O laboratório estava mergulhado em silêncio quando Noah chegou naquela manhã. Normalmente, ele era o primeiro. Gostava da solidão antes das aulas começarem — o som dos tubos, o vapor das substâncias, o mundo que só ele entendia.
Mas naquele dia, algo estava errado.
Na tela do computador da bancada central, uma mensagem piscava:
> “ACESSO NEGADO – RESTRIÇÃO TEMPORÁRIA DE SISTEMA DE BOLSAS”
Ele franziu o cenho, recarregou a página. O mesmo erro.
Tentou acessar seu e-mail institucional. Também bloqueado.
Em poucos minutos, recebeu uma ligação do setor acadêmico.
— Senhor Cárter, bom dia. Precisamos que o senhor compareça ao Departamento Financeiro ainda hoje. Detectamos uma inconsistência em sua documentação de matrícula.
— Como assim? Minha bolsa está ativa desde o primeiro semestre.
— É apenas um procedimento padrão. Mas o senhor terá que aguardar a análise até segunda-feira. Durante esse período, seu acesso está temporariamente suspenso.
Noah encerrou a ligação, ainda atordoado. Não fazia sentido.
Mas então lembrou-se do aviso.
Do recado que Leonardo deixara.
“Ele não vale o preço.”
> Ele está mexendo na minha vida acadêmica.
É assim que ele joga: sem se sujar, mas sujando tudo ao redor.
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Naquele mesmo dia, Atena decidiu não ir à boate. Não pediu permissão. Não avisou. Só... não foi. Pela primeira vez em meses.
Era uma decisão pequena, mas que parecia gigante. O medo de represálias era real. Mas ela sentia que, se não começasse a recuperar a própria liberdade por conta própria, nunca sairia daquele ciclo.
Passou a tarde pintando. Cores densas, intensas. Vermelho, cinza, azul escuro.
No meio da tela, duas figuras de mãos quase se tocando.
Mas separadas por vidro.
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À noite, ela foi até a casa de Noah.
Ele abriu a porta com o olhar cansado.
— Você tá bem? — ela perguntou, entrando.
Ele hesitou, depois fechou a porta devagar.
— Fui suspenso temporariamente do sistema da faculdade. Alegaram erro na documentação da bolsa. Mas eu sei que não foi um erro.
Atena sentou-se, o rosto tenso.
— Foi ele.
Noah assentiu.
— E vai continuar.
— Você ainda quer continuar?
Ele a olhou. Aquele olhar firme que ela começava a reconhecer.
— Agora mais do que nunca.
Ela não disse nada por alguns segundos. Depois, aproximou-se devagar e sentou-se ao lado dele no sofá.
— Eu queria poder te tirar disso.
— E eu queria poder te proteger de tudo.
— Mas a gente não pode, né?
— Não totalmente. Mas... — ele pousou a mão sobre a dela, sem força, sem intenção. Só presença. — Podemos estar juntos no que vier.
O silêncio seguinte foi cheio de algo quente, mas contido. Ela virou o rosto, observando o perfil dele.
Noah estava se tornando parte da vida dela.
E isso a assustava mais do que Leonardo.
Porque agora ela tinha algo a perder.
Atena chegou à boate no dia seguinte com o estômago revirado. O ambiente sempre teve cheiro de perfume caro e promessas baratas, mas naquela noite o ar parecia mais pesado.
Mais... contaminado.
Ela foi recebida por Sônia no corredor dos bastidores, que a olhou de cima a baixo com expressão séria.
— Precisamos conversar, querida.
Atena sentiu um arrepio subir pela espinha. Seguiu a gerente até a sala dos fundos, onde raramente era chamada. Era ali que as negociações aconteciam. Onde contratos eram rasgados, regras reescritas, nomes trocados por cifras.
Sônia sentou-se à mesa. O olhar agora era neutro, profissional. Frio.
— Um cliente antigo ofereceu uma quantia generosa. Disse que gostaria de uma “noite especial” com você. Está disposto a pagar o suficiente para cobrir o aluguel de todo o mês da casa. Em dinheiro vivo.
Atena já sabia o nome antes mesmo de ouvi-lo.
— Leonardo. — disse, seca.
Sônia assentiu lentamente.
— Você sabe que ele sempre volta. E nunca aceita um “não” por muito tempo.
— A regra é clara. Eu sou intocável.
— Era. — Sônia respirou fundo. — As regras mudam quando o dono da casa começa a receber ofertas assim.
Atena se levantou de uma vez.
— Eu nunca aceitei esse tipo de acordo. Desde o primeiro dia, vocês prometeram que isso não aconteceria. Foi o único motivo pelo qual fiquei!
— E nós mantivemos isso até onde pudemos. Mas agora...
— Agora o quê? Vocês vão me vender?
— Atena, não se trata disso.
— Então do que se trata?
Sônia ficou em silêncio. Pela primeira vez, desviou o olhar.
Foi o suficiente.
Atena saiu da sala sem dizer mais nada. O sangue pulsava alto em suas têmporas. Sentia-se traída. Sufocada. Suja.
Como se cada parede da boate tivesse se transformado em um espelho que gritava:
> Você nunca foi livre. Só foi emprestada.
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Do lado de fora, a cidade vibrava em neon e motor. Atena caminhou sem direção por minutos que pareciam horas. O mundo ao redor girava, mas dentro dela só havia um único desejo: fugir.
