O apartamento de Atena era pequeno. Um estúdio abafado, com móveis simples e livros empilhados no chão. Um cavalete no canto, com uma pintura inacabada — uma mulher de costas, dançando entre chamas. O vermelho ainda predominava.
Ela chegou em casa com os dedos trêmulos. O capuz cobria os cachos despenteados e os olhos ainda marejados pelo encontro com Leonardo. Trancou a porta com duas voltas de chave e empurrou uma cadeira para reforçar. Velho hábito.
Na cozinha, o micro-ondas piscava 00:00. O silĂŞncio era quase c***l.
Sentou-se no chĂŁo da sala, encostada Ă parede. Abraçou os prĂłprios joelhos. Chorou sem fazer barulho — como sempre fazia. Lágrimas silenciosas que caĂam nĂŁo apenas pelo medo, mas pela sensação de impotĂŞncia.
> Por que tudo volta? Por que mesmo depois de tanto lutar, ainda sou aquela menina quebrada que dançava pra sobreviver?
Na tela do celular, o nome de Noah estava ali, no histĂłrico.
Ela queria ligar.
Mas ainda nĂŁo sabia como pedir ajuda sem sentir que estava fracassando.
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Noah, por outro lado, nĂŁo conseguia dormir.
Ele andava de um lado para o outro no quarto, o celular ainda na mão. Tinha enviado uma mensagem para ela horas atrás, e nada. Nenhuma resposta. Nenhuma notificação.
> “Você tá bem? Me diz que sim.”
Mas o silĂŞncio respondia mais do que qualquer palavra. Ele sabia. Algo tinha acontecido. E nĂŁo sabia se ela estava segura.
Por fim, vestiu o casaco, pegou a chave da moto e saiu. NĂŁo podia ficar parado.
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Do lado de fora do prédio, Noah observou as janelas. Ele não sabia exatamente onde ela morava, mas lembrava da vez em que a seguiu de longe, por pura preocupação, até vê-la entrar por aquela mesma rua.
Era um gesto impulsivo. Mas o coração dele dizia que ela precisava dele agora.
Depois de alguns minutos de espera, uma janela acendeu no segundo andar. Luz fraca.
Ele apostou.
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A campainha tocou.
Atena sobressaltou. O corpo reagiu por reflexo — como quem espera o pior. Aproximou-se da porta em silêncio.
Olhou pelo olho mágico.
Era Noah.
Ela não sabia se queria deixá-lo entrar. Mas também não queria mais estar sozinha.
Destrancou devagar. A porta se abriu.
— Você... como...?
— Me desculpa. Eu precisava ver você.
Ela não respondeu. Só abriu espaço para ele entrar. E fechou a porta.
Noah entrou como se pisasse em território sagrado. O silêncio entre eles era denso, mas não desconfortável. Era só... dolorido.
— Você está machucada? — ele perguntou, com cuidado.
Ela negou com a cabeça. Mas os olhos diziam outra coisa.
— Ele te encostou?
Atena desviou o olhar.
— Não como queria.
Ele cerrou os punhos. Mas nĂŁo falou. Apenas respirou fundo, tentando controlar a raiva.
Ela caminhou até o sofá e sentou-se devagar. Ele se sentou ao lado, mantendo certa distância.
— Eu não sei por que deixei você entrar — ela disse, sem encará-lo.
— Talvez porque você precise saber que não está sozinha.
Atena virou o rosto lentamente, os olhos vermelhos.
— E se eu quebrar você também?
— Eu sou mais forte do que pareço.
— E se me odeiar quando descobrir tudo?
— SĂł me conta quando estiver pronta. E mesmo se for difĂcil... eu nĂŁo vou embora.
O silêncio entre eles se preencheu de algo diferente. Não era romance. Não era paixão. Era algo mais raro: confiança nascente.
Ela encostou a cabeça no ombro dele. Pela primeira vez, permitiu-se relaxar. As defesas começaram a cair.
E Noah, imĂłvel, deixou o tempo parar ali.
Não havia beijo. Não havia toque além do necessário. Mas havia um começo.
