📖 Capítulo 20 – O Julgamento

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📖 CapĂ­tulo 20 – O Julgamento Narrado por Menor A quebrada nĂŁo dormiu depois do ataque. As ruas que antes transbordavam samba e conversa agora tinham o silĂȘncio estranho daqueles dias que o vento corta. Todo mundo precisava de resposta. Justiça, pra quem vive aqui, nĂŁo Ă© esperar papel raso dizer o que aconteceu — Ă© tomar a rua e botar a verdade na luz. O tribunal foi montado no campinho da quadra velha, o mesmo chĂŁo que a molecada usava pra jogar futebol e que vira palco quando a comunidade precisa acertar contas. As traves estavam meio tortas, o alambrado remendado, mas aquilo tinha histĂłria suficiente pra atravessar geraçÔes. Era ali que se resolvia o que a rua nĂŁo deixa morrer. Kael mandou fechar os acessos. NinguĂ©m subia nem descia sem autorização. As bocas foram cobradas, os olheiros controlados. Quem vinha de fora era rir de nervoso: a favela fechou a porta e trancou as chaves. O cĂ©u prometia chuva, um calor Ășmido que grudava na pele e fazia todo mundo suar a ansiedade. Celso chegou trazido por dois soldados — nĂŁo dos de farda, mas dos que o morro cria: caras do bonde que nĂŁo perguntam e executam. Rosto inchado, marca de chute, roupa suja, olhos arregalados como quem foi dormir e acordou num pesadelo. A favela se juntou ao redor: homens com cara de quem jĂĄ viu demais, mulheres com pano na cabeça, velhos com a memĂłria curta mas juĂ­zo enorme. As crianças foram mandadas pra longe, e quem estava grĂĄvida, ficou em casa — respeito, ali, era regra. Narrado por Kael Subi na mureta do campinho. O corpo nu de arma, camisa preta colada no peito, shorts, calçado simples. Eu podia ter exibido fuzil, mas sabia que minha presença e meu olhar jĂĄ bastavam. Quando vocĂȘ comanda o territĂłrio, a autoridade nĂŁo precisa de metal — ganha força pelo que vocĂȘ faz, pelo que deixa de fazer, e pelo que promete em silĂȘncio. — Esse homem aqui... — falei alto, apontando pro Celso, que m*l conseguia se manter de pĂ© — ...vend eu o morro. Passou informação pra quem veio com fuzil, com granada, pra matar a gente. Pra matar mulher. Pra matar criança. Pra matar a Olivia. Um murmĂșrio percorreu a plateia como vento. Alguns cuspiram no chĂŁo. Outros fecharam os olhos. Havia mais do que Ăłdio — havia dor. — E por quĂȘ? — continuei, deixando a pergunta arder no ar. — Por dinheiro. Por covardia. Por ser fraco. Desci da mureta e fui atĂ© ele. Cheguei perto o suficiente pra sentir o cheiro dele — suor barato, medo. Queria olhar nos olhos do traidor e, ao mesmo tempo, evitar que ele achasse nos meus qualquer traço de dĂł. — Tu conhece as regras. Tu cresceu aqui. Comeu no prato da quebrada. E mesmo assim... traĂ­ste. — Minha voz foi baixa, fria. Celso tentou falar. Gaguejou, buscou desculpas como se buscasse ar. — Foi o pai dela! Ele me pagou! Eu juro! Eu sĂł pensei que dava pra sumir! — m*l respirou entre as palavras. — JĂĄ começaste do zero. Agora tu vai terminar no fim. — respondi, sem hesitar. Narrado por NK Kael nĂŁo precisou ordenar. A presença dele falou por si. Ele circulou o Celso devagar, cada passo medido, como um caçador que escolhe o ponto certo. O povo olhava, os olhos brilhando entre o medo e a sede por justiça. — A quebrada fala — Kael disse, voltando-se para a multidĂŁo. — CĂȘs acham que esse traidor merece chance? Um grito saiu da boca de um tio de camisa jeans: — NÃO! — CĂȘs acham que ele merece perdĂŁo? — NÃO! — CĂȘs querem ver justiça? — QUEREMOS! A resposta foi uma massa sĂł, um rugido que ecoou nas vielas. Ali a decisĂŁo jĂĄ estava tomada; o rito precisava do gesto, do sĂ­mbolo, do corte que marcaria o aviso. Kael entĂŁo pegou o facĂŁo do NK — o mesmo facĂŁo que meu irmĂŁo usara antes de tombar por esse chĂŁo — e ergueu a lĂąmina com a solenidade de quem sabe que a violĂȘncia tambĂ©m Ă© linguagem no nosso mundo. — EntĂŁo que seja como sempre foi. Olho por olho. Sangue por sangue. — Kael murmurou para si, mas todo mundo ouviu. Narrado por Menor O golpe nĂŁo foi um sĂł. NĂŁo foi rĂĄpido. NĂŁo foi limpo. Foi bruto, humano, necessĂĄrio segundo as regras que aquele chĂŁo impĂ”e. Celso praguejou, gritou, suou, implorou. A cena ficou marcada na terra: sangue que se espalhava e era absorvido pelo mesmo chĂŁo que jĂĄ tinha enterrado tanta coisa. Algumas pessoas tentaram fechar os olhos; outras, vomitaram na beira do campinho. Era feio. Era duro. Era justiça do morro — antiga, crua, sem tribunais de papel. Quando o corpo finalmente cedeu e a respiração ficou mansa, deixamos ali. Um aviso. Uma lição. O silĂȘncio que seguiu foi pesado como chumbo. A favela olhou, anotou, respirou. Saber que havia consequĂȘncia fez o clima mudar. Lealdade, naquele dia, deixou de ser palavra solta. E Kael? A figura dele mudou naquele momento. NĂŁo foi sĂł pela ação. Foi pelo que ficou por trĂĄs: o olhar, a frieza, a certeza de quem jĂĄ nĂŁo aceita traição. Rumores iam começar a correr: “Demonio Kael” — uns diziam com medo, outros com respeito. Narrado por Olivia Ouvi tudo de longe. NĂŁo me deixaram ver. JĂșlia apertou minha mĂŁo tĂŁo forte que eu quase senti os ossos. Me colocaram atrĂĄs de um pano, num lugar onde ninguĂ©m sabia que eu estava lĂĄ. Eu tremia no começo — lembra do salĂŁo, do barulho, de correr sem destino — mas um ponto de calma cresceu quando ouvi a voz dele. A voz do Kael cortou o ar, e eu entendi. Ele nĂŁo Ă© sĂł meu porto. Ele Ă© minha guerra tambĂ©m. Quando o silĂȘncio caiu depois do estrondo, eu percebi que tinha mudado. NĂŁo por ter assistido Ă  cena — Deus me livre — mas porque ali, no alto do morro, ao som daquela punição ancestral, eu entendi a dimensĂŁo do que escolhi. Ele protege com ferocidade. Ele punia com rigor. E eu? Eu era parte de uma vida que agora tinha consequĂȘncia. JĂșlia enxugou o meu rosto com o dedo, leve, como se dissesse que ainda existe maciez depois de tudo isso. Eu olhei para o morro, para as luzes que tremulavam, e senti uma coisa estranha: medo misturado com alĂ­vio. Medo do preço que se paga, alĂ­vio por saber que alguĂ©m nĂŁo me deixaria mais sozinha. Naquele dia, aprendi que justiça do morro Ă© lei feita de sangue e palavra. E que, no fim das contas, amar alguĂ©m ali Ă© tambĂ©m aceitar o que o amor traz: abrigo, guerra e escolha.
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