Pegou o celular.
Ligou.
Noah.
Ele atendeu na primeira chamada.
— Vem me buscar.
A voz dela era baixa. Mas o suficiente para fazê-lo sair sem pensar.
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Quando Noah parou com a moto em frente à esquina da boate, Atena já o esperava. Os olhos vermelhos, o rosto fechado. Subiu na garupa sem dizer uma palavra. E segurou sua cintura com força.
— Onde você quer ir? — ele perguntou, sem olhar para trás.
Ela hesitou por dois segundos.
— Pra qualquer lugar onde ninguém mande em mim.
Ele assentiu. E acelerou.
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Chegaram a um mirante afastado, onde a cidade parecia distante. Um lugar alto, silencioso, de onde dava pra ver as luzes sem ouvir o barulho. Era o único lugar onde Noah se sentia livre. E agora dividia com ela.
Atena desceu da moto devagar, caminhou até a beirada e sentou-se na mureta.
— Eles querem me vender, Noah.
Ele não disse nada. Só se sentou ao lado dela. O silêncio dizia mais.
— Eu aguentei tanta coisa. Tanta humilhação. Mas eu tinha limites. E agora... — a voz falhou. — Agora nem isso me resta.
— Você ainda tem escolha.
Ela o olhou, os olhos cheios de dor.
— E se a escolha me deixar sem teto? Sem dinheiro? E se eu perder o pouco que consegui salvar do meu pai?
Noah respirou fundo.
— A gente encontra outra forma. Outra saída.
Ela riu, amarga.
— Você fala como se o mundo fosse justo.
— Não. Falo como quem acredita que o amor pode ser mais forte do que o medo.
Ela não respondeu. Mas encostou a cabeça no ombro dele.
E ficou ali. De olhos fechados. Como quem finalmente entendia:
> Ela não estava sozinha. Mesmo que ainda não soubesse como seguir em frente.
Na manhã seguinte, o céu estava cinza. O tipo de dia que parecia sussurrar que algo estava por vir — mas ninguém sabia o quê.
Atena acordou no apartamento de Noah. Dormira no sofá, coberta por uma manta leve. Ele não a forçou a falar mais nada depois da noite anterior. Só a deixou existir. E isso bastava.
Quando ela se levantou, Noah estava na cozinha. Preparava café em silêncio.
— Fica mais um pouco — ele disse, sem virar o rosto.
— Preciso ir. Tenho uma conversa a terminar.
Ele se virou então, e o olhar que trocou com ela dizia tudo:
Vai ser difícil. Mas você não está sozinha.
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Atena entrou na boate pela última vez com passos firmes.
O ambiente parecia diferente agora. Mais escuro. Mais opressor. Não era só a luz — era o que estava por trás dela. Mentira, manipulação, e poder vendido por trás de uma cortina de veludo.
Sônia a aguardava.
— Ele retirou a proposta — disse, antes que Atena pudesse falar. — Disse que não quer mais te ver. E que vai respeitar a regra.
Atena estreitou os olhos.
— Por quê?
— Não sei. Só sei que o dono da casa também pediu para deixar tudo como está.
— Isso não muda nada.
Sônia franziu o cenho.
— Atena...
— Eu vim me demitir.
A gerente suspirou, como se esperasse aquilo.
— Sabe que, sem esse trabalho, vai perder...
— Tudo. Eu sei. Mas pelo menos perco com minha dignidade inteira.
Sônia não tentou impedir. Só assentiu. Por respeito. Ou talvez por medo.
Atena saiu com a cabeça erguida, mesmo que o peito doesse.
> Era o começo da queda. Mas também o início da liberdade.
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Enquanto isso, Noah estava diante de uma tela dividida em quatro abas diferentes:
— Artigos sobre Leonardo,
— fóruns de denúncias arquivadas,
— redes sociais rastreadas,
— e um e-mail rascunhado.
Ele sabia que não poderia enfrentar um homem como Leonardo sozinho. Precisava de provas. E aliados.
Então escreveu:
📧 Para: jornalismo.investigativo@revistaverdade.com
Assunto: Caso ocultado envolvendo Leonardo Calazans
> Tenho informações que podem interessar à redação. Trata-se de um padrão de a***o, coerção e impunidade envolvendo uma figura pública. Preciso conversar com um jornalista fora dos canais oficiais. É urgente.
Ele não assinou com nome. Não ainda. Mas era um primeiro passo.
> Se o sistema era grande demais, ele descobriria onde doía.
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Naquela tarde, Atena voltou para casa e encontrou a porta entreaberta.
O coração dela parou por meio segundo.
Entrou com cautela.
As luzes estavam apagadas.
Não havia sinais de arrombamento.
Mas, sobre a cama, um envelope.
Sem remetente.
Dentro dele, uma foto.
Ela e Noah, sentados no mirante na noite anterior.
Atrás da imagem, uma única frase escrita à mão:
> "Você está sendo vigiada. Escolha seus próximos passos com cuidado."
Atena deixou o envelope cair. O corpo tremia.
Ele sabia onde ela estava. Com quem estava. O tempo todo.
Mas dessa vez, o medo não a paralisou.
Ela pegou o celular. E ligou.
— Noah?
— Oi.
— Eu pedi demissão.
— Você tá bem?
— Não. Mas fiz o que precisava.
— E agora?
Ela olhou a janela. Depois a foto.
— Agora a gente começa a lutar de verdade.