na escola. Ou das noites que ficou acordada comigo enquanto eu estudava pra prova. Ela me fez acreditar que, apesar da dor, eu era amada. E isso salvou minha vida.
Mas a vida, às vezes, é crüel. E quando a gente acha que já sofreu o bastante, ela vem e mostra que ainda pode ser pïor.
Eu ainda não sei o que tá por vir. Não sei que tipo de encrenca a Elís se meteu dessa vez. Só sei que, quando ela apareceu depois de anos, com os olhos vermelhos e a boca tremendo, dizendo que precisava de mim, meu coração gelou. Algo dentro de mim gritou que aquilo não era certo.
Ela chorou. Disse que precisava que eu confiasse. Que era por pouco tempo. Que eu seria bem cuidada.
Mas não explicou nada.
E agora, aqui estou eu, prestes a entrar num mundo que nunca foi meu, que sempre me assustou. Deixada como pagamento de uma dívida que eu nem sei qual é.
Minha avó implorou pra ela não fazer isso. Mas Elís não ouviu. Nunca ouviu.
E eu? Eu tô aqui, com o coração despedaçado, tentando ser forte. Por mim. Pela minha avó. E pelos sonhos que ainda carrego, mesmo com medo de que o mundo vá destruí-los de vez.
A moto parou, e eu desci tremendo. Não me disseram pra onde eu ia, nem o que me esperava. Só mandaram eu ficar quieta e caminhar. Obedeci. Por medo. Por puro pavor.
Quando ele apareceu na porta da casa grande, soube que era ele. Terror. Alto, sério, com um olhar gelado que me atravessou inteira. Um homem de poucas palavras, mas com uma presença que faz o ar sumir dos pulmões.
Ele me olhou como se já soubesse tudo sobre mim. E sem perguntar nada, apenas disse:
— Você só sai daqui quando sua mãe pagar tudo o que deve.
Meu mundo parou ali. Tudo dentro de mim desmoronou. Quis gritar, correr, implorar. Mas nada saiu. Nem lágrima. Nem som.
Ele virou de costas e desapareceu atrás da porta, como se minha vida tivesse sido decidida com uma única frase.
E eu fiquei parada, sem chão, no meio de uma sala.
Abandonada. Apavorada.
Nas mãos do Dono do Morro.