đ CapĂtulo 6 â Fogo em Linha
Narrado por Olivia
O bar estava com aquele calor de fim de tarde: gente para todo lado, cadeiras encostadas umas nas outras, risadas altas, pagode batendo num radinho no canto que se recusava a respirar. Parecia que, por um momento, tudo estava num lugar seguro, onde minha respiração se misturava ao som das conversas e esquecia por alguns instantes o que levou eu até ali. Eu me sentia... pertencendo. Era estranho e bom.
Kael ficava ali perto, de vez em quando olhando na minha direção. NĂŁo era um olhar de dono â era um olhar de guarda â e me incomodava e confortava ao mesmo tempo. JĂșlia estava rindo demais com NK, braços soltos no ar, rindo alto como se dissesse âa vida segueâ. Zoio fazia suas palhaçadas, pousando-se como se fosse o rei do pedaço. Eu atĂ© ri, de leve, mais por educação que por vontade. As coisas pareciam normais.
Até que o normal se fatiou. Foi råpido. Primeiro, um homem gritou lå na esquina com voz cortante:
â ATENĂĂO! INVASĂO!
Aquelas palavras caĂram como pedra. Nem deu tempo de entender. O primeiro tiro soou seco e prĂłximo, e depois outro, e o bar virou um estilhaço de movimento. Cadeiras foram empurradas, garrafas quebraram, crianças choraram, mĂŁes puxaram os filhos, homens se levantaram com a mesma velocidade que a respiração se perdeu.
Nunca tinha ouvido um tiro de tĂŁo perto. JĂĄ tinha ouvido na TV, jĂĄ tinha visto filme, mas o som real â aquele estouro que parece rachar o mundo â tem outra densidade. O ar ficou diferente, mais pesado, com gosto de pĂłlvora.
â Livi! â JĂșlia berrou, a voz cortando minha paralisia. â Vem!
NK jĂĄ me agarrava pelo braço, puxando quase arrastando para um beco. Zoio ajudava a tentar organizar quem caĂa, a velha dona da barraca do pastel se encolhia, e o chĂŁo se tornou mapa de vozes e passos. Meu corpo, no entanto, travou. O pĂąnico me gelou as pernas. Eu senti o mundo girar, os olhos rodopiarem. As mĂŁos tremiam como se tivessem vida prĂłpria.
E entĂŁo Kael apareceu. NĂŁo veio como nos filmes, estilo herĂłi dramĂĄtico. Veio como alguĂ©m que conhece o fogo: sĂȘco, rĂĄpido, preciso. Tinha uma arma na mĂŁo â e a visĂŁo dele com arma atĂ© entĂŁo pertencia mais Ă notĂcia que Ă minha vida â e a presença dele cortou o ar ao meu redor.
â OLIVIA! â ele gritou, mano firme prendendo meu braço. â VEM COMIGO, AGORA!
NĂŁo hesitei. Obedecer foi automĂĄtico; parecia a Ășnica opção lĂłgica num mundo que tinha virado alucinação. Ele me puxou por corredores estreitos que sĂł quem morava ali conhecia, atalhos escondidos, portas de serviço que levaram a um labirinto de madeira e concreto. Gente correndo, rĂĄdios chiando, ordem em gritos curtos. AlguĂ©m entregou munição, outro apontou direção, e eu senti a favela se transformar em defesa de guerra.
Entramos num imĂłvel pequeno â uma sala apertada, cortinas tremendo, um rĂĄdio esquecido tocando um funk baixo. Ele fechou a porta, trancou e encostou com força as costas no batente. A respiração dele era pesada; o suor escorria pela testa. A adrenalina desenhava as linhas do rosto, e eu, por instinto, procurei abrigo no peito dele.
â Nunca... â ele começou, os dentes cerrando a frase. â nunca sai do meu alcance de novo quando o bagulho estourar, entendeu?
Eu sĂł consegui balançar a cabeça. A voz dele tremia entre fĂșria e medo. Aquilo me mostrou uma faceta dele que eu tinha pressentido no baile: autoridade com custo. NĂŁo era sĂł proteção; era cobrança. Um aviso de que ali, ao se aproximar de alguĂ©m, vocĂȘ assumia uma guerra invisĂvel.
â CĂȘ tĂĄ bem? â ele perguntou, segurando meu rosto com as mĂŁos ĂĄsperas. â Fala comigo.
