📖 Capítulo 1 – Um Recomeço Disfarçado
📖 Capítulo 1 – Um Recomeço Disfarçado
Narrado por Olivia
Dizem que o tempo cura tudo. Mentira, é tudo mentira.
O tempo só ensina a conviver com a dor, como se ela fosse um osso quebrado que nunca cola direito sabe. Você aprende a andar mancando, mas nunca mais corre do mesmo jeito.
Faz duas semanas que enterrei a minha mãe. Duas semanas em que a casa virou um cemitério silencioso, onde cada parede me lembrava que ela não estava mais ali. Meu pai chorava, mas não de saudade. Eu conhecia bem aquele olhar: ele chorava de raiva. Raiva por perder o controle, raiva por não conseguir mandar nem na própria vida.
E eu? Eu só queria respirar sem sentir culpa. Por isso aceitei o convite da Júlia.
Um final de semana no Rio. Uma visita rápida, nada de mais. Só para mudar de ares, esfriar a cabeça.
Mentira.
Eu estava fugindo. fungindo de tudo.
Júlia sempre foi meu porto seguro. A gente se conheceu ainda criança, na fila da merenda, quando um moleque i****a empurrou minha bandeja e riu da minha cara. Júlia bateu nele com o próprio pão de queijo e disse:
— Mexeu com ela, mexeu comigo.
Naquele dia, ganhei uma irmã. Desde então, nem a distância conseguiu soltar o laço. Ela sempre repetia a mesma frase:
— Quando a vida apertar, vem pra cá. Aqui tem cama e coração. e muito gatinhos.
Então eu fui. Mochila nas costas, alma em pedaços e uma coragem que era mais desespero do que qualquer outra coisa.
Quando desci na rodoviária, vi Júlia de longe. Ela vinha correndo, os cabelos presos num coque torto, a camiseta larga escrita “Sem tempo, irmão” e o sorriso aberto como se o mundo nunca tivesse peso.
— Você tá viva, desgraçada! — ela gritou, antes de me esmagar num abraço.
— Por enquanto — respondi, tentando brincar, mas minha voz saiu rouca.
Ela se afastou, me segurou pelo rosto e examinou como se fosse minha mãe.
— Tá mais magra, tá com olheira… Mas tá linda. — Ela beijou minha testa. — E tá triste. Mas calma, que eu vou resolver isso.
Entramos no carro da mãe dela, um Celta guerreiro que subia a ladeira quase no grito. O rádio chiava funk antigo, o vidro aberto deixava o vento bagunçar meus cabelos, e por um instante eu quase esqueci da dor. A gente riu lembrando das nossas primeiras paixões, das brigas idiotas da escola, das cartas dobradas em formato de coração.
Quando chegamos na casa dela, pensei que a noite ia ser simples: pedir pizza, assistir um filme e dormir. Mas Júlia tinha aquele brilho nos olhos que eu já conhecia. lá vem coisa .
— Hoje tem baile, Olivia. E você vai comigo.
— Baile? Hoje? — arregalei os olhos. — Júlia, eu não tô com cabeça…
— Não quero saber. Vai fazer bem. — Ela me olhou séria, coisa rara. — Cê precisa lembrar como é viver.
Suspirei fundo. Parte de mim queria dizer não, mas outra parte implorava por qualquer coisa que me tirasse daquela prisão interna.
— Tá… Mas eu não vou dançar.
— Relaxa. Só subir e respirar outro ar. — Ela sorriu, e eu já sabia que ela não ia cumprir a promessa.
Pegamos um moto-táxi. Eu agarrada na cintura dela, o capacete largo demais, o vento batendo no rosto. O coração acelerava, não sabia se era medo ou expectativa.
Quando chegamos no alto, foi como entrar em outro planeta. A favela pulsava. As vielas iluminadas por lâmpadas coloridas, barracas vendendo churrasquinho, cheiro de cerveja misturado com perfume barato e fumaça de carvão. Crianças corriam, jovens dançavam, o grave do funk fazia o chão tremer.
— Júlia… isso aqui é… — falei, sem conseguir terminar.
— Vida, amiga. Vida real. Gente que sente, que ri, que chora, mas não para. Aqui a dor não manda.
Ela me puxou pela mão e foi direto a uma barraca. Comprou duas cervejas, abriu a minha com os dentes e ergueu a lata.
— Ao seu primeiro passo. Ainda não é recomeço, mas é caminho, para se liberta.
— Às loucuras que você me enfia.
— Sempre com amor.
Foi quando o vi.
Ele estava encostado num carro preto, cercado de gente, mas parecia sozinho. Alto, moreno, barba por fazer, cicatriz cortando a sobrancelha. O olhar firme, como quem carrega segredos demais. Segurava o copo com a calma de quem já segurou arma. Havia silêncio nele, mesmo no meio do barulho.
Sem perceber, minha voz escapou:
— Quem é aquele?
Júlia seguiu meu olhar e riu nervosa.
— Esse aí… é problema.
— Nome dele?
Ela se inclinou perto do meu ouvido, como se fosse pecado dizer em voz alta:
— Kael.
— E quem é Kael?
— Dono do morro. Saiu da cadeia tem pouco tempo. Aqui todo mundo respeita, ou teme. Mas ninguém ignora.
— Eu só olhei.
— Olhar demais também é perigoso.
Mas já era tarde. Ele tinha me visto.
Kael começou a vir em nossa direção. Passos lentos, firmes, como se o chão abrisse pra ele passar. O espaço realmente abriu. As pessoas se afastaram, algumas cumprimentaram com a cabeça, outras desviaram os olhos e até mesmo abaixando a cabeça.
— Não acredito… — Júlia murmurou, apertando o meu braço. — Ele tá vindo pra cá. Livi, olha pra outro lado. Agora!
Mas eu não consegui.
Quando os olhos dele encontraram os meus, o tempo parou. Era como se todo o barulho tivesse sido sugado, restando apenas aquele olhar que me atravessava.
Júlia tentou me puxar, mas eu estava presa. Não nos braços dele — ainda — mas no destino que começava ali. eu estava presa no olhar dele.
E naquele instante, com o coração disparado, eu soube:
Essa não ia ser só apenas uma visita. uma simples visita .