A passagem dos dias na Costa da Lua não era linear; era um fluxo e refluxo de obrigações e silêncios. Para Mia, cada manhã se desdobrava como um pergaminho de deveres a serem cumpridos. A rotina da família Blackwolf era um marulhar constante de vozes infantis, de decisões da alcateia, do peso suave e incessante do título de Luna. No entanto, sob a superfície calma de sua existência, uma inquietação sutil teimava em crescer, uma sombra alongada de uma premonição que ela não conseguia decifrar. Era como o cheiro de ozônio antes da tempestade, uma promessa de mudança pairando no ar.
Aquele dia específico, no entanto, oferecia uma trégua. A mansão de Babi Maya e Nathanael Blackwolf era um santuário de alegria mundana, um oásis onde a intensidade sobrenatural de suas vidas dava lugar ao simples prazer de estar juntos. O verão na Costa da Lua estava em seu esplendor, e o ar quente carregava uma sinfonia de aromas tentadores: a fumaça do churrasco, o sal do mar, o perfume doce das flores que cresciam desenfreadas no jardim. As risadas dos amigos—Chloe, Elizabeth, Ben, Noah—ecoavam como música, e ao longe, o som mais puro de todos: os gritos alegres das crianças brincando na beira do mar, suas pequenas formas douradas pelo sol correndo entre as ondas rasas.
Bryan estava ao seu lado, sua presença uma fortaleza de granito e gelo. Seu braço repousava sobre o encosto da cadeira de Mia, um gesto de posse que era mais protocolo do que paixão. Ele era a imagem do Alfa perfeito: controlado, imponente, inabalável. Cumpria seu papel de marido e líder com uma eficiência que, por vezes, beirava a frieza. Mia olhou para ele, para o perfil severo contra o pôr-do-sol que se aproximava, e seu coração apertou-se num paradoxo familiar. Havia lealdade, sim, um respeito profundo pela força que ele representava. Mas onde estava a paixão que consumia? O fogo que deveria incendiar a alma de uma Luna e seu Alfa? Sua conexão era um acordo tácito, uma parceria sólida, mas que carecia daquela centelha primordial, da entrega emocional total que ela, no íntimo, ansiada.
Seus olhos, inquietos, percorreram a mesa de jantar improvisada no jardim, repleta de iguarias e taças de vinho. Pousaram no grupo onde sua irmã, Chloe, e sua mãe, Elizabeth Ashworth, sussurravam, suas cabeças próximas, num compartilhar de segredos. A princípio, Mia não deu importância, absorta que estava em observar Logan e Luke, que disputavam um pedaço de milho com a seriedade de pequenos guerreiros, enquanto Lauren, já sonolenta, abria e fechava as mãozinhas em sua direção. Foi então que um fragmento da conversa, carregado no vento, atingiu-a como um dardo envenenado.
"—... Sim, é verdade, ouvi da própria Sra. Albright, que é prima da governanta deles. A Lívia está em processo de divórcio. Um escândalo silencioso, dizem," sussurrou Chloe, sua voz um fio de mel e curiosidade mórbida.
A palavra "divórcio" ecoou na mente de Mia com a violência de um trovão em um dia claro. Divórcio. A sílaba pareceu grotesca, impossível. Ela fitou Chloe, depois a mãe, vendo a confirmação nos olhos sábios e um pouco preocupados de Elizabeth. Um frio percorreu sua espinha, seguido por uma pontada aguda de uma curiosidade proibida. Lívia... a mulher etérea, sempre impecável, sempre ao lado do imponente Daemon Hemlock. A ideia de que aquela fachada de perfeição intocável poderia rachar, revelando uma fratura tão humana, tão dolorosa, era ao mesmo tempo perturbadora e fascinante. Como era possível? O que poderia ter quebrado uma união que, para o mundo exterior, parecia esculpida no mármore do poder e da tradição?
Enquanto Lauren adormecia finalmente em seu colo, o corpinho quente e pesado de sono, Mia balançava-a suavemente, seus olhos perdidos no infinito azul-cobalto do oceano. Por um breve momento, deixou-se flutuar naquele limbo, longe das responsabilidades, longe da pergunta que agora ardia em sua mente. Mas a imagem que invadiu sua paz não foi a de Lívia, e sim a de ele. Daemon Hemlock. O nome era uma afirmação em si mesmo, uma palavra que carregava o peso de montanhas e a antiguidade de florestas primitivas.
Ele era a personificação da imponência. Mia podia sentir a aura dele mesmo em sua ausência, uma pressão barométrica que mudava o clima de qualquer sala que ele viesse a ocupar. Seu cabelo, n***o como a noite sem estrelas, emoldurava um rosto talhado para o comando. E os olhos... os olhos de Daemon eram um universo em si mesmos. Verdes como os pinheiros que cobriam as montanhas de sua terra, azuis como os lagos profundos que guardavam segredos milenares, salpicados de dourado como o crepúsculo que banha a terra em magia. Eles não apenas viam; devoravam. Cada olhar parecia ler camadas da sua alma, revirar memórias que ela mesma havia esquecido. Havia neles uma força ancestral, um eco de legiões romanas e de lobos que caminharam sob luas há muito extintas. Daemon não era apenas um Alfa; ele era o guardião da alcateia mais antiga do mundo, um soberano cujo domínio nas terras misteriosas da Romênia era tão absoluto quanto a escuridão que paira sobre os Cárpatos.