O silĂŞncio ainda reinava na sala de Atena, mas era um silĂŞncio diferente agora. NĂŁo mais pesado e sufocante, mas delicado, como uma pausa entre duas notas tristes.
Ela permanecia com a cabeça encostada no ombro de Noah. Os olhos fechados. O corpo tenso aos poucos cedia, como se aquela presença fosse um cobertor sobre uma ferida aberta.
— Você vai ficar calado o tempo todo? — murmurou ela, sem se mover.
— Só se você quiser — ele respondeu, suave.
Ela sorriu de leve. Pela primeira vez em dias. Ainda triste, mas sincero.
— A última vez que alguém ficou comigo depois que eu chorei... foi minha mãe. Antes de morrer.
Noah virou o rosto em direção a ela, sem saber se devia falar. Mas seu instinto o guiava.
— Você quer me contar sobre ela?
Atena ficou em silĂŞncio por um tempo. E depois, respondeu:
— Ela era professora de piano. Forte. Elegante. Sempre me dizia que a arte era a única forma de sobreviver ao mundo sem se tornar como ele. — Ela fez uma pausa, engolindo a emoção. — Morreu quando eu tinha dezesseis. Câncer. Foi rápido. Fez a dor parecer um vendaval. E depois... só ficou o eco.
Noah apertou levemente os dedos dela, que estavam sobre o colo. NĂŁo disse nada. SĂł ficou ali. Presente.
— Meu pai... tentou segurar as pontas. Mas era um homem de sonhos fáceis. Um negĂłcio r**m aqui, um investimento errado ali... e a gente perdeu tudo. E eu perdi ele. NĂŁo fisicamente. Mas o homem que ele era sumiu. Hoje vive numa casa de repouso com a mente perdida entre passado e presente. — Ela engoliu seco. — Eu sĂł queria cuidar dele. Pagar o tratamento. E entĂŁo... a boate. Leonardo. A promessa de dinheiro fácil. A prisĂŁo invisĂvel.
Noah sentiu o peito arder. Não de pena — mas de impotência. Ele queria arrancá-la daquele mundo. Mostrar que existia um depois. Mas sabia que ela era feita de muralhas. E isso exigia paciência.
— Você não é o que aconteceu com você — ele disse, firme. — Você é o que sobreviveu apesar disso.
Atena olhou para ele. Um olhar demorado, cheio de rachaduras, mas também de esperança.
— Por que você está aqui, Noah?
Ele sorriu, como se a resposta fosse mais simples do que ela imaginava.
— Porque eu não consegui esquecer o que vi quando você dançou.
Ela riu, baixo.
— A maioria diz isso. E depois some quando descobre o que tem por trás.
— Eu não sou a maioria.
— Então... me prova.
Noah nĂŁo a beijou. NĂŁo a tocou. Apenas tirou devagar o casaco e o colocou sobre os ombros dela.
— Eu não estou aqui pra te possuir, Atena. Estou aqui pra te lembrar que você ainda é livre por dentro. Mesmo que o mundo tente te convencer do contrário.
Ela mordeu o lábio, os olhos marejando de novo. E, dessa vez, não lutou contra isso.
— Você vai se machucar se ficar perto demais de mim.
— Talvez. Mas você também pode se curar, se deixar alguém ficar.
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Noah passou a noite no sofá. Atena dormiu no colchão, leve como há tempos não sentia. Pela primeira vez em muito tempo, não teve pesadelos.
Mas enquanto dormia, do lado de fora, Leonardo observava de dentro do carro estacionado a poucos metros dali. Os olhos frios fixos na janela iluminada.
Ele sorriu.
O jogo ainda estava em suas mĂŁos.
> Você quer brincar de amar, Dama? Então vamos ver até onde vai esse seu novo herói.
Na manhã seguinte, a luz invadia o apartamento de Atena com suavidade. Ela acordou antes do alarme, com os olhos ainda pesados, mas o corpo levemente mais leve do que o habitual. Era estranho sentir... segurança. Mesmo que por algumas horas.
Noah já estava acordado, sentado no chão com o notebook no colo e uma caneca de café à frente. Ela observou a cena em silêncio por alguns instantes. Era uma visão rara. Um homem calmo, inteiro, que não queria tomar nada dela.
