🟥 Capítulo 4 – As Primeiras Rupturas

1671 Words
O laboratório estava mergulhado em silêncio quando Noah chegou naquela manhã. Normalmente, ele era o primeiro. Gostava da solidão antes das aulas começarem — o som dos tubos, o vapor das substâncias, o mundo que só ele entendia. Mas naquele dia, algo estava errado. Na tela do computador da bancada central, uma mensagem piscava: > “ACESSO NEGADO – RESTRIÇÃO TEMPORÁRIA DE SISTEMA DE BOLSAS” Ele franziu o cenho, recarregou a página. O mesmo erro. Tentou acessar seu e-mail institucional. Também bloqueado. Em poucos minutos, recebeu uma ligação do setor acadêmico. — Senhor Cárter, bom dia. Precisamos que o senhor compareça ao Departamento Financeiro ainda hoje. Detectamos uma inconsistência em sua documentação de matrícula. — Como assim? Minha bolsa está ativa desde o primeiro semestre. — É apenas um procedimento padrão. Mas o senhor terá que aguardar a análise até segunda-feira. Durante esse período, seu acesso está temporariamente suspenso. Noah encerrou a ligação, ainda atordoado. Não fazia sentido. Mas então lembrou-se do aviso. Do recado que Leonardo deixara. “Ele não vale o preço.” > Ele está mexendo na minha vida acadêmica. É assim que ele joga: sem se sujar, mas sujando tudo ao redor. --- Naquele mesmo dia, Atena decidiu não ir à boate. Não pediu permissão. Não avisou. Só... não foi. Pela primeira vez em meses. Era uma decisão pequena, mas que parecia gigante. O medo de represálias era real. Mas ela sentia que, se não começasse a recuperar a própria liberdade por conta própria, nunca sairia daquele ciclo. Passou a tarde pintando. Cores densas, intensas. Vermelho, cinza, azul escuro. No meio da tela, duas figuras de mãos quase se tocando. Mas separadas por vidro. --- À noite, ela foi até a casa de Noah. Ele abriu a porta com o olhar cansado. — Você tá bem? — ela perguntou, entrando. Ele hesitou, depois fechou a porta devagar. — Fui suspenso temporariamente do sistema da faculdade. Alegaram erro na documentação da bolsa. Mas eu sei que não foi um erro. Atena sentou-se, o rosto tenso. — Foi ele. Noah assentiu. — E vai continuar. — Você ainda quer continuar? Ele a olhou. Aquele olhar firme que ela começava a reconhecer. — Agora mais do que nunca. Ela não disse nada por alguns segundos. Depois, aproximou-se devagar e sentou-se ao lado dele no sofá. — Eu queria poder te tirar disso. — E eu queria poder te proteger de tudo. — Mas a gente não pode, né? — Não totalmente. Mas... — ele pousou a mão sobre a dela, sem força, sem intenção. Só presença. — Podemos estar juntos no que vier. O silêncio seguinte foi cheio de algo quente, mas contido. Ela virou o rosto, observando o perfil dele. Noah estava se tornando parte da vida dela. E isso a assustava mais do que Leonardo. Porque agora ela tinha algo a perder. Atena chegou à boate no dia seguinte com o estômago revirado. O ambiente sempre teve cheiro de perfume caro e promessas baratas, mas naquela noite o ar parecia mais pesado. Mais... contaminado. Ela foi recebida por Sônia no corredor dos bastidores, que a olhou de cima a baixo com expressão séria. — Precisamos conversar, querida. Atena sentiu um arrepio subir pela espinha. Seguiu a gerente até a sala dos fundos, onde raramente era chamada. Era ali que as negociações aconteciam. Onde contratos eram rasgados, regras reescritas, nomes trocados por cifras. Sônia sentou-se à mesa. O olhar agora era neutro, profissional. Frio. — Um cliente antigo ofereceu uma quantia generosa. Disse que gostaria de uma “noite especial” com você. Está disposto a pagar o suficiente para cobrir o aluguel de todo o mês da casa. Em dinheiro vivo. Atena já sabia o nome antes mesmo de ouvi-lo. — Leonardo. — disse, seca. Sônia assentiu lentamente. — Você sabe que ele sempre volta. E nunca aceita um “não” por muito tempo. — A regra é clara. Eu sou intocável. — Era. — Sônia respirou fundo. — As regras mudam quando o dono da casa começa a receber ofertas assim. Atena se levantou de uma vez. — Eu nunca aceitei esse tipo de acordo. Desde o primeiro dia, vocês prometeram que isso não aconteceria. Foi o único motivo pelo qual fiquei! — E nós mantivemos isso até onde pudemos. Mas agora... — Agora o quê? Vocês vão me vender? — Atena, não se trata disso. — Então do que se trata? Sônia ficou em silêncio. Pela primeira vez, desviou o olhar. Foi o suficiente. Atena saiu da sala sem dizer mais nada. O sangue pulsava alto em suas têmporas. Sentia-se traída. Sufocada. Suja. Como se cada parede da boate tivesse se transformado em um espelho que gritava: > Você nunca foi livre. Só foi emprestada. --- Do lado de fora, a cidade vibrava em neon e motor. Atena caminhou sem direção por minutos que pareciam horas. O mundo ao redor girava, mas dentro dela só havia um único desejo: fugir. Pegou