Mia recordou, com uma clareza que a fez estremecer, as raras e tensas ocasiões em que estivera na mesma sala que Bryan e Daemon. Era como assistir a dois titãs medindo forças em um campo de batalha invisível. A aura majestosa e quase sobrenatural de Daemon desafiava abertamente o controle férreo e disciplinado de Bryan. Em alguns momentos, Mia sentia um impulso quase irrefreável de se encolher, de se fazer pequena, para não ser esmagada pela força bruta que os dois emanavam. Bryan lutava visivelmente para manter sua compostura, seus músculos tensionados sob a pele, a mandíbula cerrada. Era uma batalha silenciosa, e Mia percebia, com um misto de admiração e pena, o esforço colossal que Bryan despende para não ser ofuscado pela magnitude simples e avassaladora de Daemon.
Após depositar Lauren no berço, Mia verificou que Logan e Luke, ainda incansáveis, se envolviam em uma batalha épica de castelos de areia com os primos. Com um suspiro, pegou uma taça de vinho tinto, acreditando que o líquido rubro poderia acalmar o turbilhão interior. Acomodou-se à mesa, ouvindo o burburinho das conversas, mas seu espírito estava longe dali.
O sol começava a se despedir, pintando o céu com uma paleta de ouro, púrpura e carmim, quando Mia sentiu. Não foi um som, nem um movimento. Foi uma mudança na textura do ar, uma vibração de baixa frequência que fez os pelos de seus braços se eriçarem. A imponente aura de Daemon Hemlock aproximava-se, densa e inconfundível como a aproximação de uma tempestade. Uma onda de confusão varreu-a. Se Lívia não estava com ele, e o divórcio era um rumor, por que ele estaria ali? A lógica familiar, porém, rapidamente se impôs. Eram todos parentes, laços de sangue e pactos mais fortes que desavenças conjugais. A recepção foi cortês, como sempre, mas Mia percebeu o quase imperceptível silêncio que se abateu sobre o grupo quando Daemon surgiu na varanda, sua silhueta bloqueando por um instante o crepúsculo.
O jantar transcorreu com uma normalidade forjada. As crianças, exaustas, foram levadas para dormir, e a noite se entregou aos adultos. Mia, porém, sentia a atmosfera carregada. Cada risada soava um pouco forçada, cada olhar que pousava em Daemon carregava uma pergunta não formulada. Ela se sentia como se estivesse no olho do furacão, uma calma aparente cercada por forças turbulentas.
Foi então que uma necessidade urgente de solidão a consumiu. Precisava de um instante longe daqueles olhos que a analisavam, longe da pressão silenciosa. Com um sorriso vago para Bryan, que estava imerso em uma conversa sobre estratégias de caça com Ben e Noah, ela se levantou.
— Vou ao banheiro — murmurou, mais para si mesma do que para qualquer um.
Seus passos a levaram pelo corredor fresco e silencioso da mansão, longe do burburinho. Foi ao virar uma esquina, absorta em seus pensamentos, que colidiu com algo sólido e imóvel como uma rocha. O impacto foi breve, mas a sensação que a percorreu foi de um choque elétrico, percorrendo cada nervo com uma vibração intensa. Ele se desequilibrou levemente; ela, no entanto, foi projetada para trás, e só não caiu porque uma mão forte e quente agarrou seu braço com firmeza.
— Perdão — a voz de Daemon ecoou no corredor estreito, mais grave e profunda do que a memória lhe concedia, uma ressonância que parecia nascer das próprias entranhas da terra.
Mia recuperou o fôlego e o equilíbrio, sentindo o calor do toque dele em sua pele como uma marca.
— Não, fui eu... eu não estava prestando atenção — ela sussurrou, horrorizada ao perceber o tremor em sua própria voz.
Um sorriso sutil, tão enigmático quanto os hieróglifos de um templo esquecido, pairou nos lábios de Daemon. Seus olhos, aqueles olhos policromáticos, fixaram-se nela com uma intensidade que fez o ar faltar em seus pulmões. A curiosidade que Chloe plantara em seu peito transformou-se em uma criatura viva, insistente, batendo contra suas costelas.
— Está tudo bem? — ele perguntou, e a pergunta soou carregada de um significado mais profundo. Não era uma formalidade; era uma investigação.
— Sim, estou bem — Mia mentiu, a voz ainda um fio. E então, antes que a razão pudesse detê-la, a pergunta escapou, carregada de uma ânsia que ela não conseguiu disfarçar: — E você... e a Lívia? Está tudo bem... entre vocês?
Ele ergueu uma sobrancelha, um movimento quase imperceptível que, no entanto, delineou uma fronte de surpresa calculada. Seus olhos se aprofundaram, escavando os dela, como se buscasse a origem daquela ousadia. O silêncio se esticou por uma eternidade, até que, com uma casualidade que era um insulto à tensão do momento, ele respondeu:
— Sim. Estamos perfeitamente bem.
As palavras caíram como uma lâmina. O coração de Mia contraiu-se dolorosamente. Ela queria gritar, questionar, exigir a verdade por trás daquela fachada lisa. Mas o momento se esvaiu. Ele soltou seu braço, e com um último olhar que parecia dizer "isso não é da sua conta, pequena loba", ele se virou e retornou para a varanda. Mia ficou parada no corredor, o braço ainda formigando, a curiosidade agora transformada em uma agonia silenciosa. Tudo sobre aquele homem e sua esposa era um véu de mistério. E ela, Mia, carregava o mais profundo deles: a confidência que Daemon lhe fizera, em um momento de rara vulnerabilidade, de que a primeira Loba Sigma havia nascido em sua alcateia, há milênios. Ele a olhava, às vezes, como se visse através do tempo, como se um fio invisível e ancestral os unisse, um segredo que ela jamais ousara compartilhar, nem mesmo com Bryan.