Tentativas de Família

1954 Words
Duas semanas depois, Lucas (18) recebeu alta do hospital. As ataduras no braço eram um lembrete físico do caos, mas seu espírito estava mais leve do que nunca. Ele estava cercado pelos dois pais, algo que ele jamais imaginou ser possível. O desafio agora era a logística. Daniel (38) estava oficialmente de licença e, com Lucas precisando de cuidados e Helena (36) sem querer sair do seu lado, a única solução temporária era a convivência forçada na luxuosa e espaçosa suíte de Helena. Daniel odiou a situação. O apartamento era um monumento à vida que Helena havia construído sem ele. Cada peça de arte cara, cada livro especializado, gritava "Sucesso Sem Você". Ele, o Promotor acostumado à ordem e à austeridade, sentia-se um hóspede desajeitado. A tensão entre Daniel e Helena era um fio esticado. Eles se moviam pelo apartamento com a cautela de dois advogados evitando uma moção desnecessária. O diálogo era estritamente sobre Lucas: medicamentos, horários de fisioterapia, refeições. — Ele precisa de mais proteína para regenerar os tecidos. Pedi que o chef fizesse um ensopado. — Helena disse, folheando uma revista médica. — Eu verifiquei o ensopado. — Daniel respondeu, com a voz formal. — Eu sei cozinhar, Helena. Não sou inútil fora de um tribunal. — Eu não disse que era inútil. — Ela fechou a revista. — Eu disse que não confio em você para preparar o ensopado que eu pedi para ele. Você nunca cozinhou quando éramos jovens. — Eu mudei. E aprendi a cozinhar quando você me deixou. — Daniel rebateu, a dor da mágoa atravessando a banalidade da conversa. — A solidão te ensina coisas, Helena. Lucas interveio de seu lugar no sofá, onde estava jogando videogame: — Mãe, o ensopado do pai é bom. Ele colocou alecrim. O comentário inocente de Lucas forçou um silêncio constrangedor. Lucas estava usando a nova dinâmica para costurar as feridas dos pais, agindo como o mediador que ele nunca soube que seria. Naquela tarde, Daniel se viu sozinho no terraço, olhando a vista da cidade. Ele sentia falta de seu escritório, da previsibilidade de seu trabalho. A paternidade era um terreno desconhecido, e a presença de Helena o desestabilizava. Helena o encontrou ali, com duas xícaras de café. — A água estava fervendo. Não queria que você queimasse o terraço. — Ela disse, estendendo uma xícara. Daniel pegou o café, sem olhá-la. — Eu não sei o que estou fazendo aqui. Eu deveria estar no meu apartamento, trabalhando nos meus relatórios. — Você está sendo pai. — Ela disse simplesmente. — E eu estou permitindo que você seja. Esse é o primeiro passo. — O primeiro passo para o quê? — Ele se virou. — Para você se sentir menos culpada? Helena engoliu em seco. — Para Lucas ter o que ele merece. E para que eu possa tentar te pagar o tempo que roubei. Eu sinto muito, Daniel. Mas eu não posso voltar no tempo e desfazer a Minha Escolha. Eu só posso te dar o presente. — E qual é o presente, Helena? A convivência forçada com a mulher que eu odiei por dezoito anos? — O presente é a chance de você construir uma relação com Lucas. E, talvez, a chance de você ver que eu mudei. Eu não sou mais a garota assustada. Daniel a estudou. Ela estava certa. A advogada implacável estava ali, mas também a mãe vulnerável. A paixão entre eles, sufocada pela mágoa, ainda estava presente, flutuando no ar como o vapor do café. — O caso PHOENIX está quase encerrado. — Daniel mudou de assunto, voltando ao familiar. — O acordo é justo. Viviane está tentando anular os processos, mas ela não tem credibilidade. Ela está fora do jogo. — Eu sei. Você me protegeu. — Helena admitiu. — Você não precisava ter me defendido na coletiva. — Você é a mãe do meu filho. — Daniel disse, a voz firme. — Não