o celular. Ligou. Noah. Ele atendeu na primeira chamada. — Vem me buscar. A voz dela era baixa. Mas o suficiente para fazê-lo sair sem pensar. --- Quando Noah parou com a moto em frente à esquina da boate, Atena já o esperava. Os olhos vermelhos, o rosto fechado. Subiu na garupa sem dizer uma palavra. E segurou sua cintura com força. — Onde você quer ir? — ele perguntou, sem olhar para trás. Ela hesitou por dois segundos. — Pra qualquer lugar onde ninguém mande em mim. Ele assentiu. E acelerou. --- Chegaram a um mirante afastado, onde a cidade parecia distante. Um lugar alto, silencioso, de onde dava pra ver as luzes sem ouvir o barulho. Era o único lugar onde Noah se sentia livre. E agora dividia com ela. Atena desceu da moto devagar, caminhou até a beirada e sentou-se na mureta. — Eles querem me vender, Noah. Ele não disse nada. Só se sentou ao lado dela. O silêncio dizia mais. — Eu aguentei tanta coisa. Tanta humilhação. Mas eu tinha limites. E agora... — a voz falhou. — Agora nem isso me resta. — Você ainda tem escolha. Ela o olhou, os olhos cheios de dor. — E se a escolha me deixar sem teto? Sem dinheiro? E se eu perder o pouco que consegui salvar do meu pai? Noah respirou fundo. — A gente encontra outra forma. Outra saída. Ela riu, amarga. — Você fala como se o mundo fosse justo. — Não. Falo como quem acredita que o amor pode ser mais forte do que o medo. Ela não respondeu. Mas encostou a cabeça no ombro dele. E ficou ali. De olhos fechados. Como quem finalmente entendia: > Ela não estava sozinha. Mesmo que ainda não soubesse como seguir em frente. Na manhã seguinte, o céu estava cinza. O tipo de dia que parecia sussurrar que algo estava por vir — mas ninguém sabia o quê. Atena acordou no apartamento de Noah. Dormira no sofá, coberta por uma manta leve. Ele não a forçou a falar mais nada depois da noite anterior. Só a deixou existir. E isso bastava. Quando ela se levantou, Noah estava na cozinha. Preparava café em silêncio. — Fica mais um pouco — ele disse, sem virar o rosto. — Preciso ir. Tenho uma conversa a terminar. Ele se virou então, e o olhar que trocou com ela dizia tudo: Vai ser difícil. Mas você não está sozinha. --- Atena entrou na boate pela última vez com passos firmes. O ambiente parecia diferente agora. Mais escuro. Mais opressor. Não era só a luz — era o que estava por trás dela. Mentira, manipulação, e poder vendido por trás de uma cortina de veludo. Sônia a aguardava. — Ele retirou a proposta — disse, antes que Atena pudesse falar. — Disse que não quer mais te ver. E que vai respeitar a regra. Atena estreitou os olhos. — Por quê? — Não sei. Só sei que o dono da casa também pediu para deixar tudo como está. — Isso não muda nada. Sônia franziu o cenho. — Atena... — Eu vim me demitir. A gerente suspirou, como se esperasse aquilo. — Sabe que, sem esse trabalho, vai perder... — Tudo. Eu sei. Mas pelo menos perco com minha dignidade inteira. Sônia não tentou impedir. Só assentiu. Por respeito. Ou talvez por medo. Atena saiu com a cabeça erguida, mesmo que o peito doesse. > Era o começo da queda. Mas também o início da liberdade. --- Enquanto isso, Noah estava diante de uma tela dividida em quatro abas diferentes: — Artigos sobre Leonardo, — fóruns de denúncias arquivadas, — redes sociais rastreadas, — e um e-mail rascunhado. Ele sabia que não poderia enfrentar um homem como Leonardo sozinho. Precisava de provas. E aliados. Então escreveu: 📧 Para: jornalismo.investigativo@revistaverdade.com Assunto: Caso ocultado envolvendo Leonardo Calazans > Tenho informações que podem interessar à redação. Trata-se de um padrão de a***o, coerção e impunidade envolvendo uma figura pública. Preciso conversar com um jornalista fora dos canais oficiais. É urgente. Ele não assinou com nome. Não ainda. Mas era um primeiro passo. > Se o sistema era grande demais, ele descobriria onde doía. --- Naquela tarde, Atena voltou para casa e encontrou a porta entreaberta. O coração dela parou por meio segundo. Entrou com cautela. As luzes estavam apagadas. Não havia sinais de arrombamento. Mas, sobre a cama, um envelope. Sem remetente. Dentro dele, uma foto. Ela e Noah, sentados no mirante na noite anterior. Atrás da imagem, uma única frase escrita à mão: > "Você está sendo vigiada. Escolha seus próximos passos com cuidado." Atena deixou o envelope cair. O corpo tremia. Ele sabia onde ela estava. Com quem estava. O tempo todo. Mas dessa vez, o medo não a paralisou. Ela pegou o celular. E ligou. — Noah? — Oi. — Eu pedi demissão. — Você tá bem? — Não. Mas fiz o que precisava. — E agora? Ela olhou a janela. Depois a foto. — Agora a gente começa a lutar de verdade.
Free reading for new users
Scan code to download app
Facebookexpand_more
  • author-avatar
    Writer
  • chap_listContents
  • likeADD