â Eu... acho que sim â falei, a respiração voltando aos trancos. â Meu coração... tĂĄ doido.
Ele tentou sorrir, um gesto curto que tentava puxar de volta algum normal. â Primeiro tiro nunca esquece â falou â mas respira. TĂĄ aqui.
Ficamos assim, um tempo que parecia um mundo: eu apoiada nele, e ele sendo muralha. O ruĂdo do conflito lĂĄ fora ainda vinha abafado, ecos de tiros distantes, barulho de carros arrancando, vozes que pediam calma. Mas naquela pequena sala o ar era outro â carregado de promessas, de proteção, mas tambĂ©m de alerta: viver ali tinha preço.
Quando deu pra controlar a respiração, cheguei a ouvir o que estava acontecendo fora: o bonde reagiu. MĂŁos se moveram, ordens curtas, uma resposta rĂĄpida. NĂŁo demorou muito e alguĂ©m veio checar se estava tudo bem no esconderijo. NK pĂŽs a cara por uma fresta da porta, conferiu e sinalizou que a coisa tava controlada â por enquanto.
â Isso aqui nĂŁo Ă© brincadeira, Olivia â Kael murmurou, sem olhar pra mim. â Esse mundo cobra caro. Muito caro. Eu juro... enquanto vocĂȘ estiver aqui, ninguĂ©m encosta em vocĂȘ. Mas vocĂȘ tem que entender que, se ficar do meu lado, vai ser alvo. NĂŁo Ă© promessa fĂĄcil. Ă aviso.
Aquilo foi direto no meu peito. Mais do que medo, senti responsabilidade me cair em cima: não era só minha segurança; era a escolha por uma vida que envolvia riscos que eu não conseguia desenhar totalmente. O amor, ou o interesse, ali, vinha com tal carga que me deu vertigem.
â Eu sei â falei. â Eu nĂŁo vim pra preço barato. SĂł nĂŁo quero ser sozinha nesse barulho.
Ele me olhou. Algo mudou no rosto dele: nĂŁo era sĂł proteção; era cansaço, e um pedaço de ternura que raramente vi em alguĂ©m chamado de âdono do morroâ.
â EntĂŁo fica aqui â disse, quase em sussurro â mas aprende as regras. NĂŁo cĂȘ, qualquer vacilo e eu nĂŁo perdoo nem eu mesmo.
Houve um silĂȘncio que cabia dentro da frase. SaĂmos horas depois, com a rua ainda quente de adrenalina, o bar meio destruĂdo, mesas derrubadas, conversas empurradas para o que precisava ser feito: contar quem tava bem, cuidar dos feridos, enterrar o que era preciso enterrar â mesmo que fosse sĂł o fato de que a paz ali tinha chagas.
JĂșlia segurou minha mĂŁo forte quando saĂmos, olhos molhados. â Livi, cĂȘ tĂĄ bem? â perguntou, voz boa de quem quer proteção. â Eu te disse, eu nĂŁo deixo nada nĂŁo.
â TĂŽ â respondi, sem muita convicção. â TĂŽ por agora.
No caminho de volta, Kael ficou perto. Nem falou muito. A sombra dele era presença constante, e eu percebi que estar ao lado dele era como andar perto de fogo controlado: esquentava, protegia, mas podia queimar sem aviso. Vi o modo como os outros olhavam pra gente â respeito, cautela, talvez curiosidade. Sabia que ter alguĂ©m como ele por perto mudaria tudo: amigos, inimigos, rotas. E eu, que vim procurar ar, entendi que talvez estivesse assinando por consequĂȘncia.
Mais tarde, quando a noite acalmou e o bar foi limpo por mãos cansadas, sentei na laje olhando pra cidade que piscava lå embaixo. O tiro ainda reverberava nas minhas esquinas internas. Tive medo, verdade. Mas tive também a sensação estranha de que, mesmo com medo, não queria largar aquela mão que me segurou no meio do caos.
A favela continuava a ser favela: cheia de vida, cheia de risco. E eu, que cheguei para fugir do silĂȘncio, agora carregava outro tipo de barulho â o som da responsabilidade e do desejo entrelaçados. Estar com Kael significava aceitar que, quando o fogo viesse, nĂŁo ia ser sĂł um ruĂdo distante. Seria linha de frente. E eu, pela primeira vez, senti vontade de fazer parte da linha.