— Você mexe no computador como se estivesse salvando o mundo — ela comentou, sonolenta.
Ele sorriu sem tirar os olhos da tela.
— Mais ou menos isso.
— O que você está fazendo?
— Procurando informações. Sobre Leonardo.
Ela congelou.
— Noah... não.
— Atena, ele te ameaçou. Te perseguiu. Isso não vai parar enquanto ele achar que tem o controle.
Ela se sentou, puxando o cobertor sobre os ombros. A voz saiu mais baixa.
— E se você se machucar por minha causa?
— E se eu não fizer nada e você continuar se machucando sozinha?
O silêncio entre eles era quente. Carregado. Mas ainda sem toque. Sem gesto. Só o peso daquilo que sentiam — e não diziam.
Atena respirou fundo. Depois se aproximou devagar e sentou ao lado dele no chĂŁo.
— E o que você encontrou?
Noah virou o notebook para ela. Uma notĂcia antiga, de dois anos atrás.
> “Filho de empresário é inocentado de acusação de assédio contra funcionária de bar em Alphaville.”
— É ele. — a voz dela quase falhou.
— O sobrenome bate. E o rosto também. A moça nunca mais foi encontrada para depor depois do primeiro boletim. Dizem que ela se mudou. Mas...
— Mas ela foi silenciada — completou Atena.
Noah fechou o notebook.
— Ele tem poder. E contatos. E está acostumado a fazer o que quer.
Ela passou as mĂŁos pelos cabelos, inquieta.
— Você não pode enfrentá-lo sozinho.
— Eu não estou sozinho.
Atena o encarou. Seus olhos estavam escuros de medo, mas também de algo que ela não queria admitir: esperança.
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Mais tarde, Noah voltou para casa. Atena pediu um tempo. Precisava ir à faculdade, colocar a vida no lugar, tentar respirar um pouco. Mas ficou claro que a dinâmica entre eles havia mudado.
Eles confiavam um no outro. Silenciosamente. Inexplicavelmente.
Enquanto isso, Leonardo recebia um relatĂłrio em seu celular.
📲 “O garoto Ă© estudante de bioquĂmica. Universidade pĂşblica. Bolsista. Mora com a mĂŁe. Vida limpa atĂ© agora.”
Ele sorriu com desdém.
— Todo mundo tem um ponto fraco.
Abriu outro aplicativo. Começou a seguir o perfil de Atena discretamente, através de uma conta falsa. Viu uma foto antiga dela sorrindo com uma amiga. Um comentário marcava o nome da colega: Camila Ferreira.
Leonardo sorriu.
— Vamos ver até onde vai sua zona de conforto, Dama.
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Na mesma tarde, Camila encontrou Atena no refeitĂłrio da universidade.
— Ei. Tá tudo bem?
— Por quê?
— Um cara estranho me mandou mensagem no Insta. Perguntou sobre vocĂŞ. Disse que era da sua famĂlia. Mas o perfil era vazio.
Atena congelou.
— Camila... se alguém te procurar, qualquer pessoa, não responde. Não entrega nada.
— Tá acontecendo alguma coisa?
Atena hesitou. E pela primeira vez, foi honesta com alguém que não era Noah.
— Sim. E é perigoso. Se eu te afastar, não é pessoal. É pra te proteger.
Camila assentiu, sem insistir. Mas os olhos estavam assustados.
— Você confia naquele garoto? No Noah?
Atena olhou para o chão por um instante. Depois para o céu.
— Pela primeira vez... eu acho que sim.
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Ao anoitecer, no caminho de volta pra casa, Atena recebeu uma mensagem. Sem nome. Sem remetente.
📲 “Você ainda pode voltar atrás. Ele não vale o preço. Todos pagam no final.”
Ela parou no meio da rua. O frio percorreu sua espinha.
Leonardo estava assistindo. E mandava recado.
Mas dessa vez... algo mudou dentro dela.
Ela respirou fundo, fechou os olhos. E respondeu:
📲 “Não tenho mais medo de você.”
O envio foi instantâneo. Mas o tremor nas mãos permaneceu por minutos.
A guerra tinha começado.