đź“– CapĂtulo 14 – Nova Vida no Rio
Narrado por Olivia
Chegar ao Rio de vez foi diferente de tudo que eu já tinha vivido. NĂŁo era sĂł uma viagem. NĂŁo era sĂł uma fuga. Era o começo da minha vida, um recomeço que eu nunca tinha ousado imaginar. Cada curva da estrada, cada montanha no horizonte, parecia sussurrar que agora eu podia ser eu mesma, sem medo, sem correntes invisĂveis prendendo meu coração.
A paisagem lembrava aquela primeira visita: céu limpo, sol vibrando forte, becos cheios de vida, mas eu era outra. Dessa vez, eu vinha pra ficar. Eu não era mais a garota assustada, que se escondia atrás de portas trancadas. Havia coragem misturada com medo, mas era um medo que impulsionava, que fazia meu peito bater mais rápido, lembrando-me que eu estava viva e que podia escolher.
A viagem foi longa, mas tranquila. Kael dirigia com uma mĂŁo firme no volante e a outra entrelaçada na minha, como se aquele gesto pudesse me ancorar, me proteger de tudo que já tinha me machucado. O rádio tocava um samba antigo, e a estrada parecia embalada no ritmo do nosso silĂŞncio confortável. Cada quilĂ´metro percorrido diminuĂa a distância entre o passado doloroso e a vida que eu estava prestes a abraçar.
— Tá nervosa? — Kael quebrou o silêncio sem tirar os olhos da estrada.
— Um pouco — admiti, olhando pela janela. — E se eu não me encaixar?
— Você já se encaixou — ele respondeu, com aquela convicção que sempre me deixava mais forte. — Quando você me olhou naquele baile, você já era do Rio. Só não sabia ainda.
Sorri, sentindo meu coração apertado. Ele sempre tinha uma resposta que tornava tudo mais simples, mais leve.
— E você? O que pensou quando me viu pela primeira vez? — perguntei, lembrando da tensão, do medo, do impacto daquele primeiro encontro.
— Que ia dar merda. Da boa. Mas merda. — Kael deu uma risada baixa, daquelas que vêm do peito. — Nunca achei que alguém como você ia parar num lugar como o meu. Mas agora que tá aqui, não quero que vá embora nunca mais.
— Que declaração mais romântica, hein? — brinquei, dando um soquinho leve no braço dele.
— Ué, você queria mentira ou sinceridade? — respondeu, rindo.
Nos olhamos por um segundo longo demais. Foi ali, naquele instante, que soube: estava exatamente onde devia estar. Que aquela vida, com todos os riscos, desafios e surpresas, era minha escolha agora.
Quando chegamos, Júlia nos esperava no portão com um sorriso enorme, braços abertos, como se pudesse me abraçar e me proteger de todo o mundo.
— Cê é doida mesmo, Livi! — gritou, correndo até mim. — Mas agora é oficial: carioca por adoção!
Me joguei no colo dela, e ela girou comigo como se tivéssemos dez anos de novo. Rimos até perder o fôlego, sentindo que aquela amizade era uma âncora, um pedaço de normalidade em meio à tempestade que tinha sido minha vida até ali.
— Sua cara tá mais leve — comentou, me olhando nos olhos. — Parece que tirou uma tonelada das costas.
— Talvez eu tenha tirado mesmo — respondi, abraçando-a de novo, sentindo que finalmente podia me soltar, respirar e perceber que o futuro era meu.
Ela me levou até a casa da avó de Kael. Simples, cheia de plantas e com uma energia que dava vontade de sentar na varanda e ouvir o tempo passar.
— Vó Lurdes tá na igreja, mas deixou tudo arrumado pra você. Só pediu pra avisar que aqui “não tem frescura, mas tem benção”. — Júlia piscou, e a gente riu, sentindo que aquele lugar já estava se tornando lar.
Nos primeiros dias, tudo era estranho: o sotaque puxado, os apelidos que brotavam do nada, o hábito de cumprimentar todo mundo com abraço, até quem eu nunca tinha visto. Cada detalhe do Rio me fazia sentir pequena, mas ao mesmo tempo viva.
Júlia foi meu GPS humano. Ela me ensinou o caminho mais curto até o mercadinho, me apresentou o nome do cachorro de cada vizinho, contou quem dava fiado sem reclamar, e ainda me alertou sobre as regras não escritas do bairro.
— Se a Dona Elza espirrar, o morro inteiro fica gripado no dia seguinte — disse ela, apontando discretamente para a vizinha no portão.
— E ela sabe de tudo, né? — perguntei, rindo.
— Menina, ela já deve saber até que cê chegou antes de tu entrar no carro.
Com o tempo, fui me encaixando. Criando laços. Ganhando apelidos carinhosos que antes me pareceriam estranhos, mas que agora me faziam sentir parte de algo maior. E a cada vez que Kael me olhava daquele jeito, como se eu fosse única no mundo, sentia que tinha feito a escolha certa.
Descobri que o Rio tinha mais do que beleza e caos: tinha gente que cuidava da gente, mesmo que a gente fosse estranho Ă cidade. Cada vizinho cumprimentando com sorriso, cada criança correndo na rua, cada cheiro de cafĂ© fresco e pĂŁo assando na padaria me fazia perceber que era possĂvel reconstruir minha vida.
Narrado por Kael
Quando vi Olivia chegar com aquela mala, cabelo preso de qualquer jeito, mas com aquele sorriso que nĂŁo precisava de armadura, senti um orgulho que me esquentou o peito. Ela escolheu isso. Escolheu a gente. Escolheu coragem em vez de medo.
E quando a puxei pra mim e beijei ali mesmo, encostado no carro, senti o mundo parar por um segundo. Não era só desejo. Era cuidado, era promessa, era futuro. Cada gesto, cada toque, dizia que estávamos juntos e que nada nem ninguém poderia nos separar.
Acompanhar ela se adaptando foi como ver uma flor brotar em cimento. Havia uma força bonita em cada passo que ela dava, em cada sorriso que se abria mais leve, mais solto, mais confiante. Mas eu sabia que nem todo mundo ia entender de cara.
Na padaria, seu Janderson me chamou no canto, olhando de maneira cĂşmplice:
— A branquinha é sua agora, chefe?
— Ela não é minha. Ela é dela. Mas tamo junto, sim. — Respondi firme.
Ele riu de lado, como quem entende mais do que fala.
— É... ela tem olhar de quem aguenta o tranco. Só cuida direitinho. Mulher que muda de vida por amor... essa merece chão firme.
— Pode deixar, seu Janderson. Aqui, ela vai ter isso. — A proteção e o cuidado que eu sentia por ela eram sentidos por todos que agora a conheciam.
Mais tarde, JĂşlia apareceu em casa, pĂŁo doce na mĂŁo, lĂngua afiada e sorriso travesso:
— Você viu a coragem da Olivia, né? — falou, enquanto mordia o pão. — Largar tudo... por você! Se tu fizer besteira, eu mesma te dou uma voadora.
— Eu sei, Júlia. Por isso que eu não vou errar. — Acreditei firmemente na força dela, e na nossa união.
Ela me encarou sério por dois segundos, depois deu aquele sorriso cúmplice:
— Boa sorte então, romântico do morro.
Agora, a casa da minha avó tinha risada de mulher, cheiro de café fresco e energia de recomeço. E toda vez que ela me olha com aquele brilho no olhar, penso:
“Se essa mulher teve coragem de mudar o mundo por ela, então eu vou mover o meu por ela também.”
Porque agora o Rio Ă© o mundo dela.
E ela Ă© o meu.