📖 CapÃtulo 19 – Abrigo
Narrado por Kael
Carreguei Olivia no colo até minha casa. O peso dela não era fÃsico — o corpo era leve, quase frágil demais — mas sim emocional. Cada passo parecia carregar não só ela, mas o fardo de tudo o que tinha acontecido. As vielas da quebrada, que eu conhecia de cor, de repente pareciam diferentes. Mais estreitas, mais sufocantes. Cada janela que se abria de leve, cada rosto que espiava por trás da cortina, me lembrava: todo mundo tava vendo. A favela inteira respirava tensão, como se a história dela já tivesse se espalhado no ar.
Mas no meu peito nascia um juramento a cada batida: eu ia proteger ela. Não importava quem fosse o inimigo — polÃcia, rival, o próprio pai. Eu não ia deixar nada chegar perto dela de novo.
Quando empurrei o portão, ouvi o rangido do ferro misturado ao alÃvio que eu sentia. Como se até a rua soltasse um suspiro. Lá dentro, o silêncio era estranho. A quebrada sempre tinha um barulho constante — rádio de pilha, conversa atravessada, criança brincando. Mas ali, só o vazio. E esse vazio me fez perceber como Olivia tremia no meu colo, leve como se fosse feita só de vento e medo.
Deitei ela na cama, ajeitei o travesseiro e tirei meu casaco. Coloquei sobre os ombros dela, que ainda tremiam. O casaco parecia enorme nela, como se quisesse esconder suas dores também.
— Quer que eu chame alguém? — perguntei, quase sussurrando. — Dona Lúcia, aquela véia que cuida das crianças... ela entende dessas coisa de susto. Reza, faz chá, bota a mão e o medo vai embora.
Os olhos de Olivia se ergueram devagar. Estavam cheios de sombra, mas sem lágrima. Era pior: a dor dela tava seca, como se tivesse sugado tudo por dentro.
— Só fica aqui... — pediu, quase implorando.
Me sentei do lado dela. A cadeira de madeira rangeu, mas eu não me importei. Peguei a mão dela, apertando de leve, como quem segura um vidro prestes a trincar.
Narrado por Olivia
Minha cabeça era um redemoinho. Eu via o rosto do meu pai o tempo todo, como se estivesse estampado no teto, na parede, na sombra do quarto. A voz dele ecoava dentro de mim, carregada de ameaça. A dor não era só do que ele tinha feito, mas do que eu finalmente enxergava: ele nunca ia mudar.
— Eu achava que ele só era controlador, Kael... — minha voz falhou. — Achava que era mania de mandar em tudo. Mas não... ele me quer como se eu fosse objeto. Se não consegue isso, ele destrói tudo em volta.
O olhar de Kael endureceu. Ele fechou a cara de um jeito que dava medo. O maxilar dele travou, como se ele tivesse engolindo um grito.
— Ele vai pagar por isso. — disse, cada palavra cuspida como um tiro. — Eu juro.
Meu peito apertou. Levantei a mão e bati leve no peito dele, como quem tenta apagar um fogo.
— Eu não quero mais sangue, Kael. — falei, firme, mesmo com a voz quase sumindo. — Eu só queria viver. Só queria ser livre.
Ele respirou fundo, abaixou a cabeça até ficar na altura dos meus olhos.
— E vai ser. — disse, firme. — Nem que eu morra por isso, Olivia. Vai ser.
Um silêncio tomou conta. Mas não era vazio. Era pacto. Era promessa que não precisava de assinatura.
Narrado por Kael
Esperei até ela adormecer. O corpo dela se soltou aos poucos, a respiração ficando leve. Só então eu me levantei, ajeitei o casaco de novo nos ombros dela e saÃ.
A sala cheirava a café velho e fumaça de cigarro. Menor e NK já estavam lá, as caras fechadas. O Zóio, novato, chegou depois. O jeito dele sempre inquieto, olhando pros lados como se o chão fosse abrir.
— Chefe... — começou, sem enrolar. — O X9 é o Celso.
O nome saiu como veneno.
— Aquele que cuidava da entrada do beco do campo. — continuou. — Caguetou geral. A gente já pegou ele.
Cruzei os braços, sentindo o sangue esquentar.
— Avisa o tribunal do morro. — falei. — Mas antes... eu quero olhar na cara dele. Quero ver se tem coragem de repetir olhando nos meus olhos.
NK se mexeu na cadeira, desconfortável.
— E o pai dela? — perguntou, baixo.
— Já botei gente na cola dele. — respondi. — Cada passo que ele der, eu vou saber. Mas não adianta ir até ele agora. Antes... a Olivia precisa tá bem.
Menor assentiu. Ele entendia. Sem ela forte, eu não tinha cabeça pra nada.
Narrado por Júlia
Passei a manhã ao lado de Olivia. Preparei chá de camomila, ajeitei o quarto improvisado que Kael tinha feito. Tirei o pó dos móveis, como se isso pudesse espantar também as sombras que ainda grudavam nela.
Quando ela acordou, parecia mais calma. Mas os olhos... os olhos estavam fundos, como se tivesse chorado a vida inteira sem derramar lágrima.
Sentei na beira da cama.
— Ele tentou te tirar de mim. — falei, com raiva engasgada.
Olivia desviou o olhar.
— Ele tentou destruir tudo. Mas não conseguiu.
Segurei a mão dela com força.
— Sabe por quê? — perguntei. — Porque cê encontrou gente que te ama. Aqui, no meio desse caos, cê não tá sozinha.
Ela abriu um sorriso pequeno, mas cheio de verdade.
— Você e o Kael... são minha famÃlia agora.
Meu coração se apertou. FamÃlia não era só sangue. FamÃlia era quem ficava quando o mundo tentava arrancar tudo de você.
Narrado por Kael
Voltei pro quarto e vi Olivia de pé, encostada na janela. O vento bagunçava o cabelo dela. Ela parecia frágil, mas ao mesmo tempo, tinha uma força ali que eu não tinha visto antes.
— Cê devia tá deitada. — falei, tentando soar duro.
Ela virou, encarou meus olhos.
— Não quero ser só cuidada. Quero ajudar. Quero ficar forte.
Cheguei mais perto, devagar.
— Então fica. Mas do meu lado. — disse. — Porque se tem uma coisa que aprendi nessa vida... é que quem a gente ama, a gente protege.
O silêncio pesou. Eu respirei fundo.
— E eu... eu te amo, Olivia.
As palavras saÃram pesadas, mas libertadoras. Como se estivessem guardadas dentro de mim há anos.
Ela deu dois passos, devagar. Os olhos marejados, mas firmes. Se jogou no meu peito, me abraçando inteira. O corpo dela colado no meu, o coração batendo rápido, misturado ao meu.
E naquele abraço, mesmo depois do inferno que a gente tinha passado, eu soube: a paz dela era a vida que eu queria construir.
E dessa vez, não ia ter pai, não ia ter passado, não ia ter bala capaz de roubar isso da gente.