O e-mail de Noah foi respondido em menos de 24 horas.
đź“§ De: leticia.ferreira@revistaverdade.com
Assunto: RE: Caso Leonardo Calazans
> Noah, recebi sua mensagem. Já estamos familiarizados com o nome Calazans. Há tentativas antigas de denĂşncia contra ele — todas silenciadas ou arquivadas por "falta de provas". Precisamos conversar. Com vocĂŞ. E, se possĂvel, com a jovem envolvida. Pode me encontrar em local discreto?
Ele releu a mensagem várias vezes. Estava prestes a cruzar uma linha. Mas dessa vez, por vontade própria.
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Enquanto isso, Atena organizava suas coisas. Havia deixado a boate para trás, mas as consequências estavam longe de acabar. Naquela manhã, descobriu que o aluguel havia sido misteriosamente reajustado. O valor, agora, era quase o dobro. Nenhum aviso prévio. Nenhuma explicação.
Ligou para a imobiliária. Foi m*l atendida. O sistema “caiu”. Não havia nada que pudessem fazer.
Ela entendeu na hora.
Leonardo estava pressionando silenciosamente. Cortando o ar. Tirando o chĂŁo.
Sentou-se no colchĂŁo do quarto. Passou as mĂŁos pelos cabelos. A ansiedade roĂa por dentro.
Noah chegou minutos depois. Encontrou-a assim: imĂłvel. Vazia.
— O que houve?
— O aluguel subiu sem aviso. Em dobro. Eu não vou conseguir bancar.
Ele se ajoelhou diante dela.
— Eu vou te ajudar.
— Não. Não, Noah. Não posso deixar você fazer isso.
— Atena...
— Ele tá tentando destruir sua vida por minha causa. Já bloqueou seu acesso Ă faculdade. Vai atrás da sua famĂlia, dos seus amigos. VocĂŞ nĂŁo entende com quem tá lidando!
Noah segurou o rosto dela com delicadeza, sem invadir.
— Eu entendo exatamente com quem estou lidando. E é por isso que eu não vou sair do seu lado.
Ela fechou os olhos por um momento. SĂł queria poder acreditar que tudo aquilo era possĂvel. Que o amor podia resistir a um predador como Leonardo.
Mas quando abriu os olhos, viu algo em Noah que nunca tinha visto em nenhum homem antes:
ResistĂŞncia.
— A jornalista respondeu — ele disse, baixando o tom. — Já estão investigando. A gente vai até o fim com isso.
— E se não der em nada?
— Então pelo menos a gente tentou. Mas... — ele tocou o peito dela, com o indicador. — Se você quebrar de novo, eu quebro também. E eu não pretendo quebrar, Atena. Não agora.
Ela sorriu, pequena. Triste. Mas havia um traço de coragem naquele sorriso.
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No dia seguinte, a retaliação começou a escalar.
A mãe de Noah, dona Teresa, recebeu uma ligação do banco:
> — Seu nome foi envolvido em um pedido de empréstimo recente. Valor: R$ 50 mil. Assinatura digital do seu filho.
Noah ficou em choque. O sistema bancário foi invadido. O nome dele forjado. Um processo estava sendo aberto para apurar o caso.
— Ele tá jogando sujo — disse Noah, trancando as mãos atrás da cabeça.
— Ele quer te destruir sem encostar em você — respondeu Atena.
Eles sabiam que aquilo era só o começo.
Mas sabiam também que agora eram dois contra o mundo.
A cafeteria era discreta, num bairro boĂŞmio afastado do centro. De dia, um espaço acolhedor de artistas e escritores; Ă noite, quase invisĂvel, como se nĂŁo existisse.
Foi ali que Noah e Atena encontraram LetĂcia Ferreira, jornalista investigativa da Revista Verdade. Cabelos escuros presos em coque, olhar atento, caderno de anotações em uma mĂŁo e um gravador no bolso do casaco. Ela nĂŁo usava maquiagem, nem simpatia exagerada. Mas a firmeza no olhar deixava claro que nĂŁo estava ali por acaso.
— Vocês têm cinco minutos pra me dizer por que não devo sair por aquela porta — disse, direta, antes de qualquer cumprimento.
Atena trocou um olhar com Noah. Ele assentiu. Era hora de abrir a caixa.
— Leonardo Calazans. — Atena começou. — Ele me perseguiu por mais de dois anos. Tentou comprar meu silêncio. Quando eu recusei, ele destruiu meus empregos, minha estabilidade, e agora ameaça quem se aproxima de mim.
LetĂcia anotava tudo sem reagir. Quando terminou, olhou para Noah.
— E você?
— Tentei ajudá-la. Desde entĂŁo, perdi acesso Ă universidade, fui falsamente envolvido num emprĂ©stimo e minha mĂŁe foi ameaçada. Ele tem poder real, LetĂcia. E nĂŁo esconde que está disposto a usá-lo.
A jornalista ficou em silĂŞncio por alguns segundos. Depois ativou o gravador.
— Nome completo, datas, evidências. Me digam tudo. E não escondam nada.
Eles falaram. Por quase uma hora. Atena revelou detalhes que nunca havia contado nem para Noah — sobre os encontros manipulados, o dinheiro oferecido, as mensagens veladas, as tentativas de coação. Noah mostrou e-mails, prints, documentos falsificados.
Quando terminaram, LetĂcia desligou o gravador. Fechou o caderno.
