Capítulo 2

2109 Words
Seus lábios se curvaram em um sorriso satisfeito ao ouvi-la. Por um momento, temeu que ela houvesse esquecido do que havia ocorrido, das lágrimas aos murmúrios em seus braços, mas agora, sentindo o olhar dela sobre sua pele – mesmo que não fosse capaz de vê-la -, ele tinha a certeza de que ela não havia esquecido.   — Essa é a sua segunda chance — disse Astaroth sem rodeios, mas ao notar o silêncio que tomou o cômodo, assim como a movimentação de Noire, passando o peso de um pé para o outro, completou com certa malícia — sinto decepcioná-la, my lady. Pensei que o inferno a agradaria... ou melhor, que desejava qualquer coisa a permanecer naquele lugar. "Não foi por isso que chegou a tentar se matar?" quase alfinetou. As palavras não ditas pareciam preencher o ar, tão nitidamente que a respiração da garota pareceu cessar. — Você está certo — ela disse por fim — qualquer coisa é melhor que aquele lugar. Suas palavras foram tão ácidas e pesadas como os cortes que havia feito em seus pulsos. Astaroth os havia sentido e tratado ao chegar no inferno. Suas mãos estavam cobertas pelo sangue dela e seu corpo tremia enquanto ouvia os batimentos se tornarem mais e mais lentos. Seus passos foram tão longos quanto ele conseguiu e por poucos segundos não chegou tarde demais. O corpo dela estava tão frágil, tão pequeno e magro, que ele podia sentir os ossos em suas mãos. — Então... espero que nosso contrato dê bons frutos, my lady — ele sussurrou, deixando que as sombras do cômodo o guiasse até ela e com um cuidado quase teatral, tomou uma de suas mãos com delicadeza, depositando um beijo em sua tez pálida. — Não gosto de apelidos — ela respondeu, retirando a mão de forma ríspida. "Tão meiga" ele pensou contendo o riso para si. — Oh! Certamente tentarei me recordar disso, my lady — disse piscando os olhos de forma demorada, enquanto seus lábios se curvavam para cima em um sorriso debochado. Ele pode ouvir enquanto ela trincou o maxilar, os dentes rangendo e o calor em sua pele. — Apenas... diga o que quer. Seja objetivo. — Ela rosnou entre dentes, parecendo não se preocupar por estar na presença de um ser que nunca antes havia se deparado. Aquilo beirava a fascinação de qualquer infernal.    — Se torne meu arauto — ele respondeu com um sorriso — lute por mim, viva por mim. Seja meus olhos.                                                                                          ☽☀☾   As palavras do infernal haviam sido egoístas sem sombra de dúvidas e ela poderia negá-lo, mas o que havia do outro lado para ela? O que havia lá fora a esperando? Nada. — Você é uma garota estúpida mesmo! Não vai fazer nada útil na merda da sua vida? — sua mãe gritava enquanto seu rosto sangrava — acha mesmo que eu vou cair nesse teatrinho? A sua vida é perfeita! Eu devia ser a pessoa a estar doente! Eu tenho que te aguentar. Ela sorriu com a lembrança. Um sorriso que não alcançou seus olhos – algo quase comum para ela –, mas dessa vez, havia uma mão estendida à sua frente. “A sua alma é o preço” a voz familiar a lembrou, mas de que lhe valeria uma alma quebrada? — É tudo? Lutar por você? Viver por você? Ser seus olhos? — a voz altiva e fria, deixava para trás qualquer sinal da dor que poderia sentir. Se o vazio a quisesse, ela se daria a ele. — É tudo — ele respondeu, os olhos de um marfim profundo e vivo, permaneciam belos e pareciam se fixar em seus olhos negros. Ela engoliu em seco, ao ver o rosto dele, agora livre de sorrisos. Lívido e sério. — Então... eu serei seus olhos. Com as palavras proferidas, ele suspirou. Seus olhos se fecharam e Avalon – de quem Noire havia esquecido da existência –, se colocou entre ela e o infernal. — Isso vai doer — Avalon sussurrou e antes que Noire pudesse responder, seu corpo foi atingido por algo além da compreensão. A palavra dor não fazia jus ao que ela sentiu percorrer por seu corpo. Como se fogo vivo a envolvesse como serpentes, dançando por seu corpo e a fazendo gritar. Seus músculos retesaram-se como se desejassem fugir de sua pele. Seu sangue