importa o que eu sinta por você, a minha prioridade é proteger a nossa família. Ele bebeu o café, o gosto amargo combinando com o seu humor. — Eu vou ficar aqui até Lucas se recuperar completamente. Mas depois, Helena, eu preciso de espaço. — Eu entendo. — Ela acenou. — Mas até lá, podemos fazer uma trégua? Pelo menos tente me ver como uma parceira. Daniel olhou para o céu noturno, para a vasta e imprevisível cidade. Ele era um homem de ordem, e o caos havia entrado em sua vida na forma de sua ex-amante e seu filho secreto. — Trégua. — Daniel concordou. — Mas o perdão é um processo lento, Helena. E eu ainda tenho que descobrir quem é você agora. Helena sorriu, um sorriso fraco, mas genuíno. — Eu também, Daniel. Eu também. A trégua em nome de Lucas (18) transformou o luxuoso apartamento de Helena (36) em uma zona de coexistência forçada. Daniel (38) ainda era o Promotor da Comarca, meticuloso e tenso, mas agora dedicava as manhãs à fisioterapia de seu filho, um ritual que o forçava à proximidade física e emocional. A cada dia, Lucas ganhava mais mobilidade, e Daniel ganhava mais familiaridade com o toque paternal. Ele aprendia a ser pai não pela lei, mas pela necessidade. Helena observava os dois. A frieza de Daniel desaparecia momentaneamente quando ele ria de uma piada de Lucas ou quando se frustrava com a inabilidade do filho em pegar um peso leve. Eram vislumbres do homem que ela amara, o homem que ela tentara salvar. A Redescoberta não veio em grandes gestos românticos, mas nos detalhes banais da vida. Uma tarde, Daniel estava na sala de estar, revisando um livro sobre nutrição esportiva para a recuperação de Lucas. Helena entrou, segurando duas taças de vinho. — É Bordeaux. Achei que você precisasse. — Ela estendeu uma taça. — Pela sua expressão, a dieta de Lucas é mais complicada que o caso PHOENIX. Daniel aceitou, surpreso. Ele se lembrava perfeitamente de que Bordeaux era o seu vinho favorito na faculdade, o único que ele podia pagar na época. — Você se lembrava. — Ele disse, bebendo um gole. — Eu não apaguei os dezoito anos. — Ela murmurou, sentando-se no sofá oposto. — Eu só os tranquei. O silêncio confortável se instalou por um momento, a primeira vez que isso acontecia desde o reencontro. — Eu li o diário novamente. — Daniel confessou. — A parte em que você descreve nosso encontro na biblioteca. Lembro-me daquele dia. Eu estava desesperado para passar naquele exame. E você estava mais desesperada para me distrair. Helena sorriu, a memória suave. — Você ficou tão zangado quando eu derrubei o café no seu livro. — Sim. E depois me beijou para compensar. — Daniel sorriu de volta, um sorriso genuíno que iluminou seus olhos azuis. O sorriso que Lucas herdara. — Na época, achei que tinha ganhado um suborno. Agora vejo que era apenas o seu jeito de bagunçar minha vida. — Eu gostava da sua ordem. — Helena admitiu. — Eu gostava de ser a única coisa em sua vida que você não podia controlar. A conversa era perigosa, mas a honestidade forçada pelo diário era irresistível. Eles falaram sobre a faculdade, sobre sonhos perdidos e caminhos desviados, sobre como a ambição se tornou o substituto para o amor. Nos dias seguintes, a trégua se aprofundou na colaboração. Daniel era metódico na organização dos horários de Lucas, e Helena era intuitiva em saber quando Lucas precisava de conforto. Eles se complementavam, como sempre fizeram. Certa noite, Helena estava lutando com um relatório de sua firma, tentando conciliar a licença com as demandas de um cliente importante. O documento envolvia a reestruturação de uma empresa sob investigação. Daniel, sem dizer nada, sentou-se na mesa de conferências e folheou o relatório. — Esse ângulo é fraco. — Ele apontou