O Regresso de Helena
O cheiro de maresia e asfalto quente. Dezoito anos tentando exorcizar aquela fragrância, e ela ainda me atingia com a força de um lembrete físico. Meus dedos apertaram a maçaneta da porta do táxi enquanto o motorista parava em frente ao imponente hotel, um gigante de vidro e concreto que zombava da minha juventude perdida.
Eu não era mais a garota ingênua que fugiu. Eu era Helena Monteiro (36), Doutora em Direito, a predadora corporativa. Minha fuga não havia sido uma rendição; havia sido uma reinvenção. Eu vestia a armadura da alta costura e carregava a pasta de couro italiana como um escudo. Eu estava aqui por Lucas, sempre por ele, para garantir que o futuro dele fosse tão sólido quanto o meu saldo bancário.
Meu celular vibrou. A voz de Lucas, calma e idealista, era o meu único farol.
— Mãe, você já chegou ao hotel? — a preocupação dele era quase um afago. — Vi que a audiência preliminar é amanhã de manhã. Não se atrase, o promotor Daniel Albuquerque tem fama de ser um cão de caça. Ele não perdoa falhas.
Tentei injetar leveza na minha voz, algo que não sentia desde que cruzei os limites da cidade. — Cheguei agora, meu anjo. E não se preocupe com o Promotor Albuquerque. Leão de papel, apenas mais um burocrata ambicioso. Estarei lá pontualmente.
Desliguei antes que ele sentisse o tremor na minha mão. Leão de papel, eu disse. Eu estava mentindo para o meu filho, a pessoa que eu jurara proteger com a vida. Daniel Albuquerque (38) não era um burocrata. Ele era o único homem que me viu desabar, o único que me marcou de um jeito que o tempo nunca curou. E ele era a ameaça que me obrigava a voltar.
A suíte de hotel era um luxo frio. Na mesa de centro, as pilhas de documentos da PHOENIX TECNOLOGIA eram o meu refúgio da lógica. Eu me forcei a ignorar a memória do som da risada dele. Do cheiro de lavanda e café em seu apartamento de solteiro. Do pavor que senti ao segurar o teste positivo de gravidez e perceber que a nossa paixão explosiva nos condenaria, e principalmente, condenaria nosso filho, a um destino que eu não aceitava.
Eu o deixei. Foi Minha Escolha. E agora eu pagaria por ela.
Afastei a imagem, o nó na garganta se apertando. Lucas merecia a verdade, mas merecia mais a segurança. E, no meu mundo, os dois não podiam coexistir.
Olhei para a foto desbotada em minha carteira. Lucas criança. Eu precisava garantir que ele jamais soubesse quem era o homem que eu enfrentaria amanhã. O homem que, mesmo sem saber, era o pai dele.
Na manhã seguinte, o Fórum da Comarca Central parecia um templo de mármore e julgamento. Cada passo meu ecoava. Eu via a advogada inabalável. Eu via a mulher prestes a ser confrontada por seu fantasma.
Entrei na sala de audiências. O ar era pesado, carregado de eletricidade estática. Eu me posicionei, os documentos organizados na mesa, pronta para a guerra.
O juiz começou a liturgia. — Pela defesa, Doutora Helena Monteiro.
Eu me levantei. Impecável. Imponente.
— Pela Promotoria... — A voz dele veio. Grave. Profunda. A voz que eu ouvi em pesadelos por dezoito anos.
Meus olhos se levantaram no mesmo instante que ele. Daniel.
O tempo o tinha transformado em algo mais afiado, mais perigoso. Ele não era um garoto. Era um homem cuja autoridade era palpável. Seus olhos azuis, antes carregados de fogo, estavam congelados. Ele me avaliou sem piscar, da ponta dos meus sapatos caríssimos até o meu coque profissional. Não havia saudade, apenas acusação.