fervia nas veias e sua voz se transformou em algo quase gutural enquanto ela gritava e urrava de dor. — Aguente — uma voz que ela pensou ser de Avalon, murmurou. Os ossos de seu corpo estalavam, como madeira queimando em uma lareira. Então, aconteceu. Seus olhos, mesmo abertos, foram engolidos pela escuridão. Uma escuridão sem fim, consumida pelo frio e pela dor. E lá, no centro de toda aquela escuridão, havia um ser retorcido e quebrado, com tantas rachaduras pelo que um dia foi uma forma humanoide, que era digno de pena. Seu rosto estava escondido entre as pernas e ele murmurava como se sentisse medo de ser machucado. — Me ajude... — o ser sussurrou e no meio da escuridão, ela se moveu, com uma mão que não conseguia ver, estendida para aquela coisa. — Me toque... me abrace... me ajude... — o ser continuou a murmurar. Está tudo bem, ela queria dizer. Eu vou te ajudar, mas nem mesmo um sussurro escapava de seus lábios. — Me ajude... — a coisa retorcida choramingou e então, uma voz murmurou ao seu ouvido.   — Deplorável... não concorda? Sua alma se tornou realmente deplorável. Sua alma. Aquela coisa perdida no meio da escuridão, abraçada às próprias pernas choramingando por ajuda, era sua alma. Aquela coisa quebrada, retorcida. Por que mesmo sabendo disso, seu peito não doía? Por que não havia lágrimas? Ela queria saber, mas a voz apenas riu enquanto algo a impulsionava para a coisa retorcida brilhando no meio da escuridão. — Abrace sua alma. Se conecte a ela... e não se quebre. Coisinha deplorável. Ela o fez. Com braços estendidos e dedos gélidos, ela abraçou sua alma. Juntas, elas gritaram em uníssono por toda a sua dor. Não somente a dor que se estendia por seu corpo após as palavras de Avalon, mas a dor que crescia a cada rachadura daquela alma quebrada. Cada mísera fagulha de um passado doloroso do qual ela já não recordava.                                                                                          ☽☀☾   Noire despertou em sua cama horas depois. Um sol n***o tornava os dias no inferno mais escuros que as noites e enquanto o céu tomava uma tonalidade bordô, ela praticamente saltou de sua cama e verificou os aposentos. Não havia sinal de Avalon, muito menos do infernal. Em seu lugar, havia tatuagens brilhando por sua pele pálida. Tatuagens douradas como as dele que subiam por seu pescoço e desciam por entre seus s***s. As lembranças de sua alma e do que havia visto naquela escuridão, fizeram os pelos de seus braços se arrepiarem e ela agradeceu pela brisa gelada que entrava por sua janela. O clima no inferno parecia sempre agradável – por mais irônico que pudesse ser –, diferente do calor que a consumia nos verões de onde morava. Ela caminhou até a janela e se debruçou sobre o parapeito, deixando que o vento gelado a atingisse. E então, observando o jardim que se estendia ao redor do castelo, ela reparou no qual belo o inferno parecia ser. As árvores do jardim eram negras como as montanhas que se estendiam ao longe e sua folhagem se assemelhava a jade lapidada. Não havia guardas, empregados ou pássaros, o que dava ao castelo um ar solitário. Mas ao longe, dava para se ver casas pequenas além das muralhas do castelo. Os telhados eram pontudos e avermelhados e as árvores ali, pareciam uma aquarela de cores, pintadas de forma magnífica pelo artista entusiasmado em provar seus novos tons e misturas. Era difícil não pensar que havia enlouquecido de vez, mas não era r**m estar ali. Na verdade, era como experimentar a calmaria em meio a uma tempestade.  A porta do quarto se abriu de repente a fazendo ter um pequeno sobressalto, enquanto Avalon entrou. — A bela adormecida despertou. — Garanto que não foi proposital — a garota respondeu em uma careta. Com uma sobrancelha erguida, a arauto assentiu — eu sei que não. Noire se questionou sobre falar com a fêmea sobre a escuridão e sua alma quebrada. Sobre a voz que a instruiu, mas os olhos carmesins que se fixavam no sol n***o a fez vacilar. Era melhor não. Concluiu. — Por que... foi tão doloroso? — questionou, ainda recostada ao parapeito da janela. Seus pensamentos tão turvos quanto seus olhos.  — Porque o contrato marca a sua alma — Avalon suspirando — não é tão simples quanto parece. Não parecia simples. Isso era definitivamente algo que Noire jamais havia pensado a respeito de como as coisas funcionavam no inferno, mas era compreensível o que o arauto queria falar. Em seu corpo, também havia tatuagens douradas, como as que Noire agora carregava, mas as de Avalon se estendiam por seus braços, pernas e até mesmo rosto. O decote em v de seu vestido, parecia exaltar as espirais em volta de seus s***s. E por um momento, a garota se viu pensando em sua alma novamente. Aquela coisa pequena e perdida na escuridão. Como ela teria sido marcada? — Machuca nossa alma? A marcação? O olhar do arauto se fixou em Noire e ela disse — Não, mas o que é tirado dela ao aceitar, é o que realmente machuca. Sua alma chora e sofre pela sua escolha final. — O que é tirado? — A chance de se tornar parte de tudo — Avalon disse e ao notar as sobrancelhas unidas da garota, suspirou novamente, antes de recomeçar — Todos os seres possuem espíritos, almas, essências... como preferir chamar. Em cada religião recebe um nome ou uma forma de ser discernida, mas todas concordam que é algo além do seu corpo material e mortal. Esse espírito, reencarna até que evolua o suficiente para se tornar parte de um todo, parte de algo maior. — Algo como o céu ou Valhalla? — perguntou de forma tola, embora fosse a melhor comparação que surgisse por sua mente. Avalon bufou ao ouvi-la — por favor... — resmungou — o céu? certamente não, e Valhalla?... vejo mais como um encontro de brutamontes metidos, do que um lugar superior. Seus conceitos são realmente estranhos, criança. Noire piscou repetidas vezes enquanto ouvia as palavras de Avalon. Ela não esperava que aqueles lugares fossem realmente reais, mas a forma como a arauto os citou, pareceu ainda mais... confuso. — Não entendi... — Eu estou falando de algo realmente superior, Noire — ela respondeu sem rodeios — estou me referindo a algo que vai além da roda. Além do nosso plano e do nosso universo. — Existe algo assim? — Sim. Uma consciência única e superior que coordena e observa o multiverso. Uma consciência da qual todas as almas devem fazer parte um dia, exceto almas como a minha ou a sua — Avalon concluiu. Almas que foram marcadas. — Você se arrepende? — Noire perguntou, virando os olhos negros na direção da fêmea. — Nem mesmo por um mísero segundo — Avalon respondeu resoluta. Curvando os lábios em um sorriso, Noire assentiu. Ela também não se arrependia da escolha que havia feito.                                                                                          ☽☀☾   Avalon a guiou novamente pelo castelo, mas dessa vez, a mostrando cada centímetro daquele lugar. A torre n***a onde seu quarto se encontrava, era relativamente grande e possuía em seus anexos uma sala de música, uma sala de jogos, dois grandes salões para visitas, uma pequena biblioteca que só podia ser acessada do quarto que agora a pertencia e dois quartos para hóspedes. As paredes eram escuras e a iluminação de todo o castelo era relativamente peculiar. — Facilita a entrada aérea — Avalon explicou apontando para as janelas arredondadas e em sua grande maioria gigantescas – no mínimo 4 metros de altura –, mas o que realmente deixou Noire boquiaberta foi o jardim que envolvia o castelo. Era um labirinto vivo que obedecia a vontade daquele que nele caminhava, te guiando para o lugar onde desejava ir. A fortaleza que recebia o nome de Keeran, era formada por grandes muros de obsidiana que protegiam três grandes construções. A torre oeste – que agora Noire tomava como sua –, o castelo principal ao norte das muralhas de obsidiana – habitado pelo infernal –, e ao sul, se encontrava o coliseu que parecia ter sido construído com os mesmos tijolos negros do castelo e da torre.                                                                                          ☽☀☾  
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