— Isso é maior do que vocês imaginam. Mas também é frágil. Leonardo tem gente em todos os lugares. Se eu publicar isso sem blindagem, vocês podem ser processados por difamação antes mesmo de respirarem. Mas se conseguirmos mais um depoimento... algo interno, uma quebra de confiança dele...
Ela hesitou.
— Existe alguém próximo a ele? Alguém que já viu demais?
Atena ficou imóvel. Uma lembrança atravessou sua mente como uma lâmina.
> Matheus.
Um antigo segurança da boate. Trabalhava ali quando ela chegou. Sempre calado, mas educado. Foi ele quem a ajudou a escapar de Leonardo uma vez, no camarim. Depois sumiu. Disseram que havia pedido demissão por problemas pessoais.
Mas agora, tudo fazia sentido.
— Talvez. — disse Atena. — Mas não sei se ele ainda está na cidade.
— Encontre ele. — LetĂcia levantou-se. — Se ele falar, eu publico. E se eu publicar... o impĂ©rio de Leonardo começa a ruir.
Ela foi embora sem dar tempo para mais perguntas.
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Horas depois, no fim do dia, Atena caminhava sozinha pelo bairro antigo onde Matheus morava — ou pelo menos, onde morava antes de sumir. Uma casa simples, quase esquecida entre prédios modernos. Bateu na porta. Uma... duas... três vezes.
Até que se abriu.
E lá estava ele. Mais magro. Olhos fundos. Mas ainda o mesmo.
— Atena? — ele disse, surpreso.
— Eu preciso da sua ajuda. — a voz dela falhou por um instante. — É sobre ele.
Matheus fechou os olhos. Como se já soubesse do que se tratava.
— Você demorou pra voltar.
Ela mordeu os lábios. Ele abriu espaço.
— Entra. Mas se prepare. O que eu tenho pra dizer pode mudar tudo.
A casa de Matheus era simples, escura e silenciosa. Ele a guiou até a sala, onde o sofá gasto e o ventilador velho girando no teto pareciam suspensos no tempo. A televisão estava desligada. Na estante, algumas fotos empoeiradas de um passado mais leve.
Atena sentou-se, tensa. Matheus permaneceu de pé por alguns segundos, olhando pela janela, como se ainda ponderasse se deveria falar. Então, virou-se.
— Leonardo sempre foi podre. Desde que chegou à boate com seu dinheiro e sua arrogância. Mas o que a maioria não sabe é que ele... cometeu um erro. Um grave.
Atena se inclinou, o coração acelerado.
— Que erro?
— Uma garota. Antes de você. Uma dançarina chamada Lorena. Jovem, inocente, perdida como tantas. Leonardo se encantou. Mas ela não quis se submeter. Então ele armou. Inventou um escândalo, pagou clientes para difamá-la, e a fez sair com vergonha.
— Eu me lembro vagamente... — sussurrou Atena. — Disseram que ela foi “dispensada”. Que fugiu.
— Fugiu mesmo. Mas nĂŁo por vergonha. Fugiu porque tinha provas. Ela gravou uma conversa com Leonardo, onde ele oferece dinheiro pra forjar uma denĂşncia de furto contra ela — e depois ameaça a integridade fĂsica dela se ela nĂŁo “sumir”.
Atena arregalou os olhos.
— Ela gravou?
— E me deu uma cópia. Antes de desaparecer. Eu a escondi. Nunca soube o que fazer com aquilo. Até agora.
Matheus caminhou até o quarto e voltou com uma pendrive prateada, envelhecida pelo tempo.
— Está aqui.
Atena pegou o objeto com as mĂŁos tremendo.
— Isso... isso pode derrubar ele.
— Se for bem usado, sim. Mas ele tem aliados. Gente grande. Você vai ter que ser mais esperta do que ele. Porque agora... ele não vai só tentar controlar. Vai tentar apagar.
Atena assentiu, engolindo a tensĂŁo. Mas algo dentro dela... pulsava.
> Pela primeira vez desde que tudo começou, ela tinha uma arma.
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Horas depois, ela e Noah assistiam ao conteĂşdo juntos no quarto dele. A voz de Leonardo era clara, distinta, nojenta:
— “Ela assina o falso roubo, vocês testemunham, e a gente manda a v***a de volta pro interior. Eu dobro o pagamento se ela sumir sem barulho.”
O silêncio que veio depois da gravação era mais alto que qualquer música da boate.
Noah falou primeiro.
— Com isso... LetĂcia pode publicar sem medo. Isso vai estourar.
Atena ainda segurava o pendrive como se fosse frágil demais. Uma vida inteira comprimida em megabytes.
— Eu não acredito que... a gente tem chance de virar o jogo.
— A gente vai virar. — Noah respondeu, com firmeza. — E quando acabar... você vai poder respirar de verdade.
Ela o olhou. O olhar mais profundo que já lhe dera.
— Você é a única coisa que ainda me faz acreditar.
— Então acredita em mim agora. A gente tá ganhando essa guerra.
E por um instante, ela acreditou mesmo.
Naquela noite, dormiram no mesmo espaço, corpo a corpo apenas pelo calor humano, sem desejo forçado — apenas acolhimento.
Mas lá fora, as nuvens voltavam a se formar.
Porque alĂvio... Ă© sempre um intervalo antes da prĂłxima queda.