— Daniel Albuquerque. — Ele disse, mas em seguida, sua voz baixou, tornando-se aquele sussurro perigoso que eu conhecia. Ele me chamou pelo nome que só ele conhecia. — Helena.
O mundo se tornou ruído distante. O murmúrio do tribunal, a batida do martelo, tudo se dissolveu em um zunido mudo. Eu me sentei.
Ele se inclinou na bancada, a postura de um predador.
— Você voltou. — Minha voz é baixa, mas cada palavra dele cortou meu silêncio como navalha.
Eu ergui o queixo. Eu tinha que manter a compostura. — Não para você.
Ele sorriu, mas sem humor. Um sorriso que não alcançava seus olhos. — Não minta, Helena. Você sempre volta para mim.
A interjeição do juiz nos forçou ao presente, mas o dano estava feito. Ele sabia que eu estava ali por ele, mesmo que fosse para brigar.
Mas o confronto foi subitamente interrompido.
A porta lateral se abriu, e um jovem desajeitado e pálido, vestido em um terno que parecia ter sido emprestado, se esgueirou até a bancada de Daniel.
— Desculpe, Promotor Albuquerque, o trânsito...
Lucas.
Meu filho, Lucas (18), alto, atlético, mas com a ingenuidade nos olhos. A semelhança com Daniel, que eu sempre conseguia disfarçar, agora, ao lado dele, era um grito silencioso.
Daniel deu um tapa fraternal no ombro de Lucas, uma atitude que me fez apertar os punhos debaixo da mesa. — Sem problemas, Lucas. Sente-se. Este é o meu estagiário. — Daniel se virou para o juiz, o orgulho escorrendo de sua voz. — Um rapaz promissor, Doutor.
Meu segredo de dezoito anos estava sentado na cadeira de um estagiário, ao lado do pai.
Daniel notou meu desespero m*l disfarçado. Ele viu o meu olhar fixo no jovem, viu a tensão física que me percorreu. E, naquele instante, ele fez a Minha Escolha por mim. Ele interpretou tudo à luz da dor e do ciúme.
Ele viu a beleza madura da mulher que o abandonou e viu o garoto que parecia ter a idade que ele tinha quando nos conhecemos.
A mágoa e o ressentimento explodiram em sua mente. Ele pensou que Lucas era o amante. O substituto. E agora, ela o estava usando para espioná-lo.
O Promotor Albuquerque endureceu a expressão. Seus olhos se tornaram pedras de gelo. O jogo havia mudado. O caso judicial era a fachada. A vingança seria a nova moeda.
A audiência seguiu. A voz de Daniel estava letal. Ele não estava mais focado na PHOENIX TECNOLOGIA. Ele estava focado em me destruir.
Quando o juiz finalizou a sessão preliminar, Daniel não me deixou escapar.
— Não se apresse, Helena.
Fiquei parada. Eu podia sentir o cheiro dele, a mistura de loção pós-barba e o cheiro inebriante da lei.
Ele se aproximou, sua voz baixa o suficiente para que apenas eu ouvisse. O hálito quente de sua proximidade era um lembrete perigoso.
— Dezoito anos. Dezoito anos de mentiras. Você voltou para a cidade e trouxe ele? Você perdeu todo o seu tempo com ele, Helena? Ou ele é apenas o mais recente?
Seus olhos fixaram-se nos meus, esperando a confirmação da sua pior suspeita.
Minha fúria foi uma erupção fria. — Minha vida pessoal não é da sua conta, Promotor. Concentre-se no seu processo, ou vou garantir que você perca mais do que apenas um caso.
Eu me virei, meu salto alto fazendo um som seco e cortante no chão de mármore. Saí da sala, deixando para trás um Daniel furioso e um Lucas que nos observava, intrigado, sem saber que havia acabado de testemunhar o início da guerra entre o pai e a mãe.
A guerra pessoal e profissional estava declarada. E no meio, estava o meu filho.