📖 Capítulo 4 – Reencontro Inesperado

1124 Words
📖 Capítulo 4 – Reencontro Inesperado Narrado por Olivia  Já fazia três dias desde o baile. Três dias desde que aquele olhar atravessou o meu peito como faca quente em manteiga. Desde que a voz rouca dele, chamando “princesa”, grudou na minha pele feito tatuagem invisível. Eu tentei me distrair. Juro que tentei. Júlia percebeu na hora que algo tinha mudado em mim. Ela sempre percebe. Me arrastou pra praia no domingo, enfiou uma caipirinha na minha mão, botou música alta, me fez rir de bobagem. Na segunda, inventou um rolê com uns amigos, gente que eu m*l conhecia, só pra me tirar de casa. Na terça, tentou até me colocar pra dançar na sala, de shortinho e descalça, rindo e dizendo que ninguém merece sofrer em silêncio. Eu ria. Eu até fingia que tava presente. Mas por dentro, o vazio era maior que tudo. Nada preenchia o buraco que Kael deixou em mim com aquele sorriso de canto e aqueles olhos que pareciam ler o que eu não dizia. Naquela tarde, depois de mais uma tentativa frustrada de parecer feliz, eu larguei o celular na cama e respirei fundo. — Vai onde, doida? — Júlia perguntou, largada no sofá, a cara cheia de máscara facial verde, as pernas esticadas em cima de uma almofada. — Ver o pôr do sol. Preciso respirar. Ela ergueu uma sobrancelha. — Respirar? Sozinha? Lá em cima? — Prometo que não me meto em encrenca. Só… silêncio, Ju. Só quero ficar em silêncio. Ela bufou, tirando um fone do ouvido. — Vai com Deus, mas se tu sumir, eu subo esse morro gritando teu nome, entendeu? Sorri fraco e balancei a cabeça. Peguei minha mochila, botei uma garrafa d’água e subi. O caminho era íngreme, cheio de becos estreitos, degraus improvisados e crianças correndo no meio da rua, soltando pipa. O sol já começava a se inclinar, tingindo as paredes grafitadas com tons de laranja e dourado. O calor subia do chão de cimento, e cada passo parecia me levar não só mais alto, mas mais longe de tudo que eu queria esquecer. Quando cheguei no alto, respirei fundo. A vista era absurda. O mar, lá longe, se misturava com o céu em tons de rosa e lilás. A favela, embaixo, parecia outro mundo — barulhenta, viva, mas pequena vista dali. Sentei no chão quente da laje, abracei os joelhos e deixei o vento bagunçar meu cabelo. Pela primeira vez em dias, senti uma trégua dentro de mim. Foi então que ouvi passos. Pesados. Firmes. Cada batida contra o concreto parecia anunciar quem era, antes mesmo que eu virasse. — Achei que visita não ficava muito tempo por aqui — a voz grave cortou o silêncio, e meu coração quase saiu pela boca. Virei devagar. E lá estava ele. Kael. Encostado na parede, braços cruzados, a sombra do pôr do sol recortando a silhueta dele. O olhar sereno, mas profundo. O tipo de olhar que não precisa pedir licença pra entrar dentro de você. Engoli em seco. — Eu disse que era visita. Nunca disse que seria rápida — respondi, tentando parecer tranquila, mas minhas mãos suadas me entregavam. Ele descruzou os braços devagar e andou até mim. Cada passo parecia calculado, como se até o chão tivesse respeito. Sentou ao meu lado, sem dizer nada de imediato. Só olhou pro horizonte, respirando fundo. O silêncio dele não pesava. Era diferente. Um silêncio que até acalmava. — Tem gente que nasce aqui e nunca olha essa vista — ele disse, por fim, com a voz baixa. — Você já viu mais em três dias do que muito cria vê a vida toda. Segui o olhar dele. O céu agora era um espetáculo de cores. — Às vezes, quem vem de fora enxerga o que os de dentro esquecem — falei, sentindo o peso das próprias palavras. Ele assentiu, sem me olhar. Ficamos assim por alguns minutos. Eu, com o coração acelerado; ele, com uma calma que parecia esconder batalhas demais. Até que ele perguntou: — E o que você veio esquecer aqui em cima, Olivia? Meu peito apertou. O jeito que ele disse meu nome, arrastado, firme, quase carinhoso, me desmontou. — A dor. O peso. — respirei fundo. — Meu pai… minha vida antes disso aqui. Tô cansada de viver pisando em ovos, de engolir tudo quieta. Aqui, mesmo com o perigo, eu respiro. Kael virou o rosto devagar. Os olhos dele bateram nos meus como um soco suave, mas certeiro. — Aqui também tem dor. — ele disse, baixo, mas com firmeza. — Mas a gente aprende a transformar. Olhei pra ele, confusa. — Transformar no quê? Ele respirou fundo. O vento balançou a camiseta dele, revelando uma cicatriz na clavícula. — Em sobrevivência. — fez uma pausa, como se escolhesse cada palavra. — E às vezes… em algo mais. Fiquei em silêncio. O coração descompassado, a mente tentando acompanhar o que eu estava sentindo. Um grupo de crianças riu mais abaixo, soltando pipa. Uma moto passou roncando pela viela, carregando duas pessoas. O som distante do funk se misturava com o canto dos pássaros voltando pro ninho. Tudo era movimento. Mas entre eu e Kael… tudo era pausa. Ele então virou um pouco mais o corpo pra mim. — Você não parece só uma visita. — falou, firme. — O jeito que olha esse lugar… não é de quem só veio conhecer. — E sim de quem? — perguntei, a voz quase falhando. Ele deu um meio sorriso, sem humor. — De quem tá fugindo. Ou se encontrando. Meu estômago gelou. Porque era exatamente isso. Abri a boca pra responder, mas ele ergueu a mão de leve, como se dissesse “não precisa falar”. Ficamos em silêncio de novo, e dessa vez, eu senti que ele entendia mais de mim do que eu mesma. O céu escurecia devagar. As primeiras luzes da favela acendiam, piscando como estrelas no meio do concreto. Kael suspirou. — Olivia, aqui em cima parece bonito. Mas lá embaixo… o jogo é sujo. Cê tem certeza que quer ficar? Mordi o lábio, sentindo a pergunta como faca na garganta. Eu não tinha certeza de nada. Mas o que eu sentia naquele momento, perto dele, era real demais pra negar. — Eu só sei que aqui… eu respiro. — respondi, simples. Ele me olhou mais uma vez. E nesse olhar tinha aviso, tinha dor, tinha história. Mas também tinha algo novo. Algo que, pela primeira vez, parecia não ser só dele. E ali, entre o céu colorido e o barulho da favela, eu percebi: Kael não era mais só o homem do baile. Ele agora era parte do meu silêncio. Parte da minha fuga. Parte de mim.
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