📖 Capítulo 18 – O Ataque

1205 Words
📖 Capítulo 18 – O Ataque Narrado por Kael O dia começou com um peso estranho. Era como se o morro estivesse segurando a respiração — as pessoas andavam mais devagar, os comentários nas portas vinham mais curtos, e até o cachorro da esquina latiu menos. Eu e o Menor descemos pra resolver umas pendências na boca; negócios, acerto com fornecedor, resolver rumor que não devia virar problema. Voltei pra base, acendi um baseado só pra estancar aquele zumbido na cabeça. Sei que devia ser raro eu relaxar, mas um fio de fumaça era o que me mantinha humano no meio de tanto cálculo. — Tá sentindo isso também? — perguntei pro Menor, enquanto ele contava os pacotes de munição. — Tá pesado, chefe. Parece que o morro todo tá respirando mais devagar hoje — ele respondeu, olho piscando, atento. Não deu tempo de achar normalidade no estranho. O radinho chiou com voz seca: “movimento suspeito — carro preto descendo a viela.” A mensagem veio curta. O Menor prendeu a respiração. O peito apertou. — Recuo tático. Ninguém atira sem eu mandar — ordenei, voz baixa, controlada. — Mas fiquem prontos. A gente se posicionou. O plano era conter, observar, não se expor. Só que quando a calma é falsa, o tempo vira inimigo. Os primeiros tiros vieram do alto, vindo de direção que não deviam. Lançaram a invasão como quem corta a carne de um osso — rápido, certeiro. Explodiu. Tiroteio de todos os lados. Crianças chorando. Gente correndo. Placas caindo. O caos tomou conta. O som de metal e grito misturou com a noite que já vinha cedo. A gente reagiu: defesa, retirada de civis, quem tava baixo tinha de sair. Mas entre cada estampido, meu pensamento correu pros cantos que me doíam mais: onde ela estava? Olivia. — Olivia! — chutei pela rua, gritando, voz rasgando a noite. Narrado por Olivia O primeiro estouro me congelou. Eu varria o salão, distraída com um monte de cabelo no chão e o som do pagode. O primeiro estouro foi seco. O segundo veio mais perto. A parede pareceu vibrar. O ar ficou grosso. — Livi! — Júlia gritou, me puxando pro fundo da casa como se fosse arrancar-me de uma feira que pegou fogo. — Fica aqui! Não sai! — ela empurrou com força, já trancando a porta da frente com aquela pressa que só quem conhece perigo tem. — E você?! — perguntei, olhando pra ela, a voz falhando. — Eu volto! Confia! — ela respondeu, já correndo. O barulho fora era um corpo em guerra. Portas batiam, alguém gritava, um carro fazia ronco que eu nunca vou esquecer. Meu coração parecia um tambor que não se cansa de tocar. Eu estava paralisada, as mãos sujas de cabelo e resquícios de pó de talco, o cheiro do salão se misturando com suor e medo. Ouvi passos do lado de fora, vozes que não conhecia, e então a voz dele — única contra o mundo. — OLIVIA! JÚLIA! — ele gritou com a fúria controlada que eu reconheceria mesmo no fim do mundo. Puxaram-me pela mão com firmeza. Senti a pele dele, quente e dura. Menor à retaguarda, Júlia na frente com uma tesoura como se fosse espada improvisada. Subimos por vielas que eu ainda não sabia trilhar bem, desviando de latas, de pedaços de móveis, de pessoas correndo. Quando um dos nossos caiu, senti o chão abrir embaixo dos pés. Sangue no piso, grito curto, a vida se tornando cobrança. Vi o olhar de Kael — a promessa rija de quem não admite fracasso — e jurei internamente fazer o que fosse preciso pra não ser mais objeto de guerra. Narrado por Roberto (pai da Olivia) A casa tinha cheiro de álcool e papel velho. O mapa da comunidade estava rabiscado em cima da mesa como um tabuleiro de guerra. Olhei pro homem que me servia de braço direito, o bicho do interior que eu criara pra executar o que precisava. — Eles acham que ela tá segura com esse bandido? — falei, a voz baixa, dura. Vi na cabeça as noites sem dormir, a mulher na cama, as promessas que nunca me deixavam. Ele me olhou e disse o que eu precisava ouvir. — Já tá tudo certo. Os homens descem amanhã. Rota pela viela da esquerda, distração na frente da boca. — Eu quero ele morto — eu disse sem hesitar. — Não é só sobre ela. É sobre honra. Eu perdi a mulher pra essa cidade, e não vou perder minha filha também. Ela vai voltar. Nem que seja no susto. Acendi o cigarro e olhei a foto da Olivia pequena na mesa: r**o de cavalo, sorriso torto. O peito aperta. Eu quis ser pai e, ao mesmo tempo, mandar na vida dela como se fosse posse. Era orgulho misturado com dor, e a dor me fez c***l. — Se ela quiser ficar, que fique — encarei a foto. — Mas que saiba quem manda. Que saiba que o pai ainda decide. Assinei o plano com a frieza de quem acha que devolver medo por medo resolve ferida. Não tinha visto então que a bala retorna. Narrado por Kael Quando a fumaça baixou por minutos — porque no morro a troca de tiros é intermitente, com intervalos que parecem eternos — a contagem começou. Subimos pra laje, olhos secos, o corpo latejando. Júlia enrolou um pano no braço do Menor. Tinha feridos, tinha gemidos. Um dos nossos não apareceu. Não sei ainda se foi pro hospital ou pro chão. — Chefe... — Menor falou, a voz quebrada. — O ataque foi pago. Os caras eram de fora. E tem nome por trás. Eu olhei pra ele como se precisasse que as palavras tivessem outra cor. Esperava por rumor, mas ouvi a fala que cortou: — Foi o pai dela. O cara pagou pra te eliminar. E levar ela de volta. Vingança. Controle. E não é só isso... tem X9 no meio de nós. Alguém de dentro passou trajeto, horário, tudo. O mundo tremeu por um segundo. Não senti o chão. A raiva não era só por mim: era por ela, por olivia, por Júlia, por todos que acreditaram que o morro era sagrado. Era pessoal, sujo, calculado. O ataque virou mapa de traição. — Então agora é pessoal — eu disse, voz baixa, como raio prestes a cair. Olivia estava nos braços de Júlia, chorando baixinho, o corpo pequeno se encostando em calor que precisava. Eu olhei pra ela — a respiração ainda tremendo — e, ali no meio do caos, entendi com clareza: amor também é proteção. E quem tocasse nela, pagaria tudo que conseguisse. — A gente passa a limpo isso — murmurei, apertando os punhos. — Não vai sobrar canto. Ninguém mexe com o que é meu. A madrugada nos pertenceu em vigia, plano, vela até amanhecer. Fui dormir com a imagem dos olhos do pai dela, cúmplices, e as rotas na cabeça. A guerra mudou de rosto. O inimigo não era só arisco nas vielas — estava vestido de terno e palavra. E naquela angústia, a certeza veio: se ele queria guerra, teria. Mas no meu morro, quem protege é quem decide o preço.
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