para uma cláusula. — A promotoria vai olhar isso como uma tentativa de esconder o passivo. Você precisa mostrar a bona fide da reestruturação. — E como eu faria isso? — Helena arqueou uma sobrancelha, desafiadora. Daniel pegou uma caneta e começou a esboçar uma linha de defesa, desenhando gráficos e fluxogramas jurídicos. Em minutos, ele havia dissecado o caso com a precisão cirúrgica de um Promotor, encontrando falhas que o advogado da firma de Helena havia negligenciado. Helena observou. Não era mais o inimigo; era o parceiro. A inteligência dele, a paixão dele pela lei – era a mesma coisa que a atraíra dezoito anos atrás. — Você é brilhante, Daniel. — Ela sussurrou. — Você também é. — Daniel levantou os olhos, o rosto a centímetros do dela. — Você construiu um império sozinha. Você deve me odiar por ter feito essa escolha por mim, mas não posso negar que você venceu. O olhar entre eles se intensificou. Não era sobre o caso PHOENIX, nem sobre Lucas. Era sobre a faísca que a proximidade e o intelecto compartilhado haviam reacendido. Helena quebrou o contato, levantando-se abruptamente. — É tarde. Você deveria descansar. — Você me distrai, Helena. — Daniel disse, a voz baixa e rouca. — Eu sei. — Ela respondeu, fugindo para o quarto. A Redescoberta atingiu seu ápice físico uma noite de tempestade. O clima tropical da cidade trouxe uma chuva violenta, acompanhada de trovões. Lucas, que ainda estava frágil, acordou assustado. Helena e Daniel correram para o quarto dele ao mesmo tempo. Lucas estava tremendo, a febre subindo devido à tensão emocional. — Está tudo bem, meu amor. É só a chuva. — Helena tentou acalmá-lo, mas ele estava agitado. Daniel, sem hesitar, pegou Lucas nos braços, aninhando-o contra o peito. Não havia rigidez ou formalidade. Havia apenas a necessidade instintiva do pai. — Estou aqui, filho. — Daniel disse, a voz profunda e reconfortante. — O seu pai está aqui. Ele embalou Lucas por um longo tempo, andando pelo quarto. Helena o observava, o coração derretendo. A imagem era a que ela havia negado a si mesma por dezoito anos: Daniel, sendo o pai que ele nasceu para ser. Quando Lucas finalmente se acalmou e voltou a dormir, Daniel o deitou na cama. A proximidade havia esgotado a trégua profissional. Eles se encontraram no corredor. A luz estava fraca. — Você foi ótimo. — Helena disse, a voz embargada. — Ele é meu filho. — Daniel respondeu, a emoção ainda evidente. O silêncio foi preenchido pela chuva e pelo barulho do sangue correndo. Daniel deu um passo em direção a ela. Ele não a tocou. Ele apenas a olhou. — Eu não te odeio mais, Helena. — Daniel confessou, a voz como um sussurro. — Mas a mágoa... a mágoa é um abismo. — Eu sei. — Helena colocou a mão no peito dele, sentindo o ritmo acelerado do seu coração. — Mas a paixão que nos criou também é um abismo, Daniel. E eu sinto que estamos caindo nele de novo. Daniel não resistiu. Ele agarrou o pulso dela, puxando-a para um beijo desesperado. Não era um beijo de perdão, mas de reconhecimento. Oito anos de mágoa, ciúmes e desejo reprimido explodiram naquele contato. O gosto de vinho Bordeaux e de café se misturou, o sabor do passado colidindo com a urgência do presente. O beijo era tudo quebrado, tudo cru, e tudo que eles precisavam para admitir que a trégua legal não poderia conter o que havia entre eles. — Isso é errado. — Helena ofegou, afastando-se, mas sem quebrar totalmente o contato. — Não. — Daniel a beijou novamente, com mais urgência. — Isso é Minha Escolha, Helena. A que eu deveria ter feito há dezoito anos. Eles se abraçaram no meio do corredor, sob o som da chuva. O perdão ainda era um processo, mas o desejo era imediato.
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