📖 Capítulo 7 – Entre o Silêncio e o Fogo

1483 Words
📖 Capítulo 7 – Entre o Silêncio e o Fogo Narrado por Olivia A noite veio, mas a calmaria que eu esperava não chegou. O bar tinha sido varrido de gente, mas o som dos tiros ainda martelava dentro da minha cabeça como um tambor que não quer parar. Mesmo quando as vozes tentavam retomar o tom de normalidade nas ruas, meu corpo permanecia em prontidão — cada ruído parecia sinal de novo perigo, cada sombra, possibilidade de recomeço do caos. Kael não me deixou sozinha por um minuto. Ficou ali, naquela casa escondida que cheirava a café frio e pano úmido, sentado na cadeira da cozinha com os cotovelos apoiados, olhos fixos em mim. As mãos dele tamborilavam na perna num ritmo que era quase oração e quase estratégia. De vez em quando eu pegava o olhar dele se perdendo pela janela, atento a qualquer movimento lá fora; ele era guarda e olho, e eu agradecia silenciosamente. — Já passou. Tá tudo sob controle... por enquanto — ele repetia, tentando me convencer mais do que me confortar. A expressão “por enquanto” era como uma fresta no peito: aberta, frágil e cheia de aviso. Eu tentei simular leveza, dei um sorriso que quis ser tranquilo, mas meu corpo devolvia outro som — um suspiro longo, preso nas costelas. — Mas dentro de mim ainda tá acontecendo — falei, e a voz saiu pequena, embargada, a lembrança das explosões num eco que não se desfazia. Ele largou a cadeira e se agachou na minha frente. O movimento dele era sempre controlado, medido. A proximidade trouxe um calor que não tinha nada a ver com segurança; era mais antigo, quase uma lembrança. — Eu sei — disse ele, olhando firme. — A primeira vez marca. Machuca por dentro. Mas você aguentou. Aguentou firme, mesmo tremendo. — Não me senti firme — confessei, desviando o olhar, as palavras pesando. — Me senti quebrada. Pequena. Perdida. Kael sorriu, mas era um sorriso que parecia caber em dois mundos: um interno e outro duro de viver. — Quebrada? Eu sou feito de caco, Olivia. — Ele tocou minha mão. A pele dele era áspera, marcada por vida dura, e o toque parecia remendar por instantes. — Mas tô aqui. Sobrevivendo. Não é força não ter medo. É seguir, mesmo tremendo. Aquelas palavras foram um curativo bruto. Eu deixei minha respiração se acalmar pouco a pouco, sentindo que havia alguém ali disposto a dividir o peso com a quietude dele — e isso, por enquanto, bastava. O silêncio que se seguiu era pesado, mas não hostil. Era o tipo de silêncio que compartilha dor sem apressar palavra. Até que alguém bateu na porta: três toques curtos e precisos — era a senha. Kael levantou num pulo, a mão certeira indo na arma sobre a mesa. Abriu a porta com cuidado. NK entrou, suado, a camisa marcada de terra e poeira, respiração rápida. — Tá tudo sob controle por enquanto — disse NK, seco. — Recuaram. Mas o clima tá pesado. Muita gente nervosa. Tem rumor forte. Os dois trocaram um olhar curto, que valia mais que frase. Eu, sentindo o peso do momento, respirei fundo. — Leva ela pra casa da Júlia. Protege até eu resolver tudo — disse Kael, firme. A ordem foi só isso: imposição e cuidado. Naquele instante senti um impulso visceral. Levantei de repente e encarei os dois. — Não — falei, mais alto do que pretendia. — Eu quero ficar. Houve um silêncio que ruiu como gelo. Olhos viraram a mim em choque e preocupação. — Não é lugar pra você, Livi — respondeu Kael, a voz dura, a preocupação tingindo cada sílaba. — Aqui não é brinquedo. Seis passos em falso e tu some. — Talvez não fosse — rebati, sentindo o coração acelerar. — Mas depois do que eu vi no bar… não dá pra fingir que nada aconteceu. Eu quero entender. Eu quero ficar por perto, não só ser mandada pra um lugar seguro como se eu não pudesse escolher. Ele prendeu o ar por um instante, como quem tenta segurar o mundo sob controle. Vi conflito no rosto dele: a vontade de me proteger e o medo de me arrastar para o fogo que ele carregava. Os olhos dele, que no baile me perfuraram com curiosidade, agora amenizavam com cautela. — Se entrar, não tem volta — disse ele, quase sussurrando. — Isso não é cena de novela. É vida com custo. — Eu sei — respondi, com a calma que vinha de uma convicção dolorida. — E mesmo assim eu entro. Quando disse aquilo senti que uma linha foi cortada e outro caminho aberto. Era como admitir que eu já tinha cruzado a fronteira: não era mais só uma visita de fim de semana. Era decisão. Kael fechou os olhos por um segundo. Quando os abriu, um traço de desistência e proteção se misturou. — Tá bem — falou, rendendo-se à escolha que eu fizera. — Fica. Mas aprende as regras. Aqui, vacilo custa caro. Eu não prometo ser santo. Só prometo não deixar ninguém te fazer m*l de graça. — Não quero santo — respondi com convicção. — Quero alguém que me olhe de verdade. Ele sorriu num misto de verdade e sentinela. NK foi buscar algo no bolso, deu um aceno afirmativo; Júlia, que esperava do lado de fora, entrou na sala com os olhos marejados. Quando me viu, veio e me abraçou forte. — Eu falei que não te deixava — murmurou ela no meu ouvido. As horas seguintes foram de adaptação. Aprendi que ali o tempo tinha outro peso: as prioridades se mediam em termos de segurança, informação e rede. Kael me explicou, de forma dura e paciente, o que se podia e o que não se devia contar, quem eram os nomes que se evitava pronunciar em voz alta, o que fazer se fosse ouvido um som estranho no fim da madrugada. Às vezes, em suas explicações, ele soltava uma frase que mostrava a ferida que carrega: — Tem gente que acha que ser dono daqui é só mandar. Não é. É pagar preço todo o dia. — E eu via nos olhos dele o cansaço de quem paga. Eu tentei absorver cada palavra, porque sabia que aprender as regras não era só por mim — era por quem estivesse disposto a cuidar. Havia noites de conversas ásperas e outras surpreendentemente domésticas: quem ia varrer a laje, quem pegava o gás emprestado, qual rota usar pra evitar vigília. Em cada detalhe prático, havia um cuidado de quem organiza uma batalha. E no meio dessas lições veio também a conversa maior: o que cada um podia suportar. Uma noite, sentados no carro velho encostado numa rua com pouco movimento, Kael me virou pro rosto e falou sem rodeios: — Eu não quero que tu se perca por minha causa. Se tu se perder, eu não me perdoo por pouco — ele disse e a voz ficou chata, sincera. — Amor não é cadeia. É escolha. A frase me cortou e me fez pensar. Eu não queria ser peso; não queria ser desculpa. Queria ser escolha. A partir daquele momento, cada gesto meu passou a ser medido: eu queria estar ao lado dele sem que isso significasse deixar de ser eu. Os dias seguintes mostraram a consequência da decisão. A favela ficou em alerta; rumores corriam como vento. Havia olhares a mais quando eu caminhava com Kael; havia perguntas sussurradas nos botecos; e, mais doloroso, havia a certeza de que minha presença poderia acender mais do que proteger. Vi no rosto de alguns dos homens do bonde o pesadelo de que uma mulher de fora traga complicação, e isso me cortoupor dentro. — Vai ser um aprendizado duro — comentou NK numa dessas tardes, passando a mão nos cabelos. — Mas se tu quiser, a gente segura as pontas. E eu queria. Queria porque, pela primeira vez em meses, eu não tinha a sensação de que estava só sobrevivendo. Estava, lentamente, escolhendo. Mesmo assim, havia medo. Às vezes, quando o silêncio me pegava, eu voltava àquela noite no baile — o primeiro olhar dele, a forma como o mundo ao redor havia afinado no momento em que os nossos olhos se encontraram. Pensei no início: eu fui àquela festa pra fugir do funeral, procurar ar. Nunca imaginei que o ar me traria um rosto que mudaria a paisagem inteira. Entre o silêncio e o fogo eu decidi ficar. Não sabia ainda se era coragem ou burrice; talvez fosse as duas coisas. Só sei que, a partir dali, cada passo teria consequência — e cada conversa um peso que não cabia só em mim. Mas eu estava pronta para ouvir, aprender e pagar o preço se fosse preciso. Porque já tinha sido vista por ele, e isso, estranhamente, me fez querer ser